De repente, voltou. A biografia tem dessas coisas, vai e volta independente dos editores e editoras. Quanto mais perdidos estão os leitores, mais se agarram às biografias.
A Jorge Zahar Editor acaba de lançar com grande estrépito Roberto Marinho, de autoria do jornalista Pedro Bial, e o caderno ‘Mais!’ da Folha de S.Paulo (domingo, 5/12) dedicou ao gênero biográfico três páginas, inclusive a capa.
O curioso é que no farto material publicado pela Folha desdenhou-se o ‘gancho’ e não se faz qualquer menção à biografia do patriarca da Globo. A resenha foi publicada no sábado (4/12), discretamente, na ‘Ilustrada’, de modo a não ganhar relevância. E não reacender velhas brigas.
Pitoresca e extremamente significativa é a divergência entre as duas matérias que compõem este dossiê biográfico: enquanto a reportagem assinada por um profissional da equipe do jornal segue a ‘linha justa’ e só cita biografias e biógrafos cujos nomes estão fora da ‘lista negra’, a matéria da articulista convidada, emérita professora da USP, desdenha o embargo e cita todos os autores e obras que considera relevantes.
Bendita discrepância: graças à Folha pode-se entender por que o biografismo luso-brasileiro não prosperou no passado e por que hoje apenas alguns biógrafos merecem os galardões da grande imprensa.
Preconceito básico
Ao contrário do biografismo anglo-saxônico, o nosso sempre primou pela facciosismo. E este sectarismo – a favor e contra – estende-se às avaliações sobre biógrafos, biografados e biografias.
Critica-se o ‘aparelhamento’ do governo pelo PT mas nossa tradição lítero-jornalística sempre foi aparelhada, na base do ‘aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei’. Somos intrinsecamente clubistas e o nosso biografismo ressente-se deste engajamento orgânico que compromete o próprio discernimento sobre a qualidade de uma biografia. Ao detestar o biógrafo condena-se o biografado – ou vice-versa – e dessa maneira arrevesada e totalitária estabelecem-se nesta paróquia os padrões de qualidade e excelência.
Do pântano não escapa nossa academia, teoricamente isenta e ‘científica’, onde os historiadores chutam o biografismo para os departamentos de literatura e estes, na melhor das hipóteses, o remetem para as escolas de jornalismo. O dossiê da Folha é exemplo disso.
Da primeira fornada de resenhas sobre Roberto Marinho, de Pedro Bial, evidencia-se um preconceito primal: pelo fato de o autor estar ligado à empresa do personagem a obra é imediatamente classificada como encômio. A partir daí, não presta.
A segunda morte
Grandes biografias roçam o panegírico e nem por isso foram desqualificadas: a famosa Vida de Samuel Johnson, de James Boswell (1791), é um clássico do biografismo ‘moderno’ e também um preito do biógrafo ao biografado (com o qual manteve intenso convívio).
O celebrado retrato Um estadista do Império, de Joaquim Nabuco, seria suspeitíssimo porque o autor é filho do personagem (José Tomás Nabuco de Araújo). Mais ainda Um estadista da República, de Afonso Arinos de Melo Franco (sobre o seu pai, Afrânio de Melo Franco), que teria contra, além da semelhança de títulos, os laços entre os Nabuco e os Melo Franco.
A autobiografia de Alice B. Toklas, de Gertrude Stein (sobre a sua companheira de 25 anos), é um originalíssimo relato onde biógrafa e biografada estão de tal modo entrelaçadas que torna-se supérfluo o debate objetividade-subjetividade.
A proximidade do narrador com o objeto da narrativa não a invalida. Ao contrário, pode validá-la pela intensidade das vivências que reanima. Uma biografia é boa ou ruim na medida em que consegue ressuscitar o biografado. Reproduzir a sua voz, presença, reações, percurso. Sobretudo, se abdica de julgá-lo.
Se a intimidade é secundária, também a extensão do relato. Paulo Francis, de Daniel Piza (editado no Cadernos de Comunicação da Prefeitura do Rio, série ‘Perfis do Rio, 2004), com apenas 117 páginas é um retrato de corpo inteiro do jornalista carioca. Classificado como perfil (para enquadrar-se na série) é muito mais do que isso – é uma biografia compacta. Pronta para ir ao fogo e crescer.
Este é um dado crucial na qualificação da boa ou má biografia. Biógrafos trabalham com matéria viva. Alguns atrapalham-se, seduzidos pelo anedotário e irrelevâncias. Nestes casos, o biografado morre pela segunda vez. Culpa dos biófagos.