Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As pérolas de um cronista

Em toda a história do jornalismo maranhense, nenhum profissional mereceu tantas manifestações de reconhecimento pelo valor e amizade como José Chagas. Passada a data em que se comemoraram seus 80 anos de idade, continua recebendo novas homenagens, merecidamente. Veremos o porquê, mas antes…

A imagem que guardo de José Chagas (Paraíba, 1924, Perfis Acadêmicos – AML, 3ª ed.) tem um misto de surpresa, alegria e admiração. Explico: eu saltava do bonde, década de 1950, que fazia parada no Canto da Viração, acompanhado de um colega. Estávamos fardados de estudante do Liceu, com uma camisa branca, calça e um dólmã cinzento de quatro bolsos, um externo e outros internos, o que facilitava guardar lembretes sobre o assunto da prova. Eis que surgem à minha frente dois cidadãos, cada um portando um instrumento musical, um saxofone e um violão. Pegaram o mesmo transporte. Ambos tinham aspecto de pessoas comuns, pacatas e pareciam felizes, pelo que fizeram ou iam fazer. Perguntei ao colega liceista sobre aquelas duas figuras que de princípio me pareceram diferenciadas e recebi como resposta:

“Um é o poeta e jornalista José Chagas; o outro, também é jornalista. É o professor Paulo Nascimento Moraes,que dá aulas no colégio `Zoé Cerveira´, estabelecimento de ensino em que eu estudei quando funcionava à rua da Paz, próximo da Praça Deodoro.”

Fiquei extasiado em olhar dois jornalistas que eu só conhecia pelos artigos, editoriais e crônicas que publicavam nas folhas locais, numa época rica de acontecimentos políticos e linguagem nem sempre civilizada. O Paulo, que depois soube ser filho do meu professor de Geografia, José Nascimento Moraes, cuja fama no jornalismo local assumiu a grandeza da combatividade pelo vigor das polêmicas.

Colega de redação

Nessa época eu participava de política estudantil, colaborava com o jornal O Liceista e já experimentava o gosto de escrever. Daí, resolvi visitar a redação de O Globo e O Imparcial, com a desculpa de falar com os colegas que lá trabalhavam, o saudoso Pedro Santos e o Napoleão Saboia, hoje um nome internacional. Numa dessas oportunidades vi o mestre Nascimento Moraes, de idade avançada. Escrevia um tanto sonolento, artigo com o pseudônimo de “Brás Sereno”. Foi o máximo.

O bater das máquinas de datilografia, as pesadas Remington, pelos redatores, cuja zoada incomodava os ouvidos sensíveis, não passava de uma sinfonia de Beethoven. Eu observava o movimento dos repórteres e redatores. Fiquei impressionado com a habilidade e a ligeireza na elaboração do texto por alguns profissionais. Prometi a mim:

“É isso que eu quero fazer. Promessa cumprida. Passaram-se cinquenta anos de atividades ligadas ao jornalismo.”

Mas não estou aqui para falar de mim, e sim, do acadêmico José Chagas, essa extraordinária figura humana, de quem, décadas depois, viria a ser colega de redação. Trabalhamos no Correio do Nordeste, Jornal do Dia e Jornal de Bolso (os dois últimos da mesma empresa). No Jornal do Dia, que tinha como diretor Joaquim Itapary, exerci a secretaria. No Jornal de Bolso, fui o editor e lá, com a ajuda de Edson Vidigal, selecionamos um grupo de pessoas inteligentes e criamos a coluna que O Estado do Maranhão mantém: “Hoje é dia de”. Dela participei no início a convite do editor Antonio Carlos Lima.

Advertência ao “governador-candidato”

Trabalhar ao lado de Chagas dá segurança pelo temperamento quieto, moderado e principalmente pela grandeza do caráter. Estava sempre disponível para ajudar e ensinar os que lhe solicitavam. Cumpria com pontualidade as tarefas que lhe cabiam. Escrevia a crônica diária, geralmente discorrendo sobre o cotidiano e a vida da cidade.

Longe de agressões para com aqueles que não concordavam com as ideias e, às vezes, o melindravam. Nos momentos nervosos provocados pela política, como na fase da ditadura militar, as autoridades o consideravam um elemento perigoso. Recebia ordens para prestar esclarecimentos por bobagens. Manteve o equilíbrio necessário, o bom senso e a força da personalidade. Merece louvores pelo comportamento sério. Nunca mudou de lado por interesses pessoais.

