Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Bases para uma Teoria do Jornalismo 2.0

Na vida diária, não nos perguntamos sobre a natureza das coisas que nos cercam ou com que lidamos. Por exemplo, todos os dias usamos dinheiro, e fazemos com ele algumas transações bem complicadas, mas para isso não precisamos responder o que é dinheiro, de onde se origina e que características tem [KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 10]. Da mesma forma, gerações de jornalistas se criaram, altos graus de competência foram atingidos na profissão e multidões foram conquistadas como audiências destes profissionais, sem que ninguém tivesse que parar para perguntar o que é jornalismo. Além disso, essa tem sido uma questão bem pouco trabalhada nas escolas de jornalismo, onde a teoria costuma tratar um pouco de tudo, menos sobre o que o jornalismo realmente é.

Para o educador Paulo Freire, isso se deve a uma distorção existente na pedagogia dominante em nossas universidades, onde vida real e pensamento crítico são apresentados aos alunos como coisas independentes e que não se comunicam entre si. [“Você tem aqui, no currículo oficial, um forte desvio no sentido do empirismo e da abstração. Quando um curso descreve em detalhes uma parcela da realidade, não oferece aos alunos um desvendamento crítico dos aspectos políticos. Quando um curso oferece estruturas conceituais, esses conceitos são abstratos, tão longinquamente aplicáveis à realidade em que se vive que mantém os alunos desarmados para contestar sua cultura. Nossa hipótese, então, indica que a dominação é mais do que receber ordens de forma impessoal, na escola, e mais do que as relações sociais do discurso numa pedagogia de transferência do conhecimento – conceitos sem importância para a realidade, descrições da realidade que não atingem uma integração crítica, uma distinção compulsória entre pensamento crítico e vida. Essa dicotomia é a dinâmica interior de uma pedagogia que retira a sua potencialidade, política e psicologicamente”.FREIRE. Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 166-7.] Se isso ocorre na universidade em geral, em nenhum outro curso isso é mais evidente do que nos de jornalismo, onde a esquizofrenia entre teoria e a prática está de tal forma estabelecida que normalmente obriga os alunos a uma escolha dramática: reafirmar a vocação que escolheram e desconsiderar toda a teoria aprendida, para fazerem carreira como jornalistas, ou abandonar a vocação do jornalismo para serem bem aceitos nos cursos de pós-graduação em comunicação, onde os teóricos da área dão as cartas e se reproduzem.

Tudo pôde funcionar razoavelmente bem assim enquanto transmitir os princípios e as técnicas consagradas na prática do jornalismo era o suficiente para preparar novos profissionais para ingressar no mercado, e a produção teórica referendada pelos pares da própria comunidade teórica mantinha as aparências de respeitabilidade científica para justificar o status universitário das profissões da comunicação.

No entanto, quando os ventos de uma mudança tecnológica e cultural sem precedentes colocam em questão a viabilidade da existência do próprio jornalismo e seu papel até agora insubstituível para o funcionamento das sociedades democráticas, com a inviabilização de seu modo de sustento e a incapacidade de manter e reproduzir seu público entre as novas gerações, a manutenção da prática e da teoria como departamentos estanques já não dá para o gasto. A prática precisa agora ser repensada com os melhores instrumentos que a academia dispõe, e a universidade precisa mostrar o seu valor nesta tarefa, como propõe o veterano professor Philip Meyer [MEYER, Philip. Por que o jornalismo precisa de doutores? Estudos em Jornalismo e Mídia, 6 (2), 2009, p. 219-222]. Ou então ambas – profissão e disciplina científica – começam a fazer água juntas, e o fato de se acusarem mutuamente por esta situação, ou eventualmente de comemorarem as derrotas da outra parte, não contribuem em nada para reverter o desastre anunciado, que as atinge igualmente [MEDITSCH, Eduardo. Profissão derrotada, ciência deslegitimada. É preciso entender a institucionalização do campo jornalístico. Brazilian Journalism Research,6(1), 2010, 97-113].

Uma ciência sem passado

A Alemanha é provavelmente o berço do estudo acadêmico do jornalismo, com o registro da defesa da primeira tese de doutorado sobre o tema em 1690, também este esquecido pela corrente hegemônica dos journalism studies contemporâneos [PEUCER, Tobias. Os relatos jornalísticos. Estudos em Jornalismo e Mídia,1(2) 2004, p. 13-30].

