Márcio Thomaz Bastos certamente sabe desta história. No dia 13 de novembro de 1889, o ainda general Floriano Peixoto escrevia a Cândido Oliveira, ministro da Justiça do imperador Dom Pedro II. Pedia um favor para um afilhado, que servira comissionado no Rio e voltaria para o Rio Grande do Norte, argumentando assim: ‘Não é de justiça que vá para aquela província com prejuízo, razão por que peço despacho favorável à nota junta, que V. Exa. devolverá com a data do dia 11’.
Começara a carta assim: ‘Exmo. Amigo sr. Conselheiro. A esta hora deve V. Exa. ter conhecimento de que tramam por aí além; não dê importância, tanto quanto seria preciso, confie na lealdade dos chefes, que já estão alertas’. E se despedia assim: ‘Sou de V. Exa. menor criado, amigo, obrigado, Floriano Peixoto’.
O Brasil estava à beira de proclamar a República de um modo insólito. Quem a proclamaria seria um marechal cuja ambigüidade os revolucionários temiam muito. Não é exagero o que muitos dizem: Deodoro da Fonseca era monarquista. Mas os quartéis eram barris de pólvora.
Reunidos na noite do dia 11 de novembro, os intelectuais saíram da casa do marechal Deodoro sem uma conclusão. Faltava ainda um plano para derrubar o governo, o regime e instaurar a República.
Os barris de pólvora estouraram com uma calúnia, uma mentira. O major Sólon Ribeiro, vestido à paisana, foi ao centro da cidade espalhar o boato de que o governo mandara prender o marechal Deodoro da Fonseca. Hoje iria a alguma rádio, televisão ou jornal. O major pediu a alguns camaradas que levassem o boato como notícia aos quartéis de São Cristóvão, no Rio.
Deu certo. Os militares se revoltaram. E a lealdade de Floriano Peixoto não durou dois dias!
Episódio vergonhoso
Não apenas o Brasil, mas diversos países conhecem histórias semelhantes. É por isso que sem imprensa e sem livros não sabemos de quase nada. São indispensáveis. O governante que lê, é um estadista. Aquele que não lê, é apenas mais um político. Pode até acertar o percurso, mas viaja pelo poder sem mapa.
A mim, principalmente como escritor e homem de letras interessado nas palavras e sua cabala, enfim na complexa rede léxica, sintática e etimológica do verbo, encantam-me também estas formas fixas de abertura e fechamento, nos contos de fada, nos episódios bíblicos, nas lendas.
‘Era uma vez’, ‘foram felizes para sempre’, ‘no princípio Deus criou o Céu e a Terra’, ‘naquele tempo disse Jesus a seus discípulos…’, ‘aleluia’ etc. Quando aconteceu tudo isso? Hoje datamos: dia tal do mês tal do ano tal. No direito, em documentos de posse de terra, por exemplo, diz-se mais: no ano de 2006 do nascimento de Jesus Cristo’. E faz-se o primeiro erro, pois Jesus nasceu entre 4 e 6 a. C.
Floriano Peixoto era aquele militar violento, que sofre sérias restrições de brasileiros esclarecidos, principalmente de catarinenses, pois ele, covarde, acenou com anistia e depois mandou o coronel Antonio Moreira César, então aos 44 anos de idade, executar todos os que se entregaram. É o vergonhoso episódio da Revolução Federalista: no dia 25 de abril de 1894, em fortaleza da pequena ilha de Anhatomirim, vizinha a Florianópolis, então chamada Ilha do Desterro. O coronel é também conhecido pelos apelidos de Corta-Cabeças e Treme-Terra. Depois morreria na campanha de Canudos.
Ato de deboche
Pois debaixo das delicadas formas de tratamento estava o fingido militar que, pedindo um favor para um afilhado, se dizia ‘menor criado, amigo, obrigado’. Quem sabe, no futuro, alguém encontrará manuscrito que o absolva e explique seu gesto, como vieram de fazer com o Evangelho de Judas.
Vivemos tempos de redenção de traidores, não de traídos.
Ainda não passamos da página 24 de Os virtuosos (Editora A Girafa, 239 páginas), de Luiz Felipe D’Avila, e já me surgiram todas essas lembranças.
‘Dom Pedro ignorou o conselho da princesa Isabel para permanecer em Petrópolis e comandar a luta contra o levante republicano.’ Afinal, o imperador enfrentara muitas rebeliões militares e revoltas em províncias, a de 15 de novembro lhe parecia apenas mais uma. Não era.
No dia seguinte, 16/11, saiu o decreto que expulsava do Brasil a família real. Velho e doente, Dom Pedro II deveria embarcar com toda a comitiva logo depois de missa a ser celebrada às 11 da manhã. Os republicanos deveriam saber que davam um golpe de Estado sem apoio popular, como depois ficaria demonstrado, e por isso, temendo que Dom Pedro fosse aclamado a caminho da igreja, anteciparam o embarque para a madrugada do 17/11. O povo brasileiro ainda dormia e o governo deposto já estava em alto mar.
Floriano teve outros ‘encantos’ para o ficcionista. Não passa o poder a Prudente de Moraes, o primeiro presidente eleito de nossa República. Este desembarcou na estação ferroviária, dali foi ao Palácio, e encontrou papéis no chão, os sofás rasgados a ponta de baionetas, lixo nos cantos.
Floriano Peixoto chegou ao poder pelas armas. Prudente de Moraes chegou ao poder pelas palavras. Foi do segundo o melhor governo.
Este escritor é catarinense. Mais do que brasileiros de outras regiões, os catarinenses têm motivos de sobra para fazer restrições a Floriano Peixoto. Manda executar os rebeles em abril de 1894. No mesmo ano, como deboche, a Ilha do Desterro tem seu nome mudado para homenagear a quem? Ao algoz!
Mas não é apenas por isso que devemos ler Os virtuosos: os estadistas que fundaram a república brasileira. Estamos diante de alguém que tem o que dizer e sabe como fazê-lo.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), onde dirige o Curso de Comunicação Social