Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

BBC, um modelo para o Brasil

‘Fiquei muito bem informado, pela BBC, sobre a bomba em Belfast que resultou em dezenas de mortos sem ver uma gota de sangue. […] É a diferença entre a informação necessária e o espetáculo mórbido.’

O episódio, contado pelo professor Laurindo Lalo Leal Filho, é bastante representativo do que acontece na mídia brasileira. Para Lalo, sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e da Faculdade Cásper Líbero, um contraponto ao modelo comercial brasileiro pode ser observado no serviço brasileiro da britânica BBC, objeto de seu mais recente livro, Vozes de Londres, lançado no último dia 12 de maio, em São Paulo, e que retoma os estudos do autor sobre a emissora.

Nesta entrevista ao Observatório do Direito à Comunicação, Lalo ataca o sensacionalismo da mídia privada brasileira, deposita esperanças na TV Brasil e afirma que a BBC deve, sim, ser usada como referência para a formação de um sistema público no Brasil.

***

De onde surgiu a idéia do livro? Por que escrever sobre o serviço brasileiro da BBC?

Laurindo Lalo Leal Filho – A idéia foi minha. Conheço o serviço brasileiro desde os meus tempos de repórter esportivo. Nas minhas andanças profissionais e acadêmicas pela Inglaterra sempre estive próximo desse serviço. E percebi a importância que ele teve para o Brasil em diferentes ocasiões, como a 2ª Guerra Mundial e o período da ditadura militar. Nesses momentos, o serviço brasileiro foi uma fonte de informações importante, não só do que ocorria no mundo, mas até do que acontecia por aqui. Há casos, contados no livro, em que a notícia de algo ocorrido no Brasil foi transmitida primeiro pela BBC e só mais tarde por emissoras nacionais. E de outras notícias que nem foram veiculadas por aqui. Além da presença de figuras ilustres que passaram por lá como funcionários da BBC ou como entrevistados. Lembro, no primeiro caso, dos escritores Antonio Callado e J.J. Veiga, de políticos como Emílio Carlos, de poetas como Vinícius de Moraes, de jornalistas como Fernando Pacheco Jordão, Vladimir Herzog, Jader de Oliveira e Ivan Lessa, o qual, aliás, ainda está por lá. No segundo caso, de figuras como Dom Helder Câmara, Chico Buarque, Caetano Veloso, Carmen Miranda, entre tantos outros. Achei que tudo isso valia um livro, e valeu.

A BBC tem uma série de recomendações e normas que atribuem parâmetros à atuação de seus profissionais, e também uma reiterada preocupação com a imparcialidade e a diversidade de opiniões. Por que o Brasil não consegue ter essa clareza em relação à função pública da mídia?

L.L.L.F. – Acredito que a raiz da dificuldade esteja nas origens institucionais da radiodifusão no Brasil. Aqui, com exceção dos anos iniciais, ela sempre foi vista como negócio, nunca como serviço público. Ao entregar para a iniciativa privada a exploração do espectro eletromagnético, o primeiro governo Vargas instalou uma relação promíscua entre o Estado e os concessionários privados que perdura até hoje. A lógica estabelecida foi a do capital. Empresas recebem a concessão como favor do Estado e retribuem dobrando-se a ele. Mas não de forma dócil e automática. Exercem pressões, estabelecem pautas, impõem vontades. Se, em algum momento, se sentem contrariadas, não hesitam em retaliar. E os governos, todos eles, temem essa retaliação, sabedores do poder que as emissoras têm junto à sociedade. Nesse cenário, torna-se impossível o estabelecimento de regras claras para a atuação do rádio e da TV. Qualquer iniciativa nesse sentido será sempre subordinada aos interesses comerciais de quem opera as concessões públicas. Entre uma cobertura objetiva e cautelosa de um caso policial e o espalhafato sensacionalista que pode render alguns pontos a mais nos índices de audiência, as emissoras optam pela segunda opção, mandando às favas qualquer escrúpulo que ainda possa restar de compromisso público.

À época da criação da EBC, o sr. defendeu que a BBC seria uma boa referência para a constituição do sistema público brasileiro e muitos o criticaram alegando que os contextos históricos não permitiriam comparações. Quais são seus argumentos?

L.L.L.F. – E continuam achando. Achando não, tendo certeza absoluta. A BBC, com todas as possíveis críticas que se possa fazer (e ela é seguidamente criticada, especialmente dentro do Reino Unido), ainda é o modelo mais bem acabado de serviço público de radiodifusão que existe no mundo. Mantida pelo público e por ele controlada de perto através de mecanismos institucionais eficientes, a BBC consegue prestar um serviço de radiodifusão reconhecido mundialmente por sua qualidade. Claro que são realidades distintas, mas nem por isso se deve descartar como referência um exemplo como esse. Seria o mesmo que dizer que o acesso universal à saúde alcançado na Grã-Bretanha deveria ser deixado de lado no Brasil porque aqui a realidade é diferente. No caso da radiodifusão, é perfeitamente possível um engajamento maior da sociedade no financiamento e no controle do rádio e da TV Pública. Principalmente para fortalecê-las diante dos ataques persistentes dos grupos e setores da sociedade que não admitem as suas existências.

O serviço brasileiro da BBC pode contribuir para a construção de um serviço internacional da EBC? De que forma?