Na virada para o Século XX, na medida em que o jornalismo se profissionaliza, passa também a conquistar um espaço na universidade em todo o mundo. O caso alemão, no entanto, é considerado especial pelo fato de os institutos universitários terem sido já criados com foco na pesquisa, e não na formação profissional, como ocorreu geralmente nos outros países [DOVIFAT, Emil. Education for Journalism in Germany and the Deutsche Institut für Zeitungskunde. Journalism Quarterly,7 (3), 1930, p. 232-235]. A ciência dos jornais (Zeitungswissenschaft), uma iniciativa surgida no final do século XIX e início do século XX na Alemanha, propunha-se a investigar cientificamente um fenômeno novo para a época, a imprensa de massa. Representada por nomes como Karl Bücher e Emil Dovifat, continua sendo uma das experiências mais amadurecidas nesta área de conhecimento.

A liderança alemã no campo da ciência do jornalismo é admitida no primeiro livro de metodologia desta ciência publicado nos Estados Unidos [MOTT, Frank Luther. Conclusion. In: NAFZINGER; Ralph O.; WILKERSON, Marcus M. An Introduction to Journalism Research. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1949, p. 126-130]. E o primeiro trabalho de Otto Groth, Die Zeitung (O jornal), foi saudado pela Journalism Quarterly como uma grande contribuição para a área [DICKINSON, B. A German text on Journalism. Journalism Quarterly. 6 (2), 1929, p. 9-11]. Resenhas elogiosas dos primeiros volumes de O Poder Cultural Desconhecido, elaboradas por Ralph Nafziger, um dos poucos journalism scholars que lia alemão, foram publicadas nos anos 1960s na mesma revista [Journalism Quarterly, 38 (1), 1961, p. 61; 39(1), 1962, p. 96]. No entanto, na ausência de traduções, a barreira da língua não permitiu que o trabalho de Groth e de outros expoentes da Zeitungswissenschaft fossem conhecidos nos Estados Unidos.

A tentativa de analisar cientificamente a imprensa sofreu um grande impulso no início do século XX, com a fundação de inúmeros institutos de pesquisa e até mesmo a primeira cátedra em uma universidade na Alemanha, em München, em 1924. [Sobre o desenvolvimento da ciência dos jornais, cf. AVERBECK, Stefanie; KUTSCH, Arnulf. Thesen zur Geschichte der Zeitungs- und Publizistikwissenschaft 1900-1960. Medien & Zeit, 17( 2/3), 2002, p. 57-66.]Até a Segunda Guerra Mundial, a “ciência dos jornais” registrou um processo de institucionalização crescente em várias partes do mundo, com a criação de institutos, escolas de graduação e pós-graduação, periódicos e associações científicas especializadas em vários países, além de uma extensa bibliografia publicada. Mesmo depois da guerra, este desenvolvimento foi mantido por alguns anos, e foram registradas algumas tentativas de internacionalização desta nova área acadêmica, como com a fundação da Gazette, “International Journal of the Science of Press/Science de la Presse/Zeitungswissenschaft”, publicação trilíngue em inglês, francês e alemão editada na Holanda a partir de 1955.

Da redação à universidade, do jornalismo à Jornalística

Apesar do desenvolvimento avançado desta ciência dos jornais na Alemanha, faltava um corpo de conhecimento próprio que justificasse porque deveria haver uma ciência própria dos jornais. Uma ciência não se faz só com espaços institucionais. Também não se forma apenas com um novo objeto. Este poderia, por exemplo, ser analisado por outras áreas de conhecimento já estabelecidas. O que faz uma nova ciência é uma forma própria de contemplação de um objeto, que não só analisa, observa o novo objeto, mas também o produz. E foi esta a contribuição pioneira que Groth forneceu com a sua obra: um sistema de leis próprias, uma análise profunda da essência do periódico e com isso os fundamentos epistemológicos para uma ciência dos jornais.

Embora tenha sido marginalizado no campo institucional, Otto Groth foi o teórico mais importante da ciência dos jornais. Nascido em 1875, estudou ciência do Estado (Staatswissenschaft), a percussora da ciência política, na Universidade de München. Mas foi o jornalismo que se tornou a missão e a profissão de Groth, um acadêmico que começou no jornalismo em 1899 com 22 anos e só tirou os pés da redação em 1934, quando foi proibido pelo regime nazista de trabalhar por ser judeu.

