Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Autores esquecidos pela imprensa

Escritores como Luiz Antonio de Assis Brasil, Salim Miguel, Liberato Vieira da Cunha, Charles Kiefer, Lya Luft, Manoel Carlos Karam e Valesca de Assis, entre outros, estão entre os grandes romancistas brasileiros, seja qual for o critério que se adote para examinar nossa produção literária. Mas têm um grande defeito: vivem no Brasil meridional, região esquecida pela grande imprensa.

Lya Luft passou a assinar recentemente uma coluna semanal em Veja. Pronto! Já há ‘críticos’ examinando sua produção literária por tal amostra, a única de que tomaram conhecimento.

É a outra face do romancista, que paga pesados tributos por continuar com sua obra pouco divulgada e insuficientemente conhecida, como acontece com a maioria absoluta dos autores brasileiros, ainda que uma porção mínima de leitores cheguem a seus romances pelos ínvios caminhos das colunas que mantêm na imprensa.

Salim Miguel arrebatou recentemente alguns dos grandes prêmios brasileiros, entre os quais o da Associação Paulista de Críticos de Arte e o Passo Fundo de Literatura (este, dividido com Antônio Torres), por seu romance Nur na Escuridão. Ganhou também o Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano. Acaba de lançar novo livro, Mare Nostrum (Editora Record), um romance inovador, que pode ser lido como uma série de contos ou montado ao gosto do freguês, lembrando um dos melhores momentos da prosa de Julio Cortázar com O Jogo da Amarelinha.

Luiz Antonio de Assis Brasil ganhou um dos prêmios que está consolidando seu prestígio por força da garantia da pluralidade de concorrências, de consultas e de jurados independentes. É o Portugal Telecom, que premiou nas duas edições já realizadas – em 2003 e 2004 – os escritores Dalton Trevisan, Bernardo Carvalho, Mário Chamie, Paulo Henriques Britto e Sérgio Sant’Anna.

Falha grave

Prêmios não ensinam ninguém a escrever e às vezes prestam-se a controvérsias, naturalmente vindas da parte de quem perdeu e é incapaz de assimilar os resultados, proclamando, contra todas as evidências, a sua inconformidade ou, pior do que isso, mobilizando opiniões de aluguel para destilar ressentimentos.

Todo julgamento humano é passível de erro. Se até no STF, questões terríveis, como a do editor gaúcho que não esconde seu ódio étnico, antes o insufla e incrementa em livros neonazistas, dividem os ministros da mais alta corte do país, que se dirá de um júri literário?

Mas, proclamado o resultado, a controvérsia que poderia ser proveitosa intelectualmente toma os rumos do ódio irracional que jamais começa por discutir critérios, mas por desqualificar os jurados. Naturalmente, se tivessem conferido o prêmio ao inconformado, as qualificações, ainda que continuassem as mesmas, não sofreriam qualquer restrição. Assim é nossa pobre vida intelectual!

O professor Sergius Gonzaga, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acaba de lançar um livro que pode ajudar muito numa visão panorâmica, larga, a respeito de nossa produção literária. Ali saberemos que a literatura brasileira viceja em muitos arquipélagos culturais do Brasil. O professor não se esqueceu de nenhum, ao contrário de nossa grande imprensa. E convém ter este livro para consulta. Recomendo que principalmente os jornalistas encarregados das seções de livros na imprensa o tenham sempre à mão. Cobre a literatura brasileira do século 16 aos dias atuais.

É uma temeridade, mas o professor saiu-se bem da empreitada no livro que a seguir comento. Naturalmente, há algumas omissões. E o autor está disposto a receber sugestões para aperfeiçoar a próxima edição. Por exemplo: qualquer compêndio que deixe fora, como romancista, Moacir Japiassu, tem falha grave. Ele escreveu dois romances admiráveis e se tivéssemos antologias sérias, ele estaria em todas. Mas ele é apenas um exemplo das exclusões. Há várias outras.

Curso de literatura brasileira

‘Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.’

Sergius Gonzaga, professor da UFRGS, serve-se destas linhas antológicas de Gabriel García Márquez para definir o conceito de literatura em seu Curso de Literatura Brasileira. Recém-publicado pela Editora XXI, de Porto Alegre, tem 487 páginas e é livro que deveria ser lido ou consultado, não apenas por estudantes e professores ou pelos vestibulandos, seus destinatários preferenciais, mas por quem busca um resumo indispensável do caminho que nossas letras fizeram.

Começa com Pero Vaz de Caminha, Gregório de Matos Guerra e o padre Antônio Vieira, e chega até nossos dias, mostrando estar bem informado sobre a literatura surgida depois de 1970. É um dos mais completos e bem escritos compêndios literários. É também o que dá o panorama mais completo de nossa produção literária.

Logo nas primeiras páginas, o autor pergunta ‘o que é literatura?’. E, bom professor que é, ensina com três exemplos. Depois de afirmar que ‘literatura é toda palavra escrita’, relaciona duas verdades de natureza diversa. ‘O calor dilata os corpos’ e ‘Napoleão morreu em Santa Helena, em 1821.’ A mais encantadora é a terceira, a de García Márquez. Jamais existiu na Colômbia alguém que se chamasse Aureliano Buendía, que, antes de ser fuzilado, lembrasse de uma antiga tarde em que o pai o levou para conhecer o gelo.

O escritor é um mentiroso, mas todas as suas mentiras compõem uma verdade literária. E é esta que fascina os leitores. Milhões de pessoas em todo o mundo aceitaram as hipóteses de García Márquez, menos talvez aqueles políticos que dizem sempre ‘não raciocino sobre hipóteses’, mas esses lêem apenas os jornais que tratam deles, quando os lêem, porque em geral, tendo tantos assessores, contam também com quem é pago para fazer recortes para eles.

Dinastia sem poder

O livro tem 487 páginas. É um dos melhores investimentos para este Natal. Sergius Gonzaga e este escritor foram alunos de Guilhermino César, sobre quem Carlos Drummond de Andrade se inspirou explicitamente para o poema ‘Seqüestro de Guilhermino César’:

refocilávamos em orgias/ com a ninfa de espuma e seios-orquídea/ chamada Literatura,/ nosso maior amor e perdição‘.

Guilhermino César não formava apenas gente de letras. De nossa turma, Antônio Hohlfeldt é vice-governador do Rio Grande do Sul; Lya Luft, toda semana, encanta os leitores da maior revista semanal do país com textos muito bem escritos; Lígia Averbuck, precocemente falecida, grande crítica literária, antecedeu Sergius Gonzaga na direção do Instituto Estadual do Livro; Flávio Loureiro Chaves tem participação decisiva em projetos literários importantíssimos, como no júri do Prêmio Portugal Telecom. Para citar apenas alguns exemplos.

Nós seqüestramos Guilhermino César. E depois nossos alunos nos seqüestraram. A dinastia que não quer poder, quer apenas os saberes e os sabores da literatura brasileira, navega, porém, em mares procelosos.