A cena parece improvável nos dias de hoje. Em 23 de agosto de 1972, um casal árabe de meia-idade consegue passar sem muitas dificuldades pela alfândega do aeroporto de Colônia, na Alemanha. Se bem que uma das quatro malas que carregava chegou a ser aberta por ordem dos funcionários. Dentro delas, havia inofensivas peças de lingerie. As outras três passaram incólumes, e era justamente seu conteúdo letal que importava ser inspecionado. Armas e munições que seriam utilizadas dali a um mês no seqüestro de 11 atletas israelenses, durante as Olimpíadas de Munique.
Se os dois inocentes úteis da Fatah, facção da OLP (Organização pela Libertação da Palestina), entraram tranqüilamente em solo alemão, tampouco os seis terroristas do Setembro Negro encarregados de executar a missão tiveram qualquer dificuldade para pular o muro de cerca de 1m80 da vila olímpica, na Connollystrasse nº 31. Lá, no dia 5 de setembro, misturados a atletas que retornavam às escondidas das noitadas em Munique, invadiram os aposentos da delegação israelense e anunciaram o seqüestro.
Despreparo exposto
O desfecho trágico da operação ocorreria horas depois, no campo de aviação de Fürstenfeldbruck, nos arredores de Munique, para onde haviam se deslocado terroristas e atletas, no curso de uma negociação com as autoridades alemãs. A morte dos 11 reféns chocou o mundo e levou Israel a determinar uma caçada aos responsáveis pela catástrofe.
A anatomia do seqüestro e a caçada aos culpados empreendida pelo Mossad, o serviço secreto de Israel, são narradas pelo jornalista Aaron J. Klein, no livro Contra-ataque – O massacre nas Olimpíadas de Munique e a reação mortal de Israel. Correspondente para assuntos militares e de informação da revista Time em Jerusalém, Klein ouviu antigos oficiais-chave do Mossad, combatentes, analistas veteranos, pesquisou documentos oficiais e altamente confidenciais sobre o caso. Escrita com simplicidade, dividida em capítulos curtos, sua reportagem pode ser lida como um thriller eletrizante.
O massacre de Munique expôs o despreparo da polícia alemã para lidar com a ameaça terrorista e as falhas da inteligência israelense, que achava que os ataques árabes estavam circunscritos a áreas isoladas do território de Israel. Mas sinais de alerta não faltaram. ‘O terrorismo atingiu um pico impressionante em 1972. Grupos palestinos, frustrados por não conseguirem executar ataques contra Israel a partir dos Territórios Ocupados da Margem Ocidental e da Faixa de Gaza, exportaram suas atividades para além das fronteiras do Oriente Médio’, escreveu Klein.
O primeiro alvo
Mesmo assim, o ataque à vila olímpica de Munique teve o impacto de uma surpresa. E graças a essas ações terroristas e às mortes em Munique, o drama do povo palestino começou a ser conhecido mundialmente. Cada vez mais o nome de Arafat e da OLP ficavam mais populares. O terrorismo – observou Klein – passava a se revelar como um método bem sucedido, e os ataques cresciam em violência. ‘As operações se tornaram mais ousadas, mais teatrais’.
Consumado o ataque de Munique, veio a desforra de Israel. ‘Não temos escolha a não ser combater as organizações terroristas, onde quer que as possamos encontrar. É nossa obrigação com nós mesmos e com a paz. Temos de cumpri-la com coragem’, declarou a primeira-ministra Golda Meir, uma semana após o atentado. Uma paranóia antiterror havia se instalado do lado de Israel. ‘Naqueles dias caóticos, o Mossad e a inteligência militar consideravam todos os representantes da OLP como parte da infra-estrutura terrorista, acreditando que planejavam ataques em suas casas e escritórios’, escreveu Klein.
Do lado árabe, o sucesso obtido na Alemanha era festejado, apesar da morte de alguns terroristas. ‘Os saya’ans (ajudantes) palestinos baseados na Europa fizeram o maior barulho, ansiosos por provar sua devoção imortal à terra natal que tinham deixado’, escreveu Klein. Discussões no Knesset, o parlamento israelense, indicavam uma só direção: a eliminação dos idealizadores do massacre de Munique. Segundo Klein, ‘na visão de Israel, em menos de uma semana, o Setembro Negro passara do quase anonimato a inimigo público número um’.
O primeiro alvo do Mossad foi o palestino Wael Zu’aytir, de 36 anos, morto em Roma no dia 16 de outubro de 1972. Durante muito tempo suspeitou-se que o assassinato de Zu’aytir, um pacato tradutor, tenha sido injusto. Anos depois, segundo Klein, a verdade surgiu: uma autoridade israelense revelou à BBC o envolvimento de Zu’aytir com atividades terroristas. Vinte anos depois, o Mossad ainda caçava suas vítimas. No dia 8 de junho de 1992, Atef Bseiso, um palestino de 44 anos, foi morto por um comando israelense em frente ao hotel Le Méridien, em Paris. Bseiso havia tomado parte na carnificina de Munique. Como num efeito dominó, o Mossad procurou os terroristas ligados ao Setembro Negro em vários países.
Eliminar a existência
As investigações do serviço secreto de Israel não impediram que um erro trágico fosse cometido. No dia 21 de julho de 1973, numa pacata cidade da Noruega chamada Lillehammer, agentes assassinaram o jovem marroquino Achmed Bouchiki, confundido com Ali Hassan Salameh, chefe da Força 17 da Fatah. Achmed foi morto diante da mulher norueguesa, que estava grávida, quando voltavam do cinema. Fora o primeiro assassinato em 40 anos na sossegada Lillehammer.
O livro de Aaron Klein retrata não somente a anatomia de um massacre envolvendo o ódio histórico entre dois povos, naquilo que poderia ter sido apenas uma disputa esportiva em nome da paz e da amizade. Traz à tona o despreparo e a desonestidade dos anfitriões alemães enquanto mediadores de uma tragédia que poderia ter sido evitada. Em sua postura auto-suficiente e de desconhecimento de um fenômeno que passava a ganhar força no mundo, os israelenses também contribuíram para o desfecho. As palavras de Menachem Begin, líder conservador, ditas à época numa sessão do Knesset, representam bem a gênese da intolerância que hoje está aí:
A retaliação não basta mais. Queremos um ataque prolongado e sem fim contra os assassinos e suas bases. (…) Devemos sufocar todos os seus planos e operações e eliminar a existência dessas organizações assassinas. (…) Temos capacidade física e mental; temos de empregá-la. Precisamos eliminar esses criminosos e assassinos da face da Terra, fazê-los ter medo, fazer com que não sejam mais capazes de disseminar violência. Se precisamos de uma unidade especial para isso, está na hora de formá-la.
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Jornalista, editor do Balaio de Notícias