A história também poderia ser contada de outra forma: Otto Groth, o jornalista que se tornou aluno de Max Weber e terminou seu doutorado em 1915 em Tübingen, que escreveu a obra mais importante da ciência dos jornais, mas nunca pôde colocar os pés em uma universidade como professor efetivo por ser de descendência judaica. Groth passou a sua vida acadêmica trabalhando como Privatdozent, ou seja, sem ter uma relação de trabalho permanente com uma instituição de ensino superior. Suas obras são parte constituinte da sua “missão”. “O jornal” (Die Zeitung), uma enciclopédia de quatro volumes publicada nos anos 20 e 30, foi escrito em 15 anos e O Poder Cultural Desconhecido (Die unerkannte Kulturmacht) exigiu 30 anos [HEPP, Andreas. Netzwerke der Medien. Medienkulturen und Globalisierung. Wiesbaden: Verlag für Sozialwissenschaften, 2004, p. 37], sendo o último dos sete volumes publicado depois da sua morte, aos 90 anos, em 1965. [A mentalidade da época, sobretudo quando o autor não se refere ao jornalismo, também está presente na obra de Groth. O senso comum que dominava ainda nesta época se faz sentir nas referências a uma psicologia dos povos, às teorias raciais e à “etnologia dos povos civilizados”. Neste ponto, faz-se evidente o manto de “naturalidade” que cobria estas idéias até mesmo na obra de um intelectual brilhante que teve a sua carreira acadêmica arruinada pelos mentores e seguidores de tais idéias. Comentários quanto às diferenças de consumo midiático entre homens e mulheres e alusões a um nível intelectual menor destas no seu texto também ilustram este Zeitgeist.]

Uma ciência “sem passado”

No entanto, a ascensão do nazismo na Alemanha foi fatal para a universidade daquele país e provocou o início da destruição desta disciplina: a comunicação de massas sempre foi vista como estratégica pelo regime nazista, e a intervenção no ensino e na pesquisa da área foi coerente com a lógica de um regime totalitário: os acadêmicos que não aderiram à instrumentalização da comunicação pelo nazismo foram destituídos de seus cargos e expulsos da universidade, os que ficaram reescreveram seus trabalhos anteriores para adequá-los à ideologia nazista e torná-los “práticos” e “úteis ao Estado”, como admitiu na época o diretor do instituto de pesquisa em jornalismo da Universidade de Berlim, Emil Dovifat, até então um respeitado autor dentro do campo [BARLOW, Reuel. Journalism Education Under the Third Reich. Journalism Quarterly,12 (4), 1935, p. 357-366].

A ciência dos jornais ou Jornalística, a cuja construção Otto Groth empenhou a sua vida, foi instrumentalizada pelo regime nazista com o consentimento e a iniciativa consciente dos seus cientistas [MEYEN, Michael; LÖBLICH, Maria. Klassiker der Kommunikationswissenschaft. Fach- und Theoriegeschichte in Deutschland.Konstanz: UVK, 2006]. Walter Heide, o presidente da AssociaçãoAlemã da Ciência dos Jornais (Deutscher Zeitungswissenschaftlicher Verband) e colaborador ativo do regime nazista, é apenas um exemplo disto. Ironicamente, os motivos políticos que levaram ao banimento desta do campo acadêmico também levaram ao esquecimento da obra de Groth.

O sucesso da propaganda na mobilização do povo alemão e o esforço de guerra contra o nazismo provocaram uma reação semelhante nos Estados Unidos: a partir dos cientistas sociais chamados a colaborar com o governo naquele momento dramático, foi criada a “Ciência da Comunicação” como uma nova disciplina científica. Se até então o estudo do jornalismo estava vinculado ao papel inquestionável da atividade como um dos pilares da democracia norte-americana, a nova disciplina vinha substituir esta “ciência da liberdade” por uma “ciência do controle” da opinião pública. Seguia assim o exemplo alemão, no qual a própria ciência dos jornais assumiu a pesquisa dos estudos sobre os meios de liderança (Führungsmittel), e também o soviético, onde a imprensa e seu estudo eram vistos como “instrumentos do estado” para o alcance de seus objetos políticos [SIMPSON, C. Science of Coercion. New York: Oxford University Press, 1999; GLANDER, T. Origins of mass communication research during the American Cold War. Mahwah, NJ: Erlbaum, 2000].

A nova ciência americana e a antiga doutrina marxista sobre a imprensa, que ocuparam os dois lados do muro de Berlim depois do final da Segunda Guerra, moldaram o desenvolvimento da área acadêmica contemporânea da Comunicação. No caso da Alemanha Ocidental, a ciência norte-americana passou a servir como modelo para os acadêmicos da área, encaixando-se nas tentativas destes de construir uma ciência nova sem ter que olhar para o passado.

