Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

As tramas da rede

A noção de rede perpassa hoje quase todas os campos das ciências humanas e exatas, puras e aplicadas. A noção de rede vem despertando um tal interesse nos trabalhos teóricos e práticos de campos tão diversos como a ciência, a tecnologia e a arte, que temos a impressão de estar diante de um novo paradigma, ligado, sem dúvida, a um pensamento das relações em oposição a um pensamento das essências.

Procuramos reunir neste livro artigos que tem como principal objetivo fazer compreender a um público amplo e transdisciplinar que se quisermos entender o mundo em que vivemos, qualquer que seja o domínio considerado, devemos pensar sobre a noção de rede. Mas se elegemos a figura da rede como principal metáfora para entendermos as transformações em curso, não podemos entender sua importância e extensão se a reduzimos ao fato histórico da emergência das novas tecnologias de comunicação e do ciberespaço.

Muito embora os textos aqui apresentados, escritos por especialistas de áreas tão distintas quanto a filosofia, as ciências humanas e exatas, a arte e a tecnologia, nos ofereçam distintos interesses e abordagens sobre as questões das redes, eles compartilham algo em comum: a rede se tornou uma dimensão, indissociavelmente ontológica e prática, de modelização do mundo e da subjetividade. O pensamento das redes está associado a pelo menos três temáticas gerais, cada uma delas constituindo uma parte do livro: a filosofia da rede, a rede como nova dimensão da comunicação e a estética da rede.

Na primeira parte, A filosofia da rede, são discutidas as implicações epistemológicas, filosóficas e cognitivas dos conceitos de rede. Em um artigo que nada mais é do que um resumo de seu livro sobre as redes ‘Telecomunicação e a filosofia das redes’ (1997), Pierre Musso nos faz uma história social e crítica da noção de rede. Em sua análise, ele restabelece o legado de Claude Henri de Saint-Simon, que renova a leitura do social a partir do conceito de organismo-rede na segunda metade do século XIX. Bruno Latour e Michel Callon são filósofos que ao mesmo tempo deram continuidade e renovaram a epistemologia francesa dos anos 60, ao recusarem a separação estanque entre as atividades científicas e as outras práticas do conhecimento. Para eles, a figura da rede é, não apenas uma forma de contrapor ao modelo do difusionismo o modelo da tradução, mas, sobretudo, uma forma de superação da distinção entre a objetividade científica e o interesse social. Os textos de Latour e Callon discutem a importância e a dinâmica das redes na constituição da ciência, do mercado e da inovação. Para eles, uma determinada idéia, conceito, procedimento e dispositivo técnico-científico não será aceita se não mobilizar uma rede sócio-técnica cujos elementos são heterogêneos e envolve necessariamente atores humanos e não-humanos. Virgínia Kastrup, discute o conceito de rizoma em Gilles Deleuze e o conceito de rede em Bruno Latour – que é como que a versão empírica e atualizada do rizoma -, conceitos que nos permitem superar os modelos de representação nos estudos cognitivos e apontam para a dimensão criadora ou poietica da cognição, o que cria novas condições para reavaliar o estatuto do si mesmo que resulta da atividade de conhecimento-criação da realidade.

