Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As aventuras de um gringo brasileiro

O jornalista americano Michael Keppdeixou os Estados Unidos aos 33 anos de idade por não suportar mais o estilo de vida competitivo do seu país. Escolheu o Brasil para viver, mais especificamente o Rio de Janeiro, já que, como ele costuma dizer com humor, é para onde vão todos os “fugitivos de Hollywood”. No Rio de Janeiro, Michael tropeçou nos hábitos culturais, mas acabou se adaptando. Já está por aqui há 28 anos, tempo suficiente para entender – mas nem sempre aceitar – muitos dos nossos vícios e também virtudes. Aqui constituiu família. É casado com uma piauiense.

Sua experiência como observador privilegiado de duas culturas lhe rendeu dois livros de crônicas, ambos publicados pela Editora Record. O primeiro, Sonhando com sotaque, foi escrito em 2003. O segundo, Tropeços nos trópicos – crônicas de um gringo brasileiro, acaba de ser lançado. Nesse livro, Michael Kepp exercita seu olhar sobre as peculiaridades do cotidiano brasileiro – sobretudo o carioca, que lhe é mais próximo – e também do americano, estabelecendo comparações que nos fazem entender com clareza diferenças importantes entre um país e outro.

Um sabor atemporal

Nada pareceu escapar ao humor inteligente desse gringo de St. Louis, Missouri. Desde a forma como nos comportamos à mesa, até como nos casamos. Está tudo lá, como num pequeno compêndio de antropologia cultural, com uma vantagem: é tudo descrito com graça e leveza. E com o adicional de que os fatos são analisados sem qualquer indulgência. Michael distribui igualmente elogios e críticas a brasileiros e americanos.

O livro é dividido em cinco partes, entre confissões, comparações e contemplações. Na crônica talvez mais pungente do livro, Michael descreve como se reaproximou da mãe 48 anos depois, quando ela já estava morta. Em outra crônica, fala do caráter expansivo do pai. Na crônica “Excessórios”, resume sua filosofia de vida orientada para a simplicidade. “Preciso de seis coisas para sair de casa: camisa, jeans, sandália, dinheiro, chave de casa e identidade.”

Exceto por alguns inéditos, todos os textos foram publicados originalmente na Folha de S.Paulo, nos últimos anos, mas mantêm um sabor atemporal, qualidade de toda boa crônica. O leitor poderá ler algumas crônicas do livro no site do autor. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Michael Kepp fala do livro e de outros assuntos, como o 11 de setembro de 2001, no qual se redescobriu americano.

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Você deixou os Estados Unidos há 28 anos, fugindo da cultura do time is money. O tempo e a distância o ajudaram a ver o seu país com outros olhos? Que visão tem hoje da sua pátria?

Michael Kepp– Eu vejo os Estados Unidos como um país imperialista e egocêntrico, uma sociedade workaholic e altamente competitiva. Mas também vejo os Estados Unidos como um país que dá aos americanos muita liberdade de se expressar politicamente e um país muito rico, culturalmente falando – muitos artistas e um mercado que compra; uma profusão de cinemas, teatros, salas para concertos, livrarias e galerias de arte. A topografia dos Estados Unidos é também rica e diversificada – montanhas com neve, desertos, pântanos, florestas, planícies, glaciers. E não vejo os americanos como frios e distantes. São menos fisicamente calorosos do que os brasileiros, mas trocam confidências e intimidades com pessoas que consideram amigas. Como escrevi numa crônica do livro: “Mas, já que os brasileiros, como outros povos, julgam outras sociedades por costumes que lhes são familiares, qualquer cultura que evite abraços e beijos parece fria. Cada sociedade, entretanto, expressa calor humano de modo diverso.”

Você se mudou para o Rio aos 33 anos. O que foi mais difícil em sua adaptação?

M.K.– No início, senti solidão porque não conhecia ninguém no Rio, ou, na verdade, somente uma pessoa, que não era amiga, somente uma ex-namorada de um amigo americano. Não demorou para que eu tivesse experiências sexuais com brasileiras. Mas demorou para que eu fizesse amizades com brasileiros e brasileiras. Eventualmente, fiz parte de uma turma da praia. Mas somente 10 anos depois de morar aqui é que consegui ter amigos e me casar (com uma piauiense).

“Um sentimento bairrista em relação a forasteiros”

Numa crônica do livro, você escreve sobre o excesso de autoestima dos americanos, uma situação diferente dos brasileiros. O que podemos aprender com os americanos?

M.K.– Numa crônica do livro, “Autoestima e suas oscilações”, comparei a autoestima dos americanos à autoestima dos brasileiros. Escrevi: “A maioria dos brasileiros não ganha respeito e sobrevive economicamente por se destacar, mas por ter se integrado a turmas interdependentes, seja a família, redes de ‘quem indica’ ou gangues de traficantes de drogas. E essa conformidade coletiva inibe a expressão pessoal, que aumenta a autoestima. Em comparação, os americanos são ensinados a se destacarem criativa ou intelectualmente e a terem independência financeira desde cedo. Pelo fato de a sociedade americana ser um ensopado de individualistas, e não uma sopa de tipos similares, tem excedente de autoestima pessoal, quiçá narcisismo. Esses traços, diz o ensaísta David Foster Wallace, criaram ‘a geração mais egocêntrica desde Luís 14’ – a fonte do complexo de superioridade americano.” Essa última frase mostra as desvantagens de ter uma autoestima exagerada, algo que você pode ver em alguns americanos.