O caminho da verdade é um desvio

O caminho teórico não projeta um percurso fácil nem garante uma chegada em porto seguro. É um esforço que consiste num afastamento da realidade para chegar à verdade sobre ela. Em busca da verdade, o caminho teórico é sempre um desvio: para que possa conhecer e compreender um fenômeno, para que possa torná-lo claro e explicá-lo, é necessário fazer um détour: o concreto se torna compreensível pela mediação do abstrato; o todo através da mediação da parte: “Exatamente porque o caminho da verdade é um détour – der Weg der Wahrheit ist Unweg – o homem pode perder-se ou ficar no meio do caminho.” [KOSÍK, Karel. Dialética do Concreto. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 29-30]

Reconhecido por seu pioneirismo ao afirmar a necessidade epistemológica de uma Teoria do Jornalismo no Brasil, Adelmo Genro Filho chegou a esta conclusão justamente ao dar-se conta de que a Teoria da Comunicação havia se perdido na tentativa de explicar a realidade do jornalismo:

“Existe uma grande defasagem entre a atividade jornalística e as teorizações que se fazem em torno dela. Esse distanciamento se dá em tal grau que, inclusive, tem gerado falsas e absurdas polêmicas opondo “teóricos” e “práticos”. (…) é bem verdade que os teóricos não têm feito muito no sentido de lançar uma ponte com mão dupla entre a teoria e a prática. Em geral, as teorizações acadêmicas oscilam entre a obviedade dos manuais, que tratam apenas operativamente das técnicas, e as críticas puramente ideológicas do jornalismo como instrumento de dominação. A prática, por sua limitação natural, jamais soluciona a teoria. Ela apenas insiste, através de suas evidências e contradições, que deve ser ouvida. Mas só pode se expressar racionalmente através da teoria. Responsabilidade maior, portanto, cabe à própria teoria que está muda em relação às evidências e contradições da prática, quando deveria transformá-las numa linguagem racional. Isto é, elucidar e direcionar a prática num sentido crítico e revolucionário.” [GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Editora Tchê, 1987. Disponível aqui.]

Na busca por recuperar a essência do jornalismo – que para ele estaria em ser uma forma de produção social de conhecimento – Adelmo reconhece o seu próprio trabalho como uma complementação do projeto desenvolvido por Otto Groth, “cujo admirável esforço teórico reafirma a tradição do pensamento abstrato entre os alemães”: “(…)Otto Groth definiu claramente o objeto sobre o qual erigiu sua teoria. (…) Seu método de análise – ao contrário do que afirmam alguns pesquisadores – não é funcionalista, mas tipicamente weberiano. Os periódicos, para ele, são uma obra cultural produzida por sujeitos humanos, dotados de finalidades conscientes, como parte da totalidade das criações humanas” [idem].

Adelmo só teve acesso às idéias de Groth através do livro do professor Faus Belau que as divulgou em língua espanhola, e onde as reflexões epistemológicas sobre a disciplina não foram apresentadas como o são agora [FAUS BELAU, Angel.La ciência periodística de Otto Groth. Pamplona: Universidad Navarra, 1966]. Por muitos anos, este texto “de segunda mão” foi a principal referência sobre Otto Groth no Brasil, ou ainda a sua apresentação, a partir de Faus Belau, num texto “de terceira mão” em português, produzido pelo professor Wilson da Costa Bueno, que teve circulação restrita na USP [BUENO, Wilson da Costa. O jornalismo como disciplina científica: a contribuição de Otto Groth. Monografia. São Paulo: ECA-USP, 1972].

Antes de Adelmo, que denunciou a falácia da frase “a teoria na prática é outra” corrente nas escolas de Comunicação do país na década de 1980, a idéia de uma Teoria do Jornalismo já havia sido introduzida no Brasil pelo professor Luiz Beltrão, em seu projeto pedagógico para a Universidade Católica de Pernambuco, na década de 1960. Num tempo sem internet e com difícil circulação de livros, o sulista Adelmo aparentemente não conheceu o trabalho de Beltrão, submetido ao “esquecimento” com a imposição da disciplina Comunicação Social no país, onda em que o próprio professor pernambucano, apesar de relutante, teve que acabar surfando.

