Roy E. Disney encostou sua Ferrari vermelha 1999 no estacionamento do Bar de Vinhos Bodega, em Pasadena. Era o final da tarde de uma quinta-feira, 20 de novembro de 2003, uma semana antes do Dia de Ação de Graças. Roy adorava aquela Ferrari, um dos poucos indícios de que o discreto sobrinho de Walt Disney, de 73 anos, era um dos homens mais ricos dos Estados Unidos. O carro se destacava no estacionamento da Disney, onde Roy tinha um lugar fixo ao lado do de Michael Eisner, o presidente do conselho administrativo e principal executivo da companhia. Por causa do carro, todo mundo sabia quando Roy estava no quartel-general da Disney.
Roy detestava o edifício da Team Disney, projetado pelo famoso arquiteto Michael Graves a pedido de Eisner para servir de quartel-general corporativo da Walt Disney Company. Embora a fachada monumental fosse animada por baixos-relevos dos Sete Anões no frontão, Roy achava que o prédio representava tudo o que era exagerado e pretensioso na companhia criada por Eisner. Como fazia de vez em quando, Roy se perguntou o que seu tio Walt teria pensado. O escritório de Walt continuava lá, no modesto e velho prédio da animação. Eisner o havia usado como seu escritório antes de se mudar para a nova sede. Agora Roy tinha se mudado para lá, preferindo-o ao edifício da Team Disney, tão árido e enorme que ele brincava que tinha de deixar uma trilha de migalhas de pão para encontrar o caminho de saída.
Nos últimos meses, a distância física entre Roy e Eisner e outros altos executivos tinha se tornado mais que simbólica. Apesar de ele ter levado Eisner para a companhia quase vinte anos antes, agora se sentia decepcionado e traído pelo outro. Eisner tinha chegado à Disney depois de uma carreira meteórica na programação da ABC e em filmes na Paramount Pictures. Mas agora Roy atribuía os grandes sucessos iniciais de Eisner a sua parceria com outros: com Barry Diller na ABC e na Paramount; com Frank Wells e Jeffrey Katzenberg nos primeiros anos incríveis da Disney. Desde a trágica morte de Wells num acidente de helicóptero, em 1994, e da triste partida de Katzenberg logo depois, a responsabilidade pela Disney fora exclusivamente de Eisner. Na opinião de Roy, os resultados haviam sido desastrosos. Enquanto o desempenho financeiro e a energia criativa da companhia diminuíam, Eisner se agarrara ao poder com uma intensidade de Rei Lear, convencido de que somente ele tinha o instinto criativo e as habilidades administrativas para conduzir a Disney ao mundo de gigantescos conglomerados de mídia e entretenimento do século XXI. Eisner reivindicava o manto do próprio Walt, aparecendo nas telas de TV das salas de estar do país como anfitrião do ‘Mundo maravilhoso de Walt Disney’, como fazia Walt.
Nesse sentido, Roy achava que Eisner era apenas o último de uma série de pretendentes ao trono que Walt ocupara. Às vezes ele se perguntava por que tantas pessoas desejavam incorporar Walt. Ninguém percorria Hollywood afirmando ser Louis B. Mayer ou Cecil B. DeMille. O que daria às pessoas a ilusão de que poderiam ocupar o lugar de Walt? Primeiro foram E. Cardon Walker e Ron Miller, o genro de Walt, que, como presidente do conselho e principal executivo da Disney, invocara constantemente a memória de Walt. Depois fora Jeffrey Katzenberg, que reivindicara o legado de Walt como chefe dos Estúdios Disney. Eles tinham ido longe demais; Roy tivera de intervir, e ambos foram substituídos. Agora Eisner estava passando dos limites.
Roy não afirmava ser Walt, mas se havia alguém com direito a seu legado era ele. Era Roy quem desfilava diante do mundo como a personificação da Disney Company e do que ela representava, o último diretor da empresa com o sobrenome Disney. Apenas um mês antes Eisner tinha elogiado publicamente os esforços de Roy em nome da companhia na grande estréia de ‘Missão: ESPAÇO’, a nova atração do Walt Disney World, que estava atraindo grandes elogios. As multidões sempre pareciam reagir bem a Roy, talvez porque, aos 73, ele tivesse grande semelhança física com Walt. Mas o elogio de Eisner em público escondia uma crescente hostilidade em particular. Quando a mulher de Eisner, Jane, passou por Roy e sua mulher, Patty, pouco antes do discurso de Eisner, eles se ignoraram veementemente.
