‘Sem qualquer patriotada, o Oscar 2004 é o Oscar de ‘Cidade de Deus’. Pouco importa que o poderoso filme rodado por Fernando Meirelles a partir do romance de Paulo Lins leve algum prêmio nas quatro categorias para o qual foi indicado (acho que leva – leia abaixo). As indicações, em todas as principais categorias técnicas da Academia, são a manchete. É uma impressionante demonstração de força do cinema brasileiro como um todo.
‘Cidade de Deus’ teve o mesmo número de indicações da produção até aqui largamente favorita entre as independentes de 2003. ‘Encontros e Desencontros’ emancipa Sofia Coppola definitivamente da sombra paterna – aliás, um dos temas subliminares mais tocantes de seu ensaio fílmico sobre deslocamento e solidão. Sofia está mais perto de Sundance do que de Hollywood, reconheça-se, mas está longe de ser uma estranha no ninho da Academia. Por outro lado, foi apenas com ‘Cidade de Deus’, seu terceiro longa, que Fernando Meirelles estreou na arena cinematográfica planetária -ainda que, por questão de justiça, não se possa subestimar a importância sobretudo na esfera internacional do apoio da Videofilmes e em particular de Walter Salles. É bom lembrar: na coletiva do júri de Cannes 2002, o diretor de ‘Central do Brasil’ não pestanejou em modestamente afirmar, antes da estréia fora de concurso do filme de Meirelles: ‘‘Cidade de Deus’ ‘ é o filme brasileiro mais importante desde ‘Pixote’’. A história veio lhe dar razão.
Por meio de uma narrativa complexa e multiestilística, ‘Cidade de Deus’ traduziu para as telas a transformação do Rio de Janeiro na ‘cidade partida’ (Zuenir Ventura), sitiada de fato pela ascensão do poder do tráfico de drogas. Na produção audiovisual brasileira, um filme o precedeu neste diagnóstico, com igual contundência: ‘Notícias de uma Guerra Particular’ (1999), o documentário de João Moreira Salles e Katia Lund.
Em 2002, já ocupei este espaço frisando as similaridades e diferenças entre essas duas obras-primas. A dívida de ‘Cidade de Deus’ para com a estética do documentário, e não apenas para com o acima citado, foi eloqüentemente reconhecida num belo perfil recente feito pelo Canal Brasil do diretor de fotografia César Charlone, um dos indicados ao Oscar nesta semana. Charlone frisou a importância de suas duas décadas de atividade, como fotógrafo e diretor de documentários, para a definição do estilo cru e ágil da fotografia do capítulo contemporâneo de ‘Cidade de Deus’. Basta ter olhos de ver.
Em fotografia e em montagem (Daniel Rezende) residem as maiores chances brasileiras de Oscar na noite de 29 de fevereiro. Por tratar-se de adaptação de obra nacional, logo menos conhecida pelos votantes da Academia, e por concorrer com o franco favorito do ano (‘O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei’), parece menos provável um triunfo na categoria de roteiro adaptado. O mesmo raciocínio, pelo embate direto com Peter Jackson, enfraquece as apostas num prêmio de direção para Meirelles, com a agravante de disputar ainda contra o Clint Eastwood do irregular mas poderoso ‘Sobre Meninos e Lobos’.
Não foi um grande ano para o cinema americano, para dizer o mínimo, como espelha o quinteto pouco empolgante de candidatos a melhor filme. O Oscar deve repetir o Globo de Ouro do último domingo e consagrar, finalmente, o fecho da trilogia de Tolkien, naquele que afinal é por certo seu episódio mais convincente. ‘Mestres dos Mares’ e ‘Seabiscuit’ são eficientes produtos dos estúdios mas não parecem ter o fôlego de grandes vitoriosos. ‘Sobre Meninos e Lobos’, por sua vez, é um Eastwood menor. Corre por fora, assim, o minimalista ‘Encontros e Desencontros’, premiado com o Globo de Ouro de melhor comédia ou musical, mas acredito que suas maiores oportunidades de vitória repousem nos ombros de Bill Murray, como melhor ator, e de Sofia Coppola, como roteirista.
‘Ônibus 174’ infelizmente não saltou da pré-seleção de doze documentários para a lista dos cinco finalistas. A relação é, assim mesmo, especialmente rica e fortemente política. ‘Balseros’ retrata fugitivos da ilha de Castro. ‘A Fog of War’ reinterpreta a diplomacia americana dos últimos quarenta anos pela voz de seu ex-timoneiro Robert McNamara. ‘The Weather Underground’ radiografa as razões da desrazão do grupo terrorista homônimo americano dos anos 70. Os dois últimos indicados, ‘A Captura dos Friedmans’ e ‘My Architect’, devassam a ruptura dos padrões familiares tradicionais nos Estados Unidos do pós-guerra.
Não há aqui qualquer favorito explícito. Desde logo, o grande vencedor é a própria Academia, que logrou reoxigenar os métodos de seleção na categoria, historicamente tão criticados. O Oscar 2004 já fez história.
Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentário e diretor do Museu da Imagem e do Som de São Paulo’
Ana Maria Bahiana
‘O verdadeiro jornal da tela’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 27/01/01
‘Entre e mortos e feridos, salvaram-se muitos.