Luiz Beltrão foi autor do que pode ser considerado o principal livro acadêmico sobre jornalismo produzido no Brasil antes da era da Comunicação, pela extensão da revisão da bibliografia internacional que trouxe nele. E, embora desconhecendo o nome de Otto Groth, recebeu influência de suas idéias. Seu premiado ensaio “Iniciação à Filosofia do Jornalismo”, produzido em 1959 com o que recolheu em suas viagens aos Estados Unidos e a diversos países da Europa e da Ásia a partir da metade daquela década, inclui as quatro características do jornalismo definidas por Groth entre os “caracteres” do jornalismo apresentados ali: atualidade, periodicidade, universalidade (que chama de “variedade”) e publicidade (que chama de ‘popularidade’), aparecem ao lado de “promoção” (do bem comum) e “interpretação” (juízo jornalístico) [BELTRÃO, Luiz. Iniciação à Filosofia do Jornalismo.Rio de Janeiro: Editora Agir, 1960]. É provável que Beltrão tenha tomado conhecimento destas idéias a partir de suas próprias referências teóricas, como o francês Jacques Kayser e o cubano Octávio de La Suarée, autores que circulavam na rede internacional de pesquisadores em jornalismo de então, ou no Encontro Internacional de Jornalistas de que participou na Finlândia, país que recebeu considerável influência da Zeitungswissenschaft alemã.

A ênfase do enfoque na práxis tem sido um diferencial do desenvolvimento recente dos Estudos em Jornalismo no Brasil, como reafirma um editorial recente da Brazilian Journalism Research [BECKER, B.; RESENDE, F.; TEIXEIRA, T. Olhares múltiplos, diálogos possíveis (Editorial). Brazilian Journalism Research,6 (2), 2010, p. 3]. Provavelmente este diferencial tem a ver com uma herança positiva dos 40 anos em que a profissão esteve regulamentada no país (1969-2009), quando professores e pesquisadores do jornalismo não se identificavam como “ex-jornalistas na academia”, como ocorre em vários outros países, mas sim como “jornalistas em funções acadêmicas”, como também acontece em outras profissões universitárias reconhecidas. Esta forte cultura profissional geralmente tem resultado em confluência de objetivos entre as entidades dos profissionais (como a Fenaj), dos professores universitários (Forum Nacional de Professores de Jornalismo) e dos pesquisadores (SBPJor), de uma forma rara de encontrar em outros países. Não por acaso, Otto Groth, assim como nossos Adelmo e Beltrão, foi um grande defensor da necessidade da organização profissional para o desenvolvimento do jornalismo.

Isto não quer dizer que o pensamento de Otto Groth deva ser rejeitado em princípio por aqueles que, na academia, não se identificam necessariamente com esta perspectiva profissional. Pelo contrário, a reflexão epistemológica do autor pode ser uma fantástica ferramenta não só para a reinvenção do jornalismo, mas também para a reinvenção da Comunicação como disciplina científica, abrangendo todos os seus outros ramos de atuação. Uma reinvenção que se faz urgente para o reconhecimento e a sobrevivência da autonomia do campo, e cuja necessidade já foi apontada por teóricos do porte do norte-americano James Carey, criticando a insuficiência das visões das ciências sociais e dos estudos culturais sobre jornalismo:

“São estudos sobre jornalismo, isto é, são conduzidos de fora ao invés de dentro, são vistos pelas lentes das ciências sociais e não pelas do jornalismo. No ato de estudá-lo, geralmente reduzem a prática jornalística ao mínimo e mais baixo denominador comum. (…) A maior parte dos cientistas sociais não tem idéia – é incapaz de distinguir entre uma boa e uma má obra jornalística, entre uma elementar e uma avançada, uma sofisticada e uma simples. (…) As ciências sociais perderam o contato com o que o jornalismo concretamente é.” [Scholarship, Research and Journalism. An interview with Professor James Carey by David McKnight. Australian Journalism Review, 22 (2), 2000, p. 17-22]

Desta forma, segundo Carey, uma escola de jornalismo que adota acriticamente as perspectivas das ciências sociais e dos estudos culturais desvaloriza a si mesmo e ao jornalismo, comprometendo duas instituições fundamentais para a democracia. Para reverter esta tendência, no entanto, a perspectiva da práxis implica numa inversão de método, como propõem Antônio Faundez e Paulo Freire:

“Não se deve partir do conceito para entender a realidade, mas sim partir da realidade para, através do conceito, compreender a realidade. (…) No entanto, a ciência, tal qual os intelectuais a entendem atualmente e tal qual é ensinada nas Universidades, consiste em partir do conceito, retornar ao concreto e em seguida regressar novamente ao conceito. É um outro ciclo, embora também permanente; não podemos dizer simplesmente que, quando a ciência se ocupa apenas do conceito, não tenha uma intencionalidade do concreto. O concreto também constitui seu problema, mas é o concreto que aparece como mediador para o conceito.” [FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma Pedagogia da Pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 63-5]