‘Terrível engano’
Havia muito tempo que Roy tinha parado de freqüentar as reuniões semanais de Eisner com os altos executivos, ou os almoços em que ele costumava informar Roy sobre os planos e estratégias da empresa. Roy deixara de confiar em Eisner depois que soubera que este tinha colocado um espião no departamento de animação para lhe contar tudo o que Roy fizesse ou dissesse. Eles tinham evitado o contato na recente estréia em Nova York da animação de longa-metragem Irmão Urso – na opinião de Roy, medíocre. Pior de tudo, quando a mãe de Roy, Edna, e a viúva de Walt, Lillian, receberam uma homenagem póstuma na cerimônia do prêmio Disney Legends daquele ano, e Roy a recebeu em nome da família, Eisner não apareceu. Era a primeira vez que faltava a um evento e, pouco depois, houve rumores na Disney de que o presidente do conselho e o vice-presidente do conselho da companhia não estavam se falando.
Roy não estava feliz porque dali a pouco ia tomar um drinque com John Bryson, presidente e principal executivo da Edison International, a matriz da Southern California Edison. Bryson, que havia entrado para o conselho da Disney em 2000, era presidente do poderoso comitê de nomeações e governança. Roy raramente falava nas reuniões do conselho. Mas seu aliado, sócio, advogado e companheiro de conselho Stanley Gold mais que compensava seu silêncio. Há anos Gold criticava asperamente a administração de Eisner e o desempenho financeiro da companhia. Mas seus comentários caíam em ouvidos moucos. Os diretores pareciam apoiar cegamente Eisner. Os que não apoiavam, como Andrea Van de Kamp e Reveta Bowers, tinham sido expurgados, uma advertência aos demais sobre os riscos da dissidência. Roy suspeitava especialmente de Bryson, um fiel seguidor de Eisner que havia destituído Gold da presidência do comitê de governança, e depois votou sua saída total do comitê.
Desde o mês de setembro Gold tinha enviado uma série de cartas a seus colegas do conselho, criticando asperamente o desempenho e a remuneração de Eisner. Ele e Roy pensaram que seria mais difícil ignorar comentários por escrito, e queriam deixar suas opiniões perfeitamente claras. Mais recentemente, Gold e Roy haviam-se oposto ao pacote de remunerações de Eisner, que lhe dera um bônus de US$ 5 milhões em um ano em que a renda operacional da companhia caíra 25 por cento e suas ações sofreram uma nova queda recorde em 52 semanas.
Bryson havia ligado para Roy alguns dias antes. ‘Preciso falar com você’, ele disse, e insistiu para que se encontrassem em algum lugar onde não seriam vistos. Roy concordou, mas achou que o tom da voz de Bryson tinha ‘algo de fúnebre’. Ele temia que os seguidores de Eisner fossem tentar expurgar Gold. A atmosfera nas últimas reuniões do comitê tinha sido cada vez mais tensa.
‘Como posso proteger Gold?’, Roy pensava quando entrou no bar. Ele não podia entender por que o resto do comitê desejaria eliminar a última voz dissidente.
Assim que pediram as bebidas, Bryson dispensou as amenidades e foi direto ao assunto.
– Sabe, Roy, você já passou da idade da aposentadoria compulsória – ele disse.
Roy ficou chocado com a franqueza de Bryson e murmurou algo desconexo. Sim, tecnicamente ele havia passado, já que a idade da aposentadoria era 72 anos, e ele tinha completado 73. Mas isso não se aplicava aos membros do conselho que também faziam parte da administração, e ele era o chefe da animação. A Disney era famosa pela longevidade de muitos de seus funcionários.
– O comitê se reuniu – Bryson continuou – e Tom Murphy e Ray Watson vão sair.
Murphy, o ex-presidente da Capital Cities/ABC, tinha entrado para o conselho depois que a Disney adquirira a ABC em 1995; Watson, presidente da Disney antes da chegada de Eisner, em 1984, era, depois de Roy, o mais antigo membro do conselho. Ambos tinham mais de 72 anos. Roy não ficou surpreso, pois ambos haviam lhe falado sobre seus planos de aposentar-se.
– Concluímos que você não deve se candidatar à reeleição – disse Bryson.
Roy olhou para ele surpreso e descrente. Estava sem fala. Parecia que tinham enfiado uma faca em seu coração. Nunca havia passado por sua cabeça que o conselho chegasse tão longe. Não se tratava apenas do fato de ele ainda ser um dos maiores acionistas da companhia. Havia dado cinqüenta anos de sua vida à Disney. Era a única ligação direta com Walt no conselho. Walt tinha contado histórias de fada e lido Pinóquio para ele quando criança. Junto com Walt, o pai de Roy tinha criado aquela empresa.
Houve um silêncio sem graça. Finalmente Bryson disse:
– Tive de dizer a mesma coisa a Warren Christopher – referindo-se ao ex-secretário de Estado de Bill Clinton, que atingira a idade de aposentadoria compulsória quando era membro do conselho da Edison.
– Bom para você – disse Roy.
– É claro, você pode ser um diretor honorário vitalício – disse Bryson. – Gostaríamos que continuasse aparecendo nos parques, nos eventos especiais…
Roy o interrompeu com uma risada. Então ainda queriam que ele desfilasse fantasiado como um dos personagens de Disney. Era insultante.
