O que faz um jornalista depois de tanto escrever na imprensa? Muitos fazem o que faz Mario Pontes: escreve livros. Jornalista não pode cansar de escrever. Escrever é seu ofício.
Mas o caso é singular. Por décadas, ele foi editor de cadernos de cultura do Jornal do Brasil. Além disso, publicou diversos livros de ficção e ensaios, tendo ainda traduzido 25 livros, entre os quais obras de Camilo José Cela, Júlio Cortázar e Isabel Allende. Sem medo de empreitadas assustadoras, traduziu O saber grego (66 autores europeus).
Fazia 26 anos que Mario Pontes publicara os contos de Milagre na salina quando publicou este Um homem chamado Noel (138 pp., Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, Fortaleza, 2003). São contos que o leitor pode enquadrar em ritmo de novela, tais as recorrências do personagem que atravessa todas as histórias aqui reunidas. O livro abriu a Coleção Terra da Luz, que tem o propósito de conquistar novos leitores para os autores cearenses.
Grandes, complexos, isolados e estranhos são nossos arquipélagos literários. Como é que um livro tão bem escrito pode passar quase despercebido?
Batente da redação
A imprensa tem sido para muitos jornalistas o que a cafua é para o menino da primeira história, ‘Ícaro’.
‘Tem uma cafua no Educandário. Queriam me trancar lá… – Que diabo é cafua, menino? – Uma despensa que ninguém usa. Deste tamanhinho, escura, cheia de ratos. (…) – E o professor Hilário? O que foi que disse dessa história? – Que eles estavam certos. Que eu merecia ser trancado na cafua’.
Mas no desfecho do conto, a bonita conclusão do menino:
‘Sabe de uma coisa? Nesta história toda, teve uma coisa de que eu gostei, e muito. Voar, pai, voar!’
No conto seguinte, ‘A morte vermelha’, uma sutil comparação entre a cor de Marte e certa cor muito freqüente na Terra, o sangue. Saindo do observatório, o menino ficará confuso. O pano azulado que está no caixão do irmão semelha ter a mesma cor do planeta há pouco contemplado.
Em ‘O rapto de Sabina’ regurgitam antigas memórias no diálogo entre um jornalista e uma pedinte:
‘O que você faz para viver? – Sou jornalista. – Eu devia ter imaginado! Você não poderia ser outra coisa na vida. Só gostava mesmo de livros. Muito mais de livros do que de mim’.
Com sutilezas de bom narrador, Mario Pontes refaz o percurso da mendiga quem, violada pelo pai, é raptada e agora tem que tomar providências:
‘Dois raptos seriam demais para uma vida só’.
Muitos jornalistas fizeram prosa de ficção, escrevendo contos, nos tormentosos anos setenta, para poderem dizer disfarçadamente o que não podiam escrever na imprensa onde labutavam. Mas este não é o caso de Mario Pontes, que naqueles anos estava no batente do jornalismo e ali, atento a todo o Brasil, procurava espelhar nos cadernos que dirigia as revelações literárias que ocorriam, sem esquecer os nomes consolidados.
Realidades distantes
Os contos de Um homem chamado Noel não precisam disfarçar nada. E retomam a temática de Milagre na salina por uma obsessão muito cara a quem escreve: todos escrevemos sobre os mesmos temas, a vida inteira. Mudamos apenas os modos de expressá-los.
O escrita de Mario Pontes evidencia o talento de uma geração de jornalistas que ao entardecer faz ficção. Ele começou antes, aos 45 anos, e agora, nos passos de Moacir Japiassu, que já nos deu dois belos romances, vem com estes contos instigantes e, principalmente, bem escritos.
Textos como esses de Mario Pontes lembram um tempo em que para escrever na imprensa era preciso saber escrever. E como aprendiam? Em boas escolas, com bons professores, tendo o indispensável apoio de livros de autores exponenciais das diversas literaturas que lhes interessavam. Certamente os jornais também eram diferentes. E ainda havia as contribuições dos autodidatas, caso de Mario.
Os contos de Mario Pontes, sem trocadilho, são pontes brasileiras. Unem margens de realidades distantes, mostram o que há em outras margens, mostram outras marginalizações. E são, mais que tudo, amostras do quanto a literatura brasileira deve ao jornalismo e vice-versa. A parceria tem sido muito proveitosa.