No campo da teoria do jornalismo no Brasil, esta perspectiva foi expressa recentemente por Christa Berger,

“De onde provêm as questões que motivam as teorias do jornalismo? Como repercute o conhecimento advindo destas teorias na prática jornalística? Qual a posição do campo de estudo do jornalismo no interior das ciências sociais? (…) o saber acerca do jornalismo é da responsabilidade de uma disciplina, cuja prática científica parte das questões formuladas no exercício da profissão combinado com o saber de outras tantas disciplinas ou, em outra formulação, é da responsabilidade das disciplinas que cuidam de nos compreender na sociedade contemporânea e que estão divididas mais para corresponder à estrutura interna da ciência do que a uma exigência do conhecimento da realidade do qual o jornalismo faz parte. (…) Aprofundar o conhecimento entre a prática jornalística e o conhecimento sobre o jornalismo é buscar formas de estabelecer diálogos menos truncados e menos dissonantes entre o saber e o fazer na esperança de que o jornalismo possa, ao informar sobre a realidade, contribuir para o esclarecimento do mundo. [BERGER, Christa. O Conhecimento do Jornalismo no Círculo Hermenêutico. Estudos em Jornalismo e Mídia,6 (2) 2010, p. 17-25]

Não por acaso Christa Berger foi uma das pessoas que se preocupou em trazer o conhecimento da obra de Otto Groth ao Brasil, incluindo numa coletânea recente a tradução de um trecho de O Poder Cultural Desconhecido acompanhado por um esclarecedor texto sobre o livro e seu autor [BERGER, Christa; MAROCCO, Beatriz. A era glacial do jornalismo: teorias sociais da imprensa.Porto Alegre: Sulina, 2006]. Essa tradução da Vozes vem agora dar mais um passo nesta iniciativa, trazendo uma amostra mais ampla da obra fundamental do autor alemão.

Mas no que um achado arqueológico pode ajudar a entender o que vem por aí?      

Nos recém lançados trabalhos em que procuram entender e explicar o que muda e o que não muda na profissão sob o tsunami de informações e incertezas trazidos pela revolução tecnológica, tanto os pragmáticos norte-americanos Bill Kovack e Tom Rosenstiel [KOVACK, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Blur: how to know what is true in the age of information overload.New York: Bloomsbury, 2010] quanto os mais teóricos professores ingleses Andrew Calcutt e Philip Hammond [CALCUTT, Andrew; HAMMOND, Philip. Journalism Studies: a critical introduction. London: Routledge, 2011] enfrentam esta questão dialogando com idéias encontradas em textos clássicos do Século XIX e do início do Século XX. Se tivessem a oportunidade que estamos tendo agora de conhecer o trabalho de Otto Groth na língua deles, provavelmente O Poder Cultural Desconhecido estaria entre suas referências. Graças a esta iniciativa da Editora Vozes, novos trechos da obra do autor alemão estão chegando a nosso alcance, ainda que tarde aqui, mesmo assim antes ter chegado ao mundo de língua inglesa.

Mas alguém pode perguntar: que moda é esta de buscar respostas sobre o presente em textos do passado? Qual é o sentido de discutir o futuro do jornalismo no Século XXI dialogando com idéias forjadas quando o mundo era outro, há mais de meio século?

Em qualquer outra disciplina científica, estas perguntas sequer seriam colocadas. Não há sociólogo digno deste nome que não tenha dialogado com Marx, Weber ou Durkheim, não há psicólogo que não tenha estudado Freud e Lacan ou semiólogo que despreze Peirce e Saussure. A física de ponta segue dialogando com as teorias centenárias de Einstein, a biologia com Darwin, e o médico que inicia sua vida profissional no Século XXI repete o juramento milenar de Hipócrates. Todas as ciências e profissões universitárias dignas de respeito se renovam e se realimentam dialogando com seus clássicos. Apenas em relação ao Jornalismo, o desprezo e a soberba ignorância dos clássicos parecem ser uma atitude ainda reverenciada, e talvez por isso a Comunicação ainda não tenha adquirido reconhecimento como ciência. De fato, depois de meio século de introdução da Teoria da Comunicação nos currículos de nossas faculdades, admite-se hoje que ela é incapaz de explicar o que o jornalismo é “em essência”, porque não conseguiu, ou talvez não tenha se interessado em entender. E sem entender o passado e o presente da profissão, como falar do futuro? [ZELIZER, Barbara. Has Communication explained Journalism? Journal of Communication, 43, 1993, p. 80-88]

