O escritor e jornalista Salim Miguel acaba de lançar, aos 82 anos, um novo livro: O sabor da fome. Nome de referência em nossas letras, recebeu o Troféu Juca Pato, da Folha de S.Paulo e da União Brasileira de Escritores, em 2002. Um ano antes arrebatara o maior prêmio nacional para romance, o Zaffari & Bourbon, promovido em parceria com a Nona Jornada Nacional de Literatura, de Passo Fundo, por Nur na Escuridão, premiado também pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
Em 2005, além de relançar A vida breve de Sezefredo das Neves, foi finalista do Prêmio Jabuti, com Mare Nostrum, lançado igualmente pela editora Record, que acaba de relançar também seu romance A voz submersa.
Salim Miguel nasceu no Líbano, mas foi alfabetizado em alemão, em Santa Catarina, tendo passado a infância em Biguaçu, na Grande Florianópolis. Mais tarde, tendo aprendido a ler em português, lia em voz alta para um velho cego que lembra o personagem Jorge de Burgos, de O Nome da Rosa, conhecida homenagem que Umberto Eco fez a Jorge Luís Borges. O cardápio era eclético: ia de nomes sem importância a Schopenhauer…(Ver, neste Observatório, ‘O Faulkner de Biguaçu‘, de Ivan Schmidt, 26/2/2006).
Por dez anos, de 1947 a 1957, integrou o Grupo Sul, movimento de jovens intelectuais de Santa Catarina que foi incubador de autores como Guido Wilmar Sassi (baseado em seu romance, A Geração do Deserto, Sylvio Back filmou A Guerra dos Pelados), Silveira de Souza, Adolfo Boos Júnior e Eglê Malheiros, com quem Salim viria a se casar e com a qual vive até hoje.
Atestado de óbito
A mídia não lhe dá a atenção que faz por merecer. A maioria dos jovens editores ou pauteiros dos grandes jornais, ainda que de cadernos dedicados a autores e livros, ignora solenemente quem é quem em nossas letras.
Reforçam seu desconhecimento três peculiaridades de Salim Miguel: ele conhece como poucos as redações, é senhor de rematada modéstia e vive em Florianópolis há muitos anos, uma cidade que não prima por reconhecer talentos de escritores, consagrados ou recém-lançados. Apesar do exemplo do Rio Grande do Sul, ali pertinho, que tem autonomia para autores e livros do Estado, garantindo-lhes público e vida literária e cultural receptivas, Santa Catarina ignora os próprios valores e, como a mão não balança o berço, o certo é que a mortalidade infantil é altíssima entre escritores catarinenses.
Nem bem lançados, rumam para o esquecimento. Quem perde com isso é a literatura brasileira, pois a descoberta desses valores dependerá de arqueologias tardias e, às vezes, inócuas. Para os autores serão sempre inócuas, pois, ao exigirem antes o atestado de óbito para reconhecê-los, decretam que só podem existir depois de mortos…
Memória e imaginação
Salim Miguel fez uma ‘notinha’, que antecede o volume de contos que agora lança, na qual explica famoso e breve diálogo que teve com Graciliano Ramos em 1950, na célebre Livraria José Olympio. O então jovem autor catarinense falava de Caetés ao mestre e este, para mudar de assunto, perguntou-lhe: ‘E você o que faz?’ ‘Tento uns contos’, respondeu Salim, para ouvir o conselho que mudaria sua vida de escritor: ‘Não tente. Faça!’
O sabor da fome reúne contos escritos recentemente, mas dois deles foram publicados na revista Sul há mais de meio de século, antes de o escritor estrear em livro. Mais do que duas narrativas curtas indicadoras do talento que brotava, são documentos aos quais todos agora podem ter acesso, vez que eram conhecidos de muito poucos.
Para que os livros recém-lançados possam, entretanto, ser refletidos na imprensa, é necessário que sejam lidos à luz do percurso de um escritor que combina como poucos os recursos da memória e da imaginação, suas duas grandes marcas como ficcionista.
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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde coordena o Curso de Letras; www.deonisio.com.br