Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Aquele sorriso maroto

No final dos anos 50 o escritor Ricardo Ramos, que dirigia o suplemento literário do jornal Última Hora, de São Paulo, promoveu concorrido concurso de contos de Natal. Três contistas foram classificados: eu, Julieta de Godoy Ladeira e João Antônio. A editora Cultrix, que patrocinou o concurso, ofereceu um coquetel no salão da própria editora, ao fim do qual saímos, eu e João Antônio, pelas ruas, entrando em botecos.

Foi o meu primeiro encontro com ele. Foi o começo de uma amizade que se estreitaria ao ponto de João Antônio, muito jovem e à procura de emprego, achegar-se à minha família, frequentar minha casa e o escritório dos meus irmãos Manoel e Luiz Mauro, na rua Barão de Paranapiacaba, para datilografar os contos que andava escrevendo.

Numa tarde de muito calor, convidou-me para uma cerveja. Atravessamos o Viaduto do Chá, descemos para a rua Formosa e entramos num bar pegado ao Cine Cairo. O garçom trouxe a cerveja e ele pediu: “Me traga um papel de embrulho, novo”.

Com um lápis, João Antônio começou a esboçar um mapa de bairros e a falar de três malandros a percorrê-los: “Estou com esta história na cabeça. São três tipos: Malagueta, Perus e Bacanaço”.

Falou muito, riscou muito, bebemos muito. “O que você acha?”, perguntou-me. “João Antônio, estou metido com uns contos regionais. Tenho pouco tempo de São Paulo.”

No dia seguinte, apareceu no escritório com rascunhos em vários bolsos e em papéis amarfanhados. Foi direto para a máquina e começou a dar ordem àquilo. Não falava em outra coisa. A novela que escrevia era obsessão.

Creio que foi o trabalho escrito por João Antônio com maior amor e com muita dor. Semanas, meses, escrevendo, reescrevendo, mudando, rasgando. Encheu uma das gavetas da mesinha da máquina de escrever de rascunhos desordenados, parte deles entregue à poetisa Ilka Brunilde Laurito, sua amiga querida, para que ela também opinasse.

Não demorou muito tempo entrou ele espavorido no escritório: “Caio, perdi tudo. A minha casa pegou fogo e perdi o único original do Malagueta. Não tenho cópia”.

Por pouco não joguei no lixo os rascunhos que ele guardara na gaveta da mesinha da máquina. Apontei: “Os rascunhos estão ali. Quase jogo fora. A Ilka deve ter alguma coisa”. Ele espalhou tudo aquilo num sofá: “Puxa vida. Graças a Deus”.

Levou tudo e, trancado numa sala da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, reescreveu toda a novela. Tinha o material bruto em mãos, a versão quase definitiva.

Refeito o trabalho, montado o livro, fizemos a revisão final para publicação pela editora Civilização Brasileira, do Rio, num sábado inteiro, no escritório da agência publicitária Petinatti, rua Conselheiro Crispiniano, quase frente ao Mappin, onde conseguira emprego com o escritor Jorge Rizzini.

Além da novela, sua menina-dos-olhos, tinha particular agrado pelos contos “Meninão do Caixote”, “Fujie” e “Afinação da Arte de Chutar Tampinha”.

A amizade perdurou sem interrupção. Adorava o mundo da gente simples, classe baixa e desendinheirada. Descobria tipos exóticos. Tudo o que rompia com os padrões estabelecidos, com a falsa moral burguesa, lhe agradava, embora andasse sempre bem vestido e engravatado. Divertia-se com o mundo da malandragem, observava-o com agudo olho crítico, extraía dele o seu lado um tanto chapliniano. Era a matéria viva da sua arte, mais do que a outra, que se escondia nas sombras dos problemas sociais.

Depois de uma primeira fase no Rio de Janeiro, voltou definitivamente para lá.

Veio, então, a etapa da correspondência. Intensa, sem interrupção, que perdurou pelo resto da década de 60, toda a década de 70 e parte de 80. Com o tempo, ele lá e eu aqui, tudo acabou nos raros encontros pessoais, quando ele vinha a São Paulo.