As reflexões de Groth não perderam o seu valor científico para quem queira compreender o que é, afinal, o jornalismo. Continua sendo atual e urgente entender que o jornalismo é ditado pelas leis da atualidade e da universalidade, que ao mesmo tempo o limitam e o expandem e o diferenciam nitidamente da ciência e da literatura. O jornalista está atado ao dia, ao tempo, de uma forma que o escritor não conhece, e ele nunca poderá se especializar como o cientista. Hoje, quando se discute o futuro da profissão do jornalista, é mais do que nunca imprescindível entender que o jornalista também não é um publicista, ou seja, alguém que vive da defesa de causas, embora também tenha as suas convicções, como qualquer pessoa. [Por isso não se pode estabelecer uma correlação automática entre exigência do diploma e restrição da liberdade de imprensa.]

Ele chega em Língua Portuguesa para ajudar a tapar uma lacuna nos estudos contemporâneos do jornalismo. Groth não está ausente apenas nas bibliografias dos cursos de graduação e pós-graduação em Comunicação do Brasil e do universo de Língua Inglesa, onde ainda não foi traduzido e tem se produzido o pensamento hegemônico na disciplina. Por isso, o conhecimento deste texto fundamental representa uma vantagem competitiva para os pesquisadores brasileiros e lusófonos, não apenas em relação aos seus colegas de língua inglesa, mas, surpreendentemente, também em relação aos pesquisadores da própria Alemanha, onde o conhecimento da obra de Otto Groth, pelos motivos já expostos, foi em grande parte perdido.

Diversos estudos já demonstraram como as escolas de jornalismo foram ocupadas pela nova “Ciência da Comunicação”, país por país [PARK, D.; POOLEY, J. (eds.) The history of media and communication research: contested memories.New York: Peter Lang, 2008], e no Brasil isso ocorreu por cooptação de acadêmicos, repressão à oposição e imposição dos “currículos mínimos” durante a ditadura militar [MEDITSCH, Eduardo. O Conhecimento do Jornalismo.Florianópolis: Editora da UFSC, 1990]. Após a redemocratização do país, a Comunicação foi “naturalizada” como um novo paradigma, como se fosse o desenvolvimento “normal” do campo. A pós-graduação da área, liderada quase sempre por acadêmicos vindos de outras disciplinas, gradualmente se autonomizou dos objetivos de formação profissional, desprezando de maneira cada vez mais assumida as práticas que originaram o campo e seus problemas teóricos específicos.

Em todas as profissões universitárias observa-se a presença da interdisciplinaridade na formação acadêmica. Os médicos, por exemplo, incluem biologia e química entre as disciplinas de seus cursos, assim como os engenheiros incluem física e matemática. Professores das diversas ciências sociais e humanas estão presentes nos corpos docentes de outras ciências aplicadas, como administração, direito, biblioteconomia e educação. Esta perspectiva multidisciplinar alarga os horizontes dos alunos, o que é um esforço necessário para qualquer formação de nível superior, e a terceirização de disciplinas de fundamentação científica garante a sua qualidade ao mesmo tempo em que libera os acadêmicos do campo para se dedicarem e desenvolverem aquelas que são definidoras e exclusivas da própria profissão. No entanto, nenhuma profissão que se leva a sério terceiriza as disciplinas centrais de seus cursos para profissionais vindos de outras áreas, muito menos aquelas que definem a própria natureza da profissão e justificam a sua existência, ou seja, que lhes garantem o indispensável respaldo teórico.

O jornalismo é uma exceção neste panorama, e ao ter negligenciado este aspecto, paga um preço bastante alto por isso, quer como disciplina científica, quer como profissão: quando o presidente do Supremo Tribunal Federal argumenta que a atividade está no mesmo nível da de cozinheiro, para tornar desnecessário o diploma universitário no Brasil em 2009, fica evidente a derrota teórica da profissão, que não conseguiu justificar sua existência diante da sociedade. E quando se diz que “agora todos são jornalistas” e que “a internet torna o jornalismo desnecessário”, fica ainda mais clara a confusão teórica de quem não se preocupou em pensar o que afinal o jornalismo é.