Sua posição política, até hoje, permanece sem alteração. Sempre ao lado do amigo, de quem guarda grande respeito, principalmente como intelectual, o senador José Sarney, embora em certos momentos tenha discordado dele publicamente, sem que ficasse nenhum resquício de mágoa. Sempre se entenderam bem. Quando Sarney se elegeu governador do Maranhão, em 1966, passou a malhar o governo anterior, como se continuasse candidato. Chagas deu-lhe uma chamada, alertando-o, ao ver nesse tipo de comportamento um ato desnecessário, e escreveu o artigo “Governador-candidato” no Jornal do Dia, advertindo-o:

“Como velho amigo de Sarney, desde quando ainda não era o grande e admirável político de hoje, mas apenas um dos maiores valores intelectuais da terra; como um homem do povo, e por isso mesmo, confio num moço eleito pelo povo; como eleitor que pela primeira vez viu valorizado o seu voto, tomo a liberdade de pedir democraticamente ao governador que procure eliminar o quanto antes o insistente candidato que ainda há nele, pois isso é o que se comenta aqui fora, com certo desagrado para todos e quase decepção para alguns.”

O cronista arrematou a advertência citando declaração do governador de Pernambuco, Paulo Guerra, que após ganhar o pleito eleitoral, disse:

“Vamos esquecer o passado e fazer depressa o que se tem para fazer porque o povo não pode mais esperar, está cansado disso, e é ele quem manda.”

“Encarnou São Luís”

Chagas nunca se vendeu politicamente, embora houvesse quem o tentasse com propostas que muitos não recusariam. Coerente com os pontos de vista que defendia, jamais se traiu ao contrariar o ideário sedimentado pela formação moral. Nunca foi capaz de abandonar no meio do caminho os amigos e deles nada pedia que não fosse amizade, sincera e honesta. Por isso, ao longo dos seus mais de 80 anos de idade, é uma pessoa que continua fazendo amigos e sendo amado pelos que o conhecem.

Os textos do grande poeta e cronista são joias preciosas, que nos parecem atender às Seis propostas para o próximo milênio (livro de 1988), do imenso escritor Italo Calvino, feitas para serem usadas pela literatura, mas bem que servem para o jornalismo e para a vida, pela praticidade. Ei-las: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade. O fazer jornalismo considera indispensável o uso de tais atributos.

Em cada crônica ou artigo chaguiano, geralmente transportados para o universo da prosa, encontram-se tais características, que atraem e seduzem o leitor. É preciso observar que o poeta fazia isso muito antes do lançamento das propostas de Calvino, um fabulista e ficcionista extraordinário. Não é à toa, portanto, o motivo pelo qual se tornou o mais lido, discutido e venerado cronista desta cidade que tanto ama, ao ponto de quase toda a sua obra não falar de outro assunto – às vezes com amor e ódio – que não seja defender e exaltar a nossa cultura e os valores mais caros desta Ilha.

O mesmo que disse Chagas sobre o romancista Josué Montello pode ser revertido para ele:

“Josué não se ocupou simplesmente escrever sobre São Luís; ele escreveu São Luís, vivenciou São Luís, encarnou São Luís.”

A estrada política

E o que mais fez o poeta a não ser se entregar de corpo e espírito à cidade? Doou todo o saber, a experiência, a generosidade em defesa do nosso passado e presente. Brigou por um futuro melhor, sob todos os aspectos, ou seja, sócio-cultural e político e, para tanto, candidatou-se e elegeu-se suplente de vereador, para depois assumir a titularidade. O poeta teve ainda uma segunda decepção ao se candidatar a suplente de senador. Ao conhecer os escaninhos da política, viu que essa não era a dele e caiu fora. Voltou à sua tribuna privilegiada, o jornal, através do qual fez mais do que como vereador. Para os seus leitores, foi uma festa. O Chagas verdadeiro é o Chagas homem de jornal, homem de letras, dos livros, dos amigos e sem coloração partidária.

E para onde ele fosse, aqueles que o admiram iam atrás. Grande prova desse reconhecimento deu-se ao completar 80 anos de vida, bem vividos. O fez ao lado dos amigos e daqueles que o admiram. Nenhum jornalista viu-se cercado de tantas manifestações de carinho, com uma programação vasta de homenagens, pelos 80 anos de idade. Gostaríamos que se prolongasse, pelo muito que tem a oferecer.

Passados alguns anos da comemoração dos 80 anos, ainda é homenageado. Desta vez pela iniciativa da acadêmica Ceres Costa Fernandes, diretora do Centro de Criatividade Odylo Costa Filho e criadora do Café Literário. Houve a participação dos intelectuais: o acadêmico Sebastião Duarte, professora Leda Nascimento e o próprio homenageado que, apesar do estado de saúde, já que não escreve mais, em momentos especiais ainda é capaz de oferecer pérolas. Vale lembrá-lo sempre quanto às virtudes do homem e o mito que ele representa para todos nós.

Há um episódio marcante na estrada política do poeta quando tentou uma vaga de vereador, apoiado pelo seu chefe do Jornal do Dia, e candidato a deputado federal, Alberto Aboud, com quem bebericava nos fins de semana, na chácara do industrial. Acontecia que o chefe, em certos momentos, inspirado por umas e outras, com aquele vozeirão e sobrancelhas imensas, anunciava-lhe aumento salarial, com justiça. Recebeu também apoio do candidato à Câmara Federal Henrique de La Roque. Ao justificar o voto para si, deu uma de Malba Tahan (O homem que calculava), escritor, professor e matemático natural de Pernambuco que escrevia sobre o Oriente como se tivesse nascido nas areias do deserto do Saara.