Cerca de 200 cartas dele

Guardo do amigo seis pastas de cartas, passando de cem, caminhando para duzentas. Assuntos variadíssimos, que vão da crítica às editoras, às suas aperturas financeiras, à saudade do início da sua carreira, às queixas por tudo e por nada, ao simples ato de escrever por escrever.

Difícil selecioná-las para um trabalho como este. No seu conjunto, pode-se compreender melhor a sua personalidade e a sua irrequieta vida de escritor.

Tenho duas delas falando-me do seu casamento, numa declarando que só ia à cerimônia porque era obrigado. Marília, criatura doce, deu-lhe um filho. Anos depois, ela e o filho foram morar nos Estados Unidos. João Antônio passou por outros amores. Mas, nos momentos de aflição ou solidão, era para Marília que telefonava e apelava.

Numa outra carta conta da proibição médica de beber. Complicação no fígado. Não chegara aos trinta anos. Esse problema se agravaria e o atormentaria pelo resto da vida. Mas do copo ele não se afastou.

Os anos se passaram, a correspondência continuou intensa, e quando nos encontrávamos, casualmente no Rio ou em São Paulo, sempre tirávamos uma noite para conversa mais longa. Numa dessas, num encontro na Oficina da Palavra – Casa Mário de Andrade, na Barra Funda, em São Paulo, voltou a desabafar: “Continuo sem poder beber, Caio. Uma merda. E você bebe?” Respondi: “Claro. Viajo muito. O que que vou fazer? Água?”

Cresceu nas letras, fez sucesso no exterior, mas nas suas cartas volta sempre, como uma obsessão, ao seu livro de estreia: Malagueta, Perus e Bacanaço.

Em certo trecho de uma delas relembra o incêndio da sua casa, que queimou os originais do seu livro de estreia, e isto me recorda o seu olhar espavorido, entrando no escritório, exclamando: “Caio, perdi tudo. A minha casa pegou fogo e perdi o original do Malagueta. Não tenho cópia”. “Os rascunhos estão ali. Quase jogo fora. A Ilka deve ter alguma coisa”. Paro por aqui estas curtas citações de uma correspondência, sobretudo afetiva, amiga, sem falsos elogios de ambas as partes, e que se prolongaria até meados da década de 80.

As cartas passaram a ser raras, mas sempre no mesmo tom, naquela sua maneira de escrever, misturando assuntos, jogando no papel o que vinha na cabeça. Pula de uma frase belamente construída para outra cheia de palavrões. Pouco me falava dos seus sucessos literários e eu pouco lhe falava das minhas possíveis vitórias. Nunca falava da sua vida amorosa, um pouco dos seus projetos, e eu me comportava da mesma maneira. Porque é uma sucessão de cartas amigas, nascidas de uma afetividade muito particular, que começou com o porre que tomamos na saída da editora Cultrix, após a festa de entrega dos prêmios do concurso literário promovido pelo escritor Ricardo Ramos.

Difícil, pois, transcrever trechos delas, porque ele fala muita coisa numa só carta, muitas delas longas. Talvez visse em mim, ou através de mim, inconscientemente, o nascimento dos seus três malandros queridos. Tão queridos que Abraçado ao Meu Rancor, seu melhor trabalho depois do Malagueta…, é, em essência e no fundo, o rancor e a raiva de não mais conseguir ligar o presente ao passado, ao começo da sua carreira.

Vi-o pela última vez na Bienal Internacional do Livro, de 1996, aqui em São Paulo. Levantou-se da mesinha onde autografava e quase me segredou, depois do abraço: “Preciso falar com você. Não vá embora”.

Mas fui a outro pavilhão e encontrei um amigo que podia me deixar em casa de carro. Aproveitei, certo de que, no dia seguinte, falaria com ele na Bienal. Mas ele voltou para o Rio. Morreu pouco tempo depois. Não chegou aos 60 esse escritor notável, que nasceu com o nome de João Antônio Ferreira Filho, de família modesta, em modesto bairro de São Paulo.

Parece que o estou vendo, sempre com aquele sorriso maroto…

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Caio Porfírio Carneiro é escritor