Curiosamente, a maioria das pessoas que dizem que o jornalismo se tornou obsoleto continua sendo usuária de produtos jornalísticos, mesmo tendo agora todo o outro conteúdo da internet como alternativa. Isso só confirma que o jornalismo tem “algo” de específico e insubstituível num mundo repleto de informação. Mas, para poder explicar esse “algo” o jornalismo precisa como nunca se reencontrar com sua teoria. Para entender o que o novo ambiente cultural e tecnológico vai mudar – e o que não vai mudar – num “Jornalismo 2.0”, é preciso compreender o que é a “essência” do Jornalismo, ainda na sua versão 1.0. Para reinventar o jornalismo é preciso entender sobre que bases foi originalmente inventado. E ninguém mais que Otto Groth mostrou este caminho.

Uma ciência para chamar de sua

A obra O Poder Cultural Desconhecido pode ser considerada um clássico fundador da Jornalística, uma ciência projetada para entender e orientar a prática do jornalismo. Provavelmente, ninguém mais no mundo foi tão longe no desenvolvimento de uma teoria do jornalismo, na delimitação de seu lugar em relação às outras ciências, na definição de seu objeto próprio, da metodologia que necessariamente é derivada deste objeto e de sua aplicação clínica à prática profissional. As partes mais importantes, transcendentes e significativas de sua obra estão reunidas neste volume.

O Poder Cultural Desconhecido não é um livro fácil, que possa ser devorado com pressa, mas seu estudo é fundamental. A ordem com que esta tradução está organizada respeita a apresentação original do texto em alemão, que tem uma intenção lógica, já que os pressupostos das últimas partes são apresentados nas anteriores. No entanto, conforme a experiência da leitora ou leitor em mergulhos de profundidade teórica, pode ser aconselhável começar a leitura pela última parte, que é a menos abstrata. Nesta terceira parte, foram escolhidos trechos da obra que tratam especificamente da profissão do jornalista e do seu prestígio social, bem como da atividade considerada como protótipo desta profissão, a de relatar. É a parte com que o jornalista prático mais se identificará, e que pode ser usada sem dificuldade em uma disciplina introdutória para calouros de jornalismo. Ali Otto Groth demonstra a aplicação direta da ciência à atividade, caracterizando a sua dimensão “clínica” (o autor talvez preferisse ‘tecnológica’) que distingue as profissões universitárias dos trabalhos mais técnicos ou mecânicos.

A segunda parte é a mais conhecida da obra de Groth. Trata-se do trecho clássico no qual ele disserta sobre as características essenciais dos jornais: a periodicidade, a atualidade, a universalidade, e a publicidade, e daí extrai as “leis próprias” do jornalismo. É uma referência inescapável em discussões sobre Teoria do Jornalismo, para a compreensão do que ele tem de específico como trabalho intelectual. Essas leis constituem o cerne de sua teoria no que explica a prática, e seguem sendo fundamentais para compreender as novas formas de jornalismo que emergem da internet, como demonstrou o professor português António Fidalgo a respeito do jornalismo online, noutra rara referência a Otto Groth feita em nossa língua [FIDALGO, António. Jornalismo online segundo o modelo de Otto Groth. Pauta Geral(2004). Disponível aqui].

Já a primeira parte do livro trata de uma discussão epistemológica sobre o sentido e o lugar de uma ciência dos jornais, e sua relação com as outras ciências. É a mais abstrata e densa, e em consequência será a mais difícil de penetrar para quem não possui treinamento teórico anterior. Afinal, como Caetano Veloso já advertiu, para filosofar às vezes é preciso pensar em alemão. Esta é, no entanto, a parte mais importante para justificar a presença do jornalismo na universidade e para fundamentar a necessária reinvenção do campo acadêmico da comunicação, no caminho da práxis, no momento em que o mundo profissional se transforma radicalmente. É a parte que responde às angústias dos professores e pesquisadores da área que sonham com uma ciência legítima para chamar de sua.

A leitura de todas as partes fornece bases imprescindíveis para a tarefa de construir uma Teoria do Jornalismo 2.0.

Notas de tradução

Algumas observações sobre a tradução em si se fazem necessárias. O autor utiliza a palavra Journalistik como sinônimo para jornalismo e para a ciência do jornalismo. Na tradução, a Journalistik referente à atividade foi traduzida como jornalismo. O mesmo ocorre com a expressão Publizistik: a atividade se tornou publicismo e a ciência, Publicística. O conceito polissêmico Oeffentlichkeit também recebeu denominações diferentes em português: como esfera pública (o espaço) e como publicidade (o ser/tornar-se de conhecimento público).

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[Eduardo Meditsch e Liriam Sponholz são, respectivamente, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPQ, e doutora em Comunicação pela Universidade de Leipzig e pesquisadora/pós-doutoranda da Universidade de Erfurt (Alemanha)]