L.L.L.F. – Talvez possa, ainda que de forma indireta. Não institucionalmente, já que são organizações autônomas de países distintos. Mas a partir das experiências adquiridas por várias gerações de profissionais brasileiros que passaram pela BBC. Inúmeros jovens, muitos recém-formados, atuaram e atuam na BBC Brasil. Acredito que a maioria experimentou a agradável sensação de fazer jornalismo livre das pressões do mercado, algo raro por aqui. E, além disso, trabalhar numa organização de âmbito global, que cobre praticamente o mundo todo 24 horas por dia. São experiências individuais que, talvez somadas, podem contribuir para a construção de um serviço internacional da EBC. A qual, aliás, herdou da Radiobrás o Canal Integración, voltado para a América Latina. Ele pode ser o embrião de um serviço internacional mais amplo.

O diretor-geral da BBC, Mark Thompson, atribuiu, e 2005, à experiência prática o sucesso do jornalismo público da emissora. Falta isso ao Brasil? Como superar essa falta?

L.L.L.F. – Infelizmente, o modelo comercial adotado no Brasil e que, ao longo dos anos, tornou-se hegemônico, impediu uma prática mais ampla e constante de um jornalismo voltado para a sociedade, e não apenas para o mercado. Já houve épocas melhores. No entanto, com o acirramento da competição por índices de audiência, a lógica da programação geral das emissoras contaminou o jornalismo. Não interessa se o público está sendo bem ou mal informado. O importante, para as emissoras, é que ele não mude de canal e, para isso, vale quase tudo. Dentro desses princípios editoriais fica difícil desenvolver uma prática jornalística diferenciada. E quem tenta, nas emissoras comerciais, corre o risco de perder o emprego. Acredito que o fortalecimento das emissoras públicas possa contribuir para mudar esse quadro. Mas para isso é preciso que elas não se deixem levar também pela busca da audiência a qualquer preço. Esses índices não podem ser desprezados, mas não podem se transformar em valores absolutos. Operando a partir desses parâmetros, torna-se possível refletir sobre a qualidade editorial do jornalismo e, indo além, investir na formação de profissionais capazes de distinguir a informação qualificada do espetáculo midiático.

Um caso recente no Brasil tem sido usado como exemplo do sensacionalismo dos órgãos de imprensa: a morte da menina Isabella Nardoni. A BBC, por sua vez, tem regras claras sobre a relevância pública da notícia. Como uma emissora pública brasileira deveria tratar um caso como esse?

L.L.L.F. – Acredito que a TV Brasil tenha feito uma cobertura séria do caso. Foi um bom começo. Evitava imagens, mas dava as informações necessárias para que o telespectador estivesse bem informado sobre os acontecimentos. A questão não é sobre informar ou não, mas como informar. Um caso como esse, dadas as suas trágicas circunstâncias, desperta o interesse do público e acaba se transformado em um assunto de interesse público. Sua cobertura deve ser, no entanto, cuidadosa. Ela não pode, como fazem as emissoras comerciais, aumentar ainda mais a dimensão da tragédia. Houve momentos, e foram vários, em que não havia mais o que informar e os telejornais continuavam chamando os repórteres postados na frente das delegacias ou das casas dos suspeitos. Eles diziam apenas obviedades, repetiam informações ou informavam que estavam chegando mais repórteres e começava a chover, como fez uma pobre repórter do SPTV. É isso que a TV Brasil e qualquer emissora séria, pública ou privada, não deveria fazer. Para ficar em outra comparação lembro o dia de um atentado do IRA na Irlanda do Norte que coincidiu com um assalto sofrido numa estrada de São Paulo por um ator da Globo. Fiquei muito bem informado, pela BBC, sobre a bomba em Belfast que resultou em dezenas de mortos sem ver uma gota de sangue. Aqui, as equipes chegaram ao local do assalto, obviamente, bem depois do crime. Mas para não perder a viagem e a audiência colocaram no ar, por longos minutos, as manchas do sangue que a vítima deixou no asfalto. É a diferença entre a informação necessária e o espetáculo mórbido.

Como o sr. vê o atual estágio de desenvolvimento da EBC? O que está no caminho certo e o que pode ser melhorado?

L.L.L.F. – Não é um processo fácil construir uma empresa pública de comunicação em tão pouco tempo. A programação ainda é a mesma da antiga TVE do Rio com dois programas da Radiobrás e os dois telejornais remodelados. É pouco para julgar. Acredito que a nova grade a ser colocada brevemente no ar dará ao telespectador uma alternativa real de programação em relação ao que é oferecido hoje pelas demais emissoras. Documentários, filmes de qualidade e sem intervalos, análises mais aprofundadas e abrangentes de temas importantes do cotidiano nacional e internacional estão previstos. Tudo isso é quase inédito na TV aberta brasileira. Mas ainda há muito mais a avançar. Registro três pontos, entre vários outros: a universalidade de acesso, a participação institucional da sociedade e a formação de quadros. É fundamental que o governo ofereça condições à EBC, através da Anatel e do Ministério das Comunicações, para que o seu sinal chegue gratuitamente a todos os domicílios brasileiros. Trata-se de um serviço público pago por toda a sociedade que, por sua vez, tem o direito de usufruí-lo em qualquer parte do território nacional. É necessária também a ampliação da participação da sociedade na gestão da empresa. A primeira renovação do Conselho Gestor abre essa possibilidade. É preciso que ela seja concretizada, não apenas para que a EBC absorva as aspirações da maior parte possível da sociedade, mas para que, ao mesmo tempo, receba desta o apoio necessário ao seu pleno desenvolvimento. E é também fundamental a articulação da empresa com os cursos profissionais e acadêmicos da área, auxiliando-os na formação de quadros voltados para o serviço público de radiodifusão, algo ainda desconhecido nas escolas brasileiras.

******

Do Observatório do Direito à Comunicação