Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Brasileiro lê pouco e mídia reforça tendência

Matéria da Agência Senado apresentou números alarmantes acerca da leitura de livros no Brasil. O povo brasileiro não chega a ler três obras literárias por ano. Não é nenhuma novidade que o povo neste país não se interesse pela leitura de livros, uma vez que, cotidianamente, os estímulos que o cerca não sugerem aproximação e intimidade com os livros. Pelo contrário. Exemplo disso são as telenovelas, que fazem parte do cotidiano de uma parcela considerável da população, bem como alguns personagens tidos como ícones, principalmente pela juventude, a exemplo de cantores, atrizes, atores, jogadores de futebol etc.

O conteúdo principal da matéria da Agência Senado diz o seguinte: ‘O brasileiro lê bem menos que os habitantes dos países desenvolvidos; aqui, são, em média, 2,5 livros por ano, contra 10 nos Estados Unidos ou 15 em países como a Suécia ou a Dinamarca. Mas apenas 0,9 desses 2,5 livros anuais lidos não são obras didáticas, que as escolas exigem dos alunos. As diferenças regionais brasileiras também conspiram contra o crescimento do hábito da leitura, já que só há livrarias em 30% dos 5.564 municípios.’

Estes dados, embora estarrecedores, revelam uma realidade que se configura em conseqüência de uma série de fatores, entre eles a fragilidade – para não dizer ineficácia total – do sistema educacional do país, que não apresenta uma diretriz clara no que tange ao tipo de cidadão que pretende formar. Aliás, apresenta, sim! A educação brasileira, especialmente a pública, existe apenas no papel, nas estatísticas, que, diga-se de passagem, a cada ano estão mais maquiadas e ainda assim demonstram a vergonha do que se chama ensino público no Brasil.

Sem qualquer importância

Mas, saindo desta questão, que é deveras profunda, aqui vamos nos ater aos estímulos externos ao sistema educacional que poderiam despertar, sobretudo nos jovens, o gosto pela leitura: as telenovelas, os programas televisivos de um modo geral e, inclusive, as diversas campanhas publicitárias, oficiais ou não, que utilizam certos ícones como garoto(a)-propaganda.

A novela Caminhos das Índias, exibida pela rede de maior audiência do país, a Globo, pode ser utilizada como ilustração para refletirmos acerca desses estímulos: nas poucas vezes em que uma obra literária apareceu nas cenas daquela teledramaturgia, foi apresentada com nenhuma importância.

Primeiro, a telenovela mostrou o livro como companhia para o personagem Raul Cadoli (interpretado pelo ator Alexandre Borges), o qual, após sofrer um atentado à bala, viu-se obrigado a repousar e, como não poderia fazer nada, pegou uma obra literária. No entanto, as cenas que mostravam o personagem com o livro sempre o faziam na hora que entrava alguém no quarto, momento quando, imediatamente, a obra literária era fechada e deixada de lado. A novela não mostrou nenhuma cena do personagem lendo ou demonstrando interesse pela leitura.

Outro momento em que livros apareceram na telenovela foi no capítulo exibido na terça-feira (24/3), quando a personagem Sílvia Cadoli (interpretada pela atriz Débora Bloch), aparecia manuseando uns exemplares como se os tivesse arrumando em um móvel (que não era uma estante). Mas a cena foi interrompida imediatamente com a chegada de Raul e, da mesma maneira que a cena anteriormente narrada, a presença dos livros não teve importância alguma naquela passagem.

Não gosta de ler e não lê

Assistida por milhões de brasileiros, de diversas faixas etárias, a telenovela poderia servir como um estímulo ao ato de ler. Ao contrário, estimula jovens a cometer atos violentos – como é o caso do personagem Zeca, interpretado pelo ator Duda Nagle, que freqüentemente (inclusive com a conivência dos pais) espanca colega, comete crime via internet, entre outros.

Saindo da teledramaturgia, podemos usar como exemplo as campanhas publicitárias. Inclusive aquelas realizadas pelos governos federal, estaduais e municipais, que costumeiramente utilizam certas personalidades consideradas ícones, sobretudo pela juventude, para transmitirem mensagens educativas (é bom lembrar que estas poderiam ser mais freqüentes e melhores elaboradas). Nelas, não se vê pessoas ligadas ao mundo da leitura e dos livros. Acaso alguém já viu o escritor João Ubaldo Ribeiro, por exemplo, transmitindo alguma mensagem oficial? Acredito que não. No entanto, Claudia Leitte, Ivete Sangalo, Ronaldo Nazário e tantos outros considerados ídolos da juventude, sim, já o fizeram e continuam fazendo.

A cantora Ivete Sangalo, só para citar um caso (que indubitavelmente esbanja talento, beleza física e simpatia e é um dos ícones da juventude brasileira), não cansa de, ao conceder entrevistas, afirmar, com veemência, que não gosta de ler e não lê. Certa feita, em plano carnaval da Bahia, Sangalo cumprimentou o também baiano e escritor João Ubaldo Ribeiro, afirmando que, apesar de admirá-lo muito (sic), nunca havia lido um livro dele.

O gosto pelo conhecimento

Aí estão os estímulos que a nossa juventude recebe. Sangalo é garota-propaganda de várias marcas, está na mídia cotidianamente e, portanto, não deixa de ser uma influência significativa na vida das pessoas. E o que ela diz acaba servindo como referência para muitos, principalmente a juventude que acompanha sua carreira, comprando discos e assistindo aos shows.

Lamentavelmente, teríamos inúmeros exemplos como este para citar, o que tornaria esta reflexão muito longa e talvez imprópria para este espaço. Contudo, os exemplos aqui citados servem como demonstração do quanto a mídia e aqueles que a utilizam como meio de disseminação de mensagens as mais variadas vêm corroborando para a manutenção dessa triste estatística publicada no início do mês de março pela Agência Senado.

Exemplo diferente dá o nosso vizinho do lado, a Argentina, país cuja capital possui mais livrarias do que todo o território brasileiro. No último dia 23, durante a partida de futebol entre Boca Juniors e Tigre, as duas equipes se apresentaram ao estádio de uma maneira bem inusitada, interessante e educativa: os jogadores, vestidos com jalecos escolares, acompanhados de meninos e meninas vestidos com os uniformes dos dois clubes, apareceram diante da torcida afirmando: Si vas a la esculea, el ídolo sos vos (Se vai à escola, o ídolo é você).

Imaginemos Ronaldo, Júlio César, Ronaldinho Gaúcho e tantos outros ídolos do futebol, ou mesmo Claudia Leitte, Ivete Sangalo, Chiclete com Banana ou Xuxa, falando para jovens, crianças e adultos que é legal ler, que é interessante e importante a intimidade com os livros; ou as telenovelas que tanto fazem sucesso, estimulando o gosto pela leitura, através de passagens que fizessem claras apologias ao livro. Talvez isso se traduzisse em uma mudança de comportamento e a mídia tivesse um papel importante neste cenário, que por agora só faz parte da vontade de quem já descobriu o gosto pelo conhecimento e mesmo pela aventura que pode significar a leitura de um livro.

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Doutora em História da Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid, Espanha, professora dos cursos de Comunicação Social da Faculdade 2 de Julho, Salvador, e professora de História da rede estadual de ensino também em Salvador, BA