Atenta à crise aberta no Judiciário pelo prende-solta que marcou nos últimos dias a chamada Operação Satiagraha, a imprensa não se aplicou muito em esclarecer as suspeitas de relações nebulosas do banqueiro Daniel Dantas com jornalistas. Em um dos documentos divulgados pela Polícia Federal, entre os papéis e registros eletrônicos do dono do Opportunity, apareceu um bilhete com referências a ações que o grupo deveria tomar, segundo Dantas, para ‘plantar’ na imprensa notícias convenientes aos seus interesses. A exceção é Carta Capital, que em editorial assinado por Mino Carta se refere, em sua última edição, a ‘mercenários da imprensa escrita e falada’ que, segundo afirma, aconselha e defende o controverso banqueiro.
O temperamento do veterano jornalista aconselha a considerar duas vezes os adjetivos que utiliza para se referir aos seus desafetos. A guerra escancarada entre Carta Capital e Daniel Dantas pode ter prejudicado a credibilidade da revista, muitas vezes acusada de mover uma perseguição doentia ao banqueiro. Mas a releitura de algumas das muitas capas dedicadas aos negócios escusos do dono do Opportunity revela que a revista de Mino Carta – ressalvada, se possível, a má prática jornalística de editorializar o noticiário – mostra que nenhum outro órgão da imprensa brasileira contribuiu tanto para trazer à luz o rastro de lama sobre o qual ele construiu seu império.
Seleção conveniente de perguntas
As vinte questões apresentadas por Veja que, segundo o semanário de maior circulação do País, Dantas ainda precisa esclarecer, são muitas mais. A revista da Editora Abril produziu uma seleção conveniente dos casos cabulosos que fazem de Daniel Dantas um símbolo das piores perversões da relação entre o Estado e o capitalismo brasileiro. Da mesma forma, a reportagem de Época, embora mais alentada, segue a mesma trilha já selecionada pelos grandes jornais desde a deflagração da Operação Satiagraha. Alguns detalhes do noticiário merecem reflexão adicional.
Um deles se refere à carteira de clientes do Opportunity. Por mais aceitável o argumento de que o banco atua sob licença das autoridades monetárias, entre elas a Comissão de Valores Mobiliários, deveria atiçar a curiosidade dos jornalistas o fato de algumas personalidades e instituições – como o instituto Fernando Henrique Cardoso – manter relações com o banco de Daniel Dantas. Difícil aceitar que seja simplesmente pelo seu desempenho, uma vez que os fundos administrados pelo Opportunity não se destacam especialmente no cenário de alternativas do mercado. É certo que a empresa de avaliação de risco que monitora o banco destaca o chinese wall, ou separação entre a administração do banco e a gestão de recursos de terceiros, como confiável, e analisa favoravelmente a qualificação dos profissionais que cuidam das atividades do banco de investimentos. Mas não seria o caso de perguntar a alguns clientes por que mantêm relações com uma instituição cujo controlador freqüenta mais o noticiário policial do que os cadernos de negócios?
Plantações e assessoria de imprensa
Outra questão, suscitada pelo bilhete no qual Daniel Dantas praticamente determina que informações de seu interesse sejam publicadas pela imprensa, é a relação entre as assessorias de comunicação e a mídia. A arrogância que transparece na certeza de Dantas de que as notícias que considera convenientes serão ‘plantadas’ na mídia leva necessariamente – ou deveria levar – a alguma curiosidade sobre as relações entre o Opportunity e as redações, mediadas por sua assessoria de imprensa. Se, como insinuam alguns jornais, o banqueiro pode ter chegado a chantagear o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para convencê-lo a não substituir o presidente da Comissão de Valores Mobiliários, que tipo de argumento lhe daria tanta convicção de que sua vontade seria atendida pela imprensa?
Uma leitura cuidadosa do material publicado nos últimos dias pode lançar dúvidas sobre a origem de algumas notícias. A primeira delas – que precisou ser desmentida três vezes para deixar as páginas dos jornais – foi a especulação de que o juiz Fausto Martin de Sanctis teria autorizado a Polícia Federal a bisbilhotar as comunicações do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes. Outro material que tende a favorecer o banqueiro é a busca de erros gramaticais no inquérito, texto que vazou da imprensa para a internet e se reproduziu tão rapidamente que seria candura demasiada afastar a hipótese de uma ação organizada. Para Dantas, é fundamental desmoralizar o delegado que o acusa.
Já se discutiu muito, também neste Observatório, se assessoria de imprensa é jornalismo. É bem aceita a tese de que, na função de assessor de imprensa, o profissional de comunicação não pratica jornalismo. Considerando-se que a missão do jornalista é perseguir a verdade por inteiro, é razoável afirmar que uma das funções do assessor de imprensa é convencer a mídia a destacar os aspectos da verdade que interessam ao seu cliente.
Gestão de crise permanente
No caso de Daniel Dantas, o indigesto trabalho de sua assessoria equivale à gestão de uma crise permanente, pela freqüência quase ininterrupta com que ele protagoniza o lado obscuro do noticiário. Resguardados os limites da ética, os assessores de Dantas têm merecido o que lhes paga o cliente. Mas a capacidade do banqueiro de produzir notícias negativas está acima das habilidades de qualquer profissional empenhado em preservar reputações.
O que nos compete observar é: a parte da imprensa que Mino Carta chama de ‘mercenária’ – estaria engajada em seguir com ele até o fim? O lado saudável da imprensa, que predomina no noticiário em geral, não dá sinais de tolerância com aquele que é tido como o ‘gênio do mal’, e é bastante possível que o império de Daniel Dantas não sobreviva à ação da Justiça. O temperamento temerário demonstrado pelo banqueiro deve manter de cabelos em pé seus aliados no poder que ainda têm cabelos. Dantas e sua entourage de consultores jurídicos formais e informais são capazes de postergar além dos limites legais uma decisão judicial que o desfavoreça, mas ele já não pode contar com a lealdade irrestrita de todos aqueles cuja consciência andou arrendando.
Os clientes do banco com menor tolerância para o risco seguem transferindo seus patrimônios para locais mais seguros. Se o personagem central desse escândalo não parece ter limites, é possível que se mostre sensível à perda de ativos. Nesse caso, é provável que venha a cobrar ações mais efetivas de seus aliados no poder e na mídia, para evitar que o prolongamento de sua exposição afete gravemente seus negócios. Como ninguém, no poder público ou na imprensa, vai fazer declarações explícitas de lealdade ao réu, a seqüência de movimentos deve ser mais sutil. Por essa razão, a imprensa vai precisar de todo o talento disponível para a investigação e para a filtragem do material que vem sendo ‘contrabandeado’ para as redações.
O corsário está nu, seus asseclas vão sendo desmascarados na medida em que se revelam os detalhes da investigação policial. Sua capacidade de seduzir pelo dinheiro ou de convencer pela chantagem se desvanece. A ação da imprensa, mais do que nunca, vai ser determinante nos próximos capítulos dessa história escabrosa que desnuda as vísceras da nossa jovem democracia.
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Jornalista