Cronista nato

Chagas, numa crônica, justificou que todo político tem virtudes e defeitos, dos quais não escapavam nem Alberto e muito menos o La Roque, com aquele jeito manso de frade franciscano. Adiante, insinuou que o eleitor ao achar defeito em um, votaria nas qualidades do outro, logo, como ele se iniciava na política e sem experiência nesse campo, quem votasse em Alberto e La Roque poderia votar nele. E deu certo. No lugar de ganhar um voto, com o apelo e a saída para o problema, levou dois. Grande Chagas,

A respeito do prosador e poeta, quem deu este depoimento foi um dos maiores críticos literários do Brasil, Wilson Martins: “José Chagas supera de longe as limitações provincianas para instalar-se nas dimensões mais amplas do provincial, tendo reconduzido nosso lirismo às fontes autênticas da inspiração que são do homem e da paisagem concretamente existentes no mundo real (…).”

Desconheço que algum estudioso da crônica tenha pesquisado a sua produção, para fins didáticos ou na dimensão que o jornalismo exige. Digo sem medo de cometer exageros ou absurdos, ou talvez, repito o que outros sabem… Chagas, com o seu estilo inconfundível, é dos maiores cronistas do Brasil. Mais moço, ao lado da geração de Carlos Drummond de Andrade, e depois pode-se incluí-lo junto ao grupo mineiro que tanto sucesso fez nessa especialidade: Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Affonso Romano de Santana. A crônica, segundo a literatura, não passa de um gênero menor. Acredito. Crônica não é romance, mas depende de quem a exercita. Temos o Rubem Braga, que não fez outra coisa na vida, apenas crônicas, depois de ser correspondente na 2ª Guerra Mundial. Ficou famoso com as reedições dos livros, com um público que não o esqueceu.

“Ela cresce”

Chagas foi longe. O modo de escrever o diferencia. É merecidamente reconhecido nos grandes centros do país. Todos viraram lenda pelo acabamento perfeito do gênero que, ainda hoje, faz sucesso. São Luís é terra de grandes cronistas – basta citarmos o nome de Josué Montello, Lago Burnett, Bernardo Coelho de Almeida, Carlos Cunha e outros. Eu falei dos mortos. Há, porém, mais. Vivos tem muitos e bons. A questão é saber-se distinguir crônica do artigo ou editorial.

O nosso prosador possui modo próprio no desenvolvimento do tema, sem afetação, vulgaridades. É um expert em trocadilhos e metáforas que, bem empregados, dão vida e beleza ao texto. É espirituoso. Apoia-se numa linguagem clara e objetiva que conduz e fascina o leitor, levando-o às culminâncias do prazer. Certas crônicas, ao explorarem temas delicados, fluem com a destreza que só um mestre das palavras é capaz de fazer. Muitas vezes causam tristeza ao tratar da morte de um amigo, como Paulo Nascimento: “Um amigo chamado saudade”. Ou risos, ao criticar certas administrações públicas visando ao bem comum. Não houve homens públicos, de presidente da República ou governador, prefeito ou outra autoridade, principalmente do Maranhão, que escapasse da crítica com seriedade, ironia e bom humor.

Destaco uma crônica, das inumeráveis publicadas, que considero verdadeiramente um primor, das melhores de tudo que li. José Chagas, paraibano que veio cedo para São Luís, com títulos ganhos, amizades e serviços prestados à cultura local, tornou-se maranhense de coração. Ao chegar à Ilha, usava uns paletós mal-ajambrados e hospedou-se numa pensão modesta. Lá morava uma menina de seis anos de idade, da qual reclamava falar demais e do som alto do rádio. Repetidamente, tocava a música “Pisa na fulô”, de João do Vale, e a garota repetia a todo pulmão. O mesmo não acontecia com ela quando o poeta fazia os ensaios no saxofone. Recebia palmas. Ficava pela manhã escrevendo no hotel, o que levava a menina a pensar, nada fazer, logo, tinha uma boa vida. Para a garota, trabalhar era derrubar uma casa e construir outra. Às vezes conversavam e isto lhe dava prazer, por lembrar-se da sua infância. Autor de uma vasta obra, que chega a mais de vinte livros, escreveu a propósito “Velha crônica para hoje” e concluiu:

“O dia todo era uma alegria só. E à tarde, quando eu ia sair, acompanhava-me até a porta onde ficava gritando, numa deliciosa vaia infantil:

`Engole ele, paletó!´

O carnaval dos homens ensinara-lhe aquela expressão com que ela podia rir-se dos próprios homens (…). Agora, quando recordo aqueles dias, fico a imaginar que, em verdade, só uma coisa é triste numa criança: é que ela cresce” (A Arte de falar bem, ed. Geia, 2004).

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Professor emérito da UFMA, jornalista e escritor