Exageros costumam ser cometidos quando se quer descrever a popularidade da revista O Cruzeiro (1928-1983) entre as décadas de 1940 e 1950. Fala-se, por exemplo, que o semanário do megaempresário Assis Chateaubriand (1891-1968) vendia em média mais de um milhão de exemplares por edição, numa época em que a população brasileira não passava de 50 milhões de habitantes. Sim, chegou a circular perto disso, mas somente em números especiais ou ‘extraordinários’, como se dizia, quando ocorria algum fato de relevância. Aconteceu, por exemplo, na semana do suicídio do presidente Getúlio Vargas (1883-1954), em agosto de 1954.
Afirma-se também que a tiragem superava a soma das concorrentes, o que também não é verdade. Sua circulação, no entanto, era expressiva e sempre superior a meio milhão de exemplares na década de 1950. Por isso, aparecer em suas páginas – de modo positivo ou negativo – implicava alcançar notoriedade instantânea. Mesmo sem o efeito fugaz da mídia eletrônica da virada para o século 21, O Cruzeiro influenciava o modo de ser, sentir e pensar do brasileiro. Graças à equipe de repórteres que conseguiu reunir, transformou um vasto e pouco conhecido país numa contínua aventura jornalística cheia de novidades.
Se a publicação também se definia como ‘a revista que acompanha o ritmo da vida moderna’, o que mais representava esse espírito era a intensa cobertura que dava ao mundo da moda e, principalmente, a publicação das famosas ‘Garotas do Alceu´’ de um certo desenhista mineiro chamado Alceu Paula Penna (1915-1980). A partir de 1938, de um promissor, porém não muito conhecido desenhista de histórias em quadrinhos, Alceu se tornou autor de uma das colunas mais populares da imprensa nacional de todos os tempos. E sua vida foi das mais longas – circulou ininterruptamente por 30 anos.
Porém, às vésperas de se completarem 25 anos da morte de Alceu, em 2005, a importância de seu trabalho e sua influência no comportamento social e até político da mulher brasileira por mais de três décadas ainda espera por um justo reconhecimento. Uma afirmação exagerada? Nem um pouco. Ele foi o criador de um biótipo da garota-padrão do Rio de Janeiro muito antes de Tom Jobim e Vinícius de Morais comporem Garota de Ipanema no começo da década de 1960 – e certamente deve tê-los influenciado.
Rio maravilha
Quando inventou a coluna ‘As garotas’, O Cruzeiro descreveu a seção como aquela que traria para seus leitores ‘garotas endiabradas e irrequietas’, que representariam a ‘expressão da vida moderna’. Sem dúvida que seriam. Enquanto despertavam a fantasia juvenil masculina, essas beldades revolucionavam as atitudes da mulher jovem em todo o país a partir dos modismos cariocas, graças à circulação sem precedentes da revista e também ao talento do próprio autor, claro.
Se analisadas apenas desse ponto de vista, ‘As garotas do Alceu’ prenunciaram, pregaram e difundiram, entre 1938 e 1968, as tendências de liberdade, independência e emancipação da mulher ocidental, às vezes à frente das atitudes mostradas pelo cinema e pela moda. Suas meninas eram, no mínimo, ousadas para os valores cristãos de seu tempo. Apareciam num universo do qual os homens raramente faziam parte como protagonistas – eram apenas coadjuvantes – e curtiam a vida a bordo de Cadillacs sem a necessidade de companhias masculinas. Elas saíam sozinhas para os bailes de Carnaval e paqueravam com braços, pernas e colos à mostra.
Alceu fazia isso de modo a convencer seus leitores e leitoras de que a liberdade e a sensualidade femininas nada tinham a ver com vulgaridade ou, no extremo oposto, com a castidade. Daí suas mulheres chiques e elegantes, sedentas de aventuras e de liberdade. Se somente em 1962, com a criação do chamado Estatuto da Mulher Casada, a brasileira passou a não depender mais da autorização por escrito do marido ou do pai para trabalhar fora de casa, ela deve muito do que conquistou à militância de Alceu. Ele fez parecer natural em seu universo de imaginação o direito de a mulher decidir por si própria o que fazer da sua vida e como se divertir.
Este livro conta um pouco da excepcional vida de Alceu, um raro e multitalentoso artista que se tornou um dos mais conhecidos nomes da imprensa brasileira no período mais efervescente da vida social e cultural carioca no século 20. Mostra que seus desenhos conviveram com – e registraram – a explosão do cinema e do rádio, a fase áurea dos cassinos, teatros e cinemas, a chegada do rádio e da televisão, a valorização da moda pela imprensa, o sucesso inovador do jornalismo-reportagem e a introdução das histórias em quadrinhos no país.