Na crônica “Eca-tiqueta”, você escreve sobre alguns de seus hábitos à mesa – comer um frango ou sushi com as mãos, por exemplo – que escandalizam, mas refletem seu DNA americano. Uma vez estrangeiro, sempre estrangeiro?

M.K.– Sim. Numa crônica do livro, “Preconceito Universal”, escrevi: “Quando vou a festas e digo a um brasileiro que me mudei para cá dos EUA há 28 anos e estou casado com uma brasileira com dois filhos por boa parte deste tempo, ele geralmente diz: ‘Ah, então você já é brasileiro.’ Mas se alguém na mesma festa perguntar a esse brasileiro quem sou, ele invariavelmente diz que sou um gringo. Ao me dar esse rótulo, os brasileiros não fazem qualquer distinção entre mim e o estrangeiro que chegou aqui ontem. Apesar de eu me ver como meio americano/meio brasileiro, sempre serei considerado gringo aqui. Apesar de o brasileiro ser talvez o povo mais hospitaleiro do mundo, tem, como qualquer outro povo, um sentimento bairrista, ‘nós contra eles’, em relação a forasteiros. Pode se dizer que é uma forma universal de preconceito.”

Eu amo este país e seu povo”

Você já morava no Brasil quando ocorreu o 11 de setembro em Nova York. Como reagiu à tragédia?

M.K.– Foi um baque e um choque terríveis. Eu não sabia quanto ainda me sentia americano, me identificava com meu povo, até esse momento. Eu também tinha que enfrentar reações xenofóbicas de alguns brasileiros. Numa crônica do meu primeiro livro, “Sonhando com Sotaque”, escrevi: “Erros e abusos da política externa dos Estados Unidos não justificam o assassinato em massa de civis americanos. Meus amigos, que aliás condenaram unanimemente o ataque terrorista, compreendem isso. Mas é preocupante que vários brasileiros, de um motorista de táxi até alguns conhecidos, acreditem que os ataques foram uma retaliação justa à ‘prepotência’ norte-americana. ‘Os Estados Unidos receberam o que mereciam’, disse um motorista de táxi. Eu não concordo. Nenhum americano ‘merece’ morrer por causa da política de seu país.”

Dos hábitos e costumes brasileiros, quais são os mais difíceis de compreender e aceitar? E o que você vê de mais positivo nos hábitos culturais americanos?

M.K.– Eu tenho uma dificuldade com a maneira como os brasileiros, e especialmente os cariocas, se esquivam da palavra “não” para se esconderem atrás de expressões comprometedoras, para evitar assumir a responsabilidade pelos atos ou opiniões e para fugir dos confrontos embaraçosos. Explico isso numa crônica do meu primeiro livro. Uma parte dela é assim: “Se essa ‘esquiva retórica’ fosse uma disciplina acadêmica, os brasileiros seriam PhDs nela. Seu talento nesse campo vem de eles terem aprendido como navegar em torno dos negativos. Veja as expressões propositadamente vagas como ‘pode ser’, ‘vamos ver’, ‘se der’, da qual os brasileiros diariamente se apropriam para desviar da palavra ‘não’. É por essa razão que frases igualmente descompromissadas como ‘eu te ligo’, ‘a gente se vê’ e ‘apareça lá em casa’ normalmente são escapadas, e não promessas, de um novo encontro.

A dificuldade com o negativo fica clara principalmente em alguns cariocas, que são craques em convites sem fundos: marcam e depois dão o ‘bolo’. O álibi: ‘Houve um desencontro’. E ‘Pô, você sumiu!?’ é uma reação sem graça, que transfere habilmente o peso do sumiço para o outro. ‘Não deu’ é uma outra forma desse camaleão social camuflar sua saída de um trato não assumido. ‘Não deu’ antecipa ‘fica para a próxima’ que, como ‘eu fico devendo’, empurra qualquer compromisso para o dia de São Nunca, o padroeiro do ‘homem cordial’. E quando alguém que eu acabo de contratar diz: ‘Deixa comigo’ e, pior ainda, me dá ‘já, já’ como prazo, eu me resguardo de uma explicação meio confusa, que começa com ‘é o seguinte…’, prossegue com ‘não deu’ e acaba com ‘fica para a próxima’.”

O Brasil é hoje sua pátria afetiva. Você se imagina vivendo nos Estados Unidos outra vez?

M.K.– Não. Quando você é feliz num lugar, é como se fosse feliz num casamento. Você se entrega (à pessoa ou a um país) e não procura mudar sua situação. Eu amo este país e seu povo, especialmente o povão, e mais especialmente ainda o povão do Nordeste, o mais caloroso e generoso de todos os brasileiros.

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[Paulo Lima é jornalista e escritor, editor da revista eletrônica Balaio de Notícias]