Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As tragédias da mídia

Deixei a TV ligada na segunda-feira (1/6) o dia todo para acompanhar o sumiço do vôo 447 da Air France, alternando Globonews, CNN, TV5Monde, Bandnews e Recordnews. Na falta de novidades, qualquer coisa servia para mostrar atualização. Numa delas, depois de repetir a vinheta por horas, acrescentaram o prefixo da aeronave como relevante. Por volta do meio-dia, ouvi de relance, na TV francesa, falarem em 60 brasileiros. Às 3 da tarde a TV Globo mostrou o relações públicas da Air France no Brasil falando em percentuais de nacionalidades, cabendo aos canais de mídia fazerem as contas chegando a cerca de 80 brasileiros. Depois, o número passou a oscilar entre 57 e 58 dependendo da fonte (ANAC e Air France).


Ainda falando em cálculo, na CNN leram a nota da Aeronáutica brasileira e os comentaristas aparentavam bater cabeças com fusos horários. Já no Brasil Urgente, de José Luiz Datena, na Band, a coisa estava risível. Em poucos minutos, vi passarem imagens de um grande aeroporto ao fundo, enquanto o apresentador falava que eram imagens do aeroporto de Fernando de Noronha. Depois, perceberam a mancada e ele retificou. Depois falou que havia caças na busca aos destroços, e que o tempo que levariam de Natal a Noronha era praticamente nenhum, porque eram supersônicos. Acho que confundiu com a nave de Startrek, que chega à velocidade da luz.


Logo em seguida um repórter retificou que, na verdade, não havia aviões caças na busca. Depois que o Datena disse que o avião da Air France estava voando a 11 mil km de altitude, mudei de canal, porque ele devia estar falando de um vôo espacial, já que a Estação Espacial Internacional orbita a 360 km de altitude. Confundiu metros com quilômetros.


Normas brasileiras


A mídia convocou para entrevistas pilotos, peritos e engenheiros, que davam as informações com as devidas ressalvas dada a falta de dados, mas depois, na boca dos repórteres, viravam ‘verdades’ fora de contexto. A idéia do raio ter causado a pane elétrica e a queda, apesar de muito remota pela redundância dos sistemas e pelo efeito de Gaiola de Faraday (que tem campo elétrico nulo no seu interior e cargas uniformemente distribuídas no exterior, blindando a parte interna de choques ao ser energizada), foi colocada pelos especialistas como quase impossível, mas povoou, com ilustrações e filmes, os noticiários quase como uma explicação final.


Estranhamente, uma hipótese de explosão por bomba ou qualquer outra causa, foi rechaçada categoricamente pela mídia brasileira, mas vem sendo levantada na França. Ninguém fala nisso por aqui. Seria uma dessas possibilidades que fazem um sistema automático disparar alertas, mas impedem os pilotos de fazerem procedimentos de emergência ou comunicarem o problema. Essa possibilidade eximiria de responsabilidades dois ícones do capitalismo francês, a Air France e a Airbus, fabricante do avião.


Do outro lado do Atlântico, o jornal americano Washington Post tem uma matéria onde se pergunta: ‘Como pode um jato tão moderno simplesmente desaparecer?‘ Claro que isso não deve ter muito a ver com o fato de as concorrentes da Airbus – Boeing e Douglas – serem americanas.


A imagem da Air France ficou positiva na assistência aos parentes, tirando-os da exposição pública no momento de dor, mas deixou a mídia sem as imagens fortes de choros e revoltas vistas na época do ‘caos aéreo’. E também não permitiu a exploração política – afinal, não havia ninguém esculachando as autoridades brasileiras. Foi aí que vi na Globonews a entrevista de um professor descendo a ripa na Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), porque não apareceu no episódio, porque estaria omissa, porque nenhum titular apareceu para dar declarações, que não tinha lista dos passageiros até aquela hora etc.


Segundo a imprensa, as autoridades estavam cumprindo normas brasileiras, que exigem o contato com todas as famílias antes da divulgação. Esse vôo era uma Babel: 31 nacionalidades presentes. Devem estar até agora procurando contatos.


Idéia subliminar


No fim da tarde, a Globonews mostrou Lula em El Salvador. Estranhei a insistência na abordagem. Lula disse o que era cabível: falou com Sarkozy, que também não sabia o que dizer, que acreditava em Deus e que até o fim esperaria uma boa notícia, que estava solidário com a dor das famílias etc. Isso em poucos segundos. Aí o assunto acabou, e os repórteres pareciam querer mais. E Lula repetia. E a matéria não acabava. Então alguém perguntou se ele decretaria luto. Ele disse que a decretação legalmente competia ao vice, José Alencar, que estava em exercício na presidência no Brasil, e que já estava fazendo de tudo para as buscas, que o representaria junto às famílias etc. Ficou a sensação que esperavam ouvir dele que abandonaria toda a missão na América Central e voltaria para ver as famílias.


A idéia de mostrar Lula como omisso progrediu nas empresas Globo. O jornal O Globo de terça-feira (2/6) mostra a seguinte manchete na sua capa : ‘Sarkozy vai e Lula manda vice’. O texto esclarece o assunto, mas quem lê apenas o título fica com a impressão de pouco-caso do presidente, porque o da França foi lá consolar as famílias, e o do Brasil… mandou o vice.


No caderno especial, página 9, outra manchete, esta em destaque: ‘Sarkozy consola parentes; Lula estava longe’. Novamente a indução: Lula estava longe, ou seja, não se envolveu, é a idéia subliminar. A ‘desumanidade’ do presidente fica explicitada, na mesma página, ao se destacar uma mensagem da coluna ‘O leitor opina’, que normalmente fica no primeiro caderno do jornal, e que diz:




‘O presidente Lula deveria ter interrompido sua agenda para dar suporte e acompanhar de perto essa tragédia, mas preferiu seguir com a sua agenda. Enquanto isso, o presidente francês estava no aeroporto Charles de Gaulle o mais rápido que pôde.’


Xeque-mate!

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Engenheiro civil e administrador, Rio de Janeiro, RJ