Destaca ainda a importância de Alceu como o designer que deu cara a uma época marcada por crises políticas, ditadura militar, conquista de dois campeonatos mundiais de futebol, o aparecimento de grandes escritores e compositores e a modernização da imprensa brasileira. Tudo isso aconteceu ao longo dos trinta anos em que Alceu brilhou e se transformou na ‘cara’ de um tempo de progresso sempre lembrado com saudosismo e nostalgia – não é possível lembrar a publicidade, o entretenimento e o jornalismo desse período sem apontar seus desenhos e letras personalíssimos.
Suas garotas acompanharam todas essas mudanças de modo gracioso, sensual e libertário. Não por acaso, meio século depois, são ainda exaustivamente reproduzidas para ilustrar matérias, reportagens e livros sobre o Brasil da virada para a segunda metade do século 20. Ao mesmo tempo, Alceu contribuiu para consagrar a figura da beleza da mulher carioca por meio de suas sensuais pin-ups. Pelas páginas de O Cruzeiro, o país botou na cabeça que, além de metrópole e centro gerador de cultura, hábitos e modismos, o Rio tem também as mulheres mais bonitas. Como um lugar poderia ter tudo? O Rio tinha. E Alceu revela o lado mais belo disso: o feminino.
Em preto e branco
A idéia de desenvolver este trabalho nasceu de um pedido do editor Wagner Augusto para que reunisse num volume alguns dos artigos sobre artes gráficas – cartuns, caricaturas e quadrinhos – que publiquei entre 1997 e 2003 no caderno ‘Leitura de Fim de Semana’, da Gazeta Mercantil, de São Paulo. A edição estava quase pronta quando pedi a ele um prazo maior para levantar novas informações sobre Alceu Penna. Argumentei que seria uma boa oportunidade para dar ao leitor mais detalhes sobre sua vida e sobre a importância que teve o desenhista para a história da imprensa, da moda, dos quadrinhos e do design no Brasil.
Para isso, procurei novamente Thereza Penna, dona Therezinha, irmã do artista e que tão gentilmente havia me ajudado a fazer o perfil de Alceu em novembro de 2000. Mais uma vez, seu entusiasmo se mostrou contagiante. Passei uma manhã e parte da tarde em seu apartamento. Além de uma longa entrevista, fiquei maravilhado com o que vi: dezenas de pastas cuidadosamente organizadas, montanhas de revistas, recortes, livros etc., que reúnem alguns milhares de originais de Alceu.
Percebi que muito da personalidade do artista aparece no arquivo, principalmente seu perfeccionismo incorrigível. Descobri que, antes de fazer um desenho, por exemplo, muitas vezes ele construía vários esboços e repetia o trabalho final duas ou três vezes até alcançar o resultado desejado. Nem sempre isso significava agradar a quem fizera a encomenda. Notei ainda que, como mestre em desenhar garotas seminuas, não raro ele enfrentava problemas com censura. As ilustrações revelam que Alceu queria despi-las e os anunciantes resistiam à erotização de suas garotas. Algumas vezes, os desenhos passavam por negociações em nome da moral e dos bons costumes.
Alceu guardou em seus arquivos as belas garotas em poses mais ousadas, que jamais foram publicadas. Uma constatação que se faz ao comparar o que saiu e o desenho original, com a garota mais despida, é que esse foi um talento podado por toda a vida no que sabia fazer melhor. Essa descoberta, aliás, desmente a afirmação corrente de que ele era principalmente um conservador. Tive acesso a rascunhos, material não publicado e documentos pessoais que contradizem isso.
O grosso de sua produção se encontra hoje no arquivo do jornal Estado de Minas, para onde foi levado o acervo de O Cruzeiro após sua primeira interrupção, em 1975. Outra parte considerável – a de moda – está distribuída entre o Museu de Arte de São Paulo (MASP), a companhia Rhodia e pessoas que trabalharam com ele e se tornaram suas amigas.
Antes mesmo de terminar o exame do material que dona Terezinha conhece com uma intimidade impressionante – ela sabe onde tudo está –, concluí que Alceu merecia um trabalho mais extenso. Não só isso. Deveria ser tema único de um livro. Observei que parte daquela preciosidade da memória gráfica brasileira que a irmã tenta há anos editar em álbuns à altura do talento de Alceu precisava ser levada a público de alguma forma.
O resultado desse interesse e entusiasmo diante da grandiosidade quase esquecida da obra de Alceu Penna aparece nas páginas a seguir. Creio ser apenas um aperitivo em preto e branco de sua inacreditável produção que espera um editor interessado em fazer com que ‘As garotas do Alceu’ saiam da gaveta e voltem a circular por aí, belas e joviais como sempre, ainda bastante charmosas. Abram alas para elas, cavalheiros e damas. E para o talento de Alceu, o inventor da mulher carioca.