Na segunda parte, A rede como nova dimensão da comunicação, reunimos contribuições que deixam claro que a comunicação, através da rede, se tornou uma dimensão fundamental para a constituição do espaço e do tempo, bem como do novo sistema de produção e reprodução do capital. Em seu brilhante brilhante artigo, Os paradoxos da teleinformática, Jean-Louis Weissberg analisa a incidência cultural da tele-informática. Para ele, não apenas as visões estabelecidas são simplificadoras – catástrofe do tempo real, ou, ao contrário, supremacia do saber como fundamento das relações sociais –, assim como não há incidências culturais unilaterais e globais observáveis desde o momento que examinamos os extratos do trabalho da telepresença. Pelo contrário, a telepresença produz tensões antagônicas que coexistem: desterritorialização e ancoragens locais, tempo diferido e tempo real, seqüencialidade e hipertextualidade, aceleração e desaceleração. Marc Guillaume mostra que a noção de «commutação» está na base de dispositivos tão diversos como o hipertexto, a informatica difusa, a Internet, a empresa virtual e o hipercomércio. Por esta razão, se queremos controlar as forças commutativas, que se multiplicam no mundo onde tudo, incluindo os nossos gens, está sendo digitalizado, devemos comprender suas estratégias e movimentos. Para Toni Negri e Michael Hardt a produção biopolítica é a nova dimensão produtiva do « império ». Para eles, a biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução, um poder que se exerce sobre a vida, e passa a ser uma potência, espinosiana, de vida, que resiste aos poderes estabelecidos e se transforma no poder de afetar e ser afetado. Com a biopolítica, a vida ao mesmo tempo se dissemina e se hibridiza, se moleculariza e se descola das dicotomias paralisantes – biológico/mecânico, individual/coletivo, humano/inumano – para ganhar uma dimensão ampliada (Bios). Já Pierre Lévy mostra que a noção de sociedade da informação e de economia da informação não dão conta, senão de forma muito superficial, das transformações em curso. É preciso exprimir a realidade contemporânea de outra forma : a riqueza procede das idéias em um meio favorável a multiplicação das idéias. É por esta razão que, segundo ele, a inteligência coletiva, a economia da atenção e a sociabilidade virtual são ao mesmo tempo o futuro e o ponto de passagem da produção de riqueza. Para Paulo Vaz, em um texto que já se tornou um clássico entre nós, durante a sua fase inicial, a Internet suscitou múltiplas esperanças. Não se via que o desenvolvimento da rede provocaria um ‘dilúvio’ de informações. Este descompasso entre o sonho e o esquecimento, pode ser explicada se compreendermos os conceitos que ordenam a experiência do espaço na cultura ocidental. Neles, as esperanças resultam da tendência a se pensar a rede a partir de questões geradas por uma espacialidade de determinação, formada pelo meio e pela cultura. A limitação da promessa é o excesso, sua ambigüidade é a invasão do cotidiano pela eficácia técnica. O texto de Henrique Antoun trata da emergência da guerra em rede nas comunidades virtuais da cibercultura. Contrapondo-se à guerra da informação empreendida pelos Estados através das mídias de massa, o movimento de luta e reivindicação Zapatista é a convergência de diferentes redes (grupos de ONGs, grupos de hackers, grupos indígenas, grupos de guerrilha) que formam uma comunidade virtual capaz de fazer a dicotomia política entre as forças etno-religiosas regionais e as forças corporativas globais desaparecerem em seu interior. O amplo uso das redes tecnológicas serve para permitir a articulação de redes de colaboração e luta através do ciberespaço, transformando assim o sentido da democracia e da política na contemporaneidade.

Na terceira parte, Ética e estética da rede, dispomos de uma série de textos analisam as transformações das condições da nossa experiência do espaço e do tempo das redes telemáticas. Roy Ascott, um dos pioneiros da arte telemática, introduz em seu artigo Homo telematicus a belíssima noção de telenoia para exmprimir a idéia de uma conectividade generalizada: ‘consciência em rede’, ‘lucidez interativa’, ‘pensamento à distância’, ‘espírito em geral’ (Gregory Bateson). Em A estética da rede, Mario Costa afirma a vocação estética das novas tecnologias: viabilizar uma problematização radical do campo ‘artístico’ e a definição de um novo campo estético que pode ser designado como sublime tecnológico. Segundo ele, noções como ‘obra’, ‘sujeito’, ‘criatividade’, ‘expressividade’, ‘estilo’, já tornadas fortemente problemáticas pelo advento da fotografia, resultam de todo improváveis, inconsistentes e, sobretudo, desnecessárias com as novas tecnologias da imagem. Kátia Maciel e Nina Velasco analisam o conceito de espaço híbrido, característico da arte contemporânea, na obra do artista brasileiro Eduardo Kac. Kac constrói ao longo de sua obra uma espécie de Telemática tropical onde procura reconduzir os fluxos da vida como elementos da arte. Plantas, animais, fax, computadores, genes são matéria para a hibridização de circuitos de vida como dados da rede. Com este gesto, o artista dispensa tanto o objeto como o espaço original gerado por este e cria espaços múltiplos e híbridos para a comunicação e para a arte. A proposta de Gilberto Prado e Luiza P. Donati é fazer um breve relato de espaços artísticos concebidos especificamente para a Web, apresentados em três situações distintas, que propõem transformações nas possibilidades de participação, interferência e expressão dos participantes. Dentre as diversas interfaces disponíveis na Web, os autores previlegiam a utilização de câmeras de vídeo que transmitem imagens em tempo real e uma vez que introduzem novas possibilidades de criação, aprendizagem e experimentação artística. Em A arte e tecnnologias móveis, Adriana Souza e Silva trata do papel da arte midiática na configuração de espaços híbridos, transformando os espaços (impessoais de circulação) em lugares (públicos e vívidos de comunicação). Em especial, são analisados projetos artísticos que utilizam tecnologias móveis de comunicação, como os telefones celulares..

Para terminar, notamos que este livro é fruto do esforço e da dedicação de muitas pessoas, pesquisadores, professores, alunos em particular os meus colegas do Núcleo de Tecnologia da Imagem da UFRJ. […].