Os 90 estrangeiros desconfortavelmente poderosos da Hollywood Foreign Press Association fizeram escolhas sábias, ousadas até, e distribuíram alguns Globos de Ouro completamente fora de esquadro: o de melhor filme estrangeiro para o Afeganistão, tocando em todas as feridas; o de melhor atriz/comédia para uma Diane Keaton de 57 anos com cara de 57 anos fazendo uma personagem sexy que tem 57 anos; o de melhor seriado de comédia de TV para um audacioso pseudo-documentário da BBC que não apenas tripudia sobre o esqueleto dos sitcoms, mas também mostra o avesso dos ‘reality shows’; e um bando de láureas para um filme dirigido por uma mulher e para um filme de fantasia (gênero que, pelos cânones de Hollywood, jamais ganha coisa alguma), feito na Nova Zelândia por uma equipe inteiramente neozelandesa.
Dois dias depois, a Academia começou a acordar de sua doce sesta auto-complacente. Não me refiro apenas às notáveis quatro indicações para Cidade de Deus – e, por favor, invejosos de plantão, não tentem reduzir o feito a mera ‘jogada da Miramax’. É preciso muita carne debaixo do angu dos irmãos Weinstein para chegar aonde Cidade de Deus chegou.
Refiro-me também às indicações para o franco-canadense Dennis Arcand para melhor roteiro original por Invasões Bárbaras; para as atrizes Shoreh Aghdasloo e Keisha Castle-Hughes; para o ator Ken Watanabe; para o documentário Balseros. Mais as indicações todas para Sofia Coppola e seu Encontros e Desencontros, e para o esplendor maduro de Diane Keaton em Alguém Tem Que Ceder.
Quando me perguntam qual a atração, a importância ou a função do jornalismo que eu tento exercer – o cultural – gosto de me lembrar de momentos assim. Momentos nos quais, atrás do que parece mais um mero ritual vazio no templo da celebridade, pode-se de fato medir o pulso dos tempos, observar as rodas da mudança, ver, enfim, a história em ação.
Jornalismo de cultura, de artes e de entretenimento só é superficial e tolo se assim é praticado. Quem o esvazia e reduz a mero agendismo atrelado a press releases mostra-se cego às enormes forças culturais que impulsionam, contêm, se espraiam, se erguem, se ocultam atrás de todos os sinais aparentemente triviais. A sociedade, cada vez mais tribal e cada vez mais global, movimenta-se com clareza nas manifestações da cultura que produz e consome. Quando Hollywood ergue sua cabeça e fala, através de seus signos – no caso, prêmios e indicações – ela está indicando as pistas para o nosso inconsciente, para os nossos desejos e repulsas, as nossas ambições, fantasias e revoltas.
O impacto somado da contra-corrente dos Globos de Ouro com a internacionalização dos Oscars se traduz num momento assim, em que afloram à superfície, afinal, mudanças profundas que, ao mesmo tempo, inspiram e refletem mudanças na sociedade.
Em um flanco, vemos a maior brecha já dada ao cinema feito no Brasil desde Central do Brasil – uma brecha que se inclui no contexto maior de uma abertura progressiva da fechada tribo hollywoodiana ao talento vindo de fora de suas fronteiras. Não esqueçam de que, embora parcialmente financiado por dólares e distribuído por uma empresa americana, a trilogia Senhor dos Anéis foi inteiramente criada, desenvolvida e executada na Nova Zelândia, com uma equipe integralmente neozelandesa.
Mas isto é só uma parte da história, a outra parte eu conto semana que vem.’
Jornal do Brasil
‘A TV como destino’, copyright Jornal do Brasil, 30/01/01
‘Marcelo desmente a versão, repetida na imprensa, de que o elenco de Cidade de Deus foi composto por ‘não-atores’.
– Antes do filme, o Nós do Morro já existia há 15 anos. Boa parte da equipe tinha cinco anos de teatro.
Do grupo, os exemplos mais conhecidos de sucesso são Douglas Silva e Darlan Cunha, que desde 2002 protagonizam a série Cidade dos Homens, sucesso de crítica e de Ibope da Rede Globo. Aos 15 anos, eles continuam no ar em 200, com novos episódios da série sobre o cotidiano de dois meninos pobres. Graças ao programa, vários membros do Nós do Morro estrearam na televisão.
Cinco deles conseguiram papéis fixos na TV aberta: aos 15 anos, Marcos Junqueira, o Otávio de Cidade de Deus, apresenta o programa Expedições cariocas na Band. Os outros fazem papéis em novelas da Globo: Thiago Martins (15) e Jonathan Haagensen (20), respectivamente Lampião e Cabeleira no filme, estão no elenco de Da cor do pecado. Sabrina Rosa (25), a mulher de Zé Galinha, está em Chocolate com Pimenta. E Roberta Rodrigues (22), a Berenice da trama, fez sucesso como a empregada Zilda, de Mulheres Apaixonadas.
Dos integrantes do Nós do Morro, o único que destoou foi Phelipe Haagensen, 19 anos, o Bené do filme, que também apareceu em Cidade dos Homens. Irmão de Jonathan – que além da novela, participa de desfiles de moda – ele acabou afastado do grupo do Vidigal por indisciplina. Mas não quer deixar a vida artística.
– Saí do grupo para pensar na minha vida. Esse mês, ajudei na produção de um clipe dos Racionais.
Rubens, o rapaz que foi preso, também fez parte do Nós do Morro em 2001, mas só por dois meses. Phelipe explica que ele ficou revoltado depois do filme.
– Ele achava que tinha que receber salário, porque o filme estava fazendo sucesso. Mas não é assim. O Fernando não abandonou a gente. No fim do ano passado, deu R$ 1 mil para cada um – conta.’