Houve outro silêncio incômodo. Sem dúvida eles achavam que ele sairia calmamente, refugiando-se em seu castelo na Irlanda ou em seu veleiro para passar o resto da vida. Mas, apesar da idade, ele sentia um ímpeto de energia e determinação. Roy fora subestimado durante toda a vida. Isso já havia acontecido, e não iria acontecer de novo. Ele tinha só uma coisa a dizer:
– Você está cometendo um terrível engano – disse, olhando diretamente para Bryson. – E vai lamentar ter feito isso.
Então levantou-se e saiu.
Predadores corporativos
É final de maio no centro da Flórida, um dia luminoso e límpido. Apesar de serem apenas 10 da manhã, os termômetros já marcam 32 graus e a umidade também está alta. Não é preciso muita imaginação para acreditar que o Reino Animal, um dos quatro parques temáticos que compõem o Walt Disney World, fica realmente na África tropical.
Pateta está parado junto à cerca do parque, pronto para fazer uma apresentação. Assim como os turistas num safári na África esperam avistar um dos ‘cinco grandes’ animais de caça, os visitantes do Reino Animal procuram os ‘cinco grandes’ da Disney: Mickey, Minnie, Donald, Pluto e Pateta, as maiores celebridades do panteão Disney e os autógrafos mais cobiçados. Pateta é um cachorro com focinho comprido, orelhas caídas, uma pequena barriga e grandes patas. Também é o personagem mais alto, com mais de 1,80 metro, e nesse dia está vestido para o Reino Animal. Usa um grande chapéu de safári, sapatos e meias para caminhada, short verde com estampa de dinossauro, camisa xadrez e suspensórios vermelhos e um lenço cáqui no pescoço.
O que muita gente não percebe é que a visão do Pateta não está muito boa. As orelhas compridas obstruem sua visão periférica e o nariz avantajado a prejudica ainda mais. O que ele mais enxerga é o chão perto de seus pés. Felizmente, Pateta tem dois ajudantes humanos que o orientam pelo parque. Eles abrem uma porta e delicadamente o empurram adiante. Pateta não sabe realmente onde se encontra, mas escuta o murmúrio de vozes a distância. Está nervoso e sente o coração batendo. Apenas alguns segundos se passam e ele ouve: ‘Olhem o Pateta!’
Ele escuta mais vozes de crianças e vê várias delas correndo em sua direção. Pateta acena e demonstra o tolo ‘passo do Pateta’, uma de suas marcas registradas. As crianças o amam! Outras se aproximam correndo, e seus pais tentam alcançá-las. De repente Pateta vê uma garota bem perto dele. Parece ter 5 ou 6 anos, e está um pouco apreensiva. Ao se aproximar, ela timidamente estende um livro de autógrafos e uma caneta. Pateta pega a caneta desajeitadamente com a pata e consegue assinar na primeira página, tomando cuidado para fazer o ‘e’ invertido, como sempre aparece na assinatura do Pateta. Realmente é um alívio que os cachorros não saibam falar.
– Abrace o Pateta! – diz uma voz de adulto. A garota parece um pouco temerosa, mas Pateta estende o braço e ela se encosta nele. Ele a abraça delicadamente. Então, por um momento, Pateta enxerga com clareza o rosto da menina. A timidez passou, seus olhos aumentam de prazer, seu rosto resplandece. Ela se estica e dá um beijo no focinho do Pateta.
Os flashes espoucam. Pateta gostaria de erguer a pata para enxugar as lágrimas que subiram repentinamente a seus olhos. Ou talvez seja transpiração. O momento em que a apreensão de uma criança desaparece, sendo substituída por admiração e prazer, é no que a maioria dos funcionários da Disney pensa quando usa a palavra ‘magia’ para descrever seu trabalho. É por isso que muitos vêm trabalhar como estudantes colegiais e continuam lá vinte anos depois. Pateta é real, é claro. Ele era real para aquela garota, e naquele momento era real para mim. Eu não era mais um autor e jornalista vestindo camadas de enchimento e pele falsa. Eu era o Pateta.
Embora faça parte da orientação-padrão para os altos executivos da Disney aparecerem como personagens nos parques temáticos, só depois que aceitei o papel de Pateta me disseram que não poderia escrever sobre ele, pelo menos não de uma maneira que afirmasse ou deixasse implícito que o Pateta era um ator dentro de uma fantasia. Os encarregados dos parques temáticos tinham imposto essa condição, alegando que a ilusão de que os personagens da Disney são reais nunca havia sido quebrada publicamente com a cooperação da companhia. A princípio achei irracional. Isso é quase tão verossímil quanto a existência de Papai Noel, e certamente todo mundo com mais de 8 ou 10 anos sabe que há pessoas dentro daquelas roupas. Mas o pessoal que trabalha nos parques insistiu, e depois que os conheci passei a compreender melhor. Praticamente tudo dentro do Disney World é ilusão: mais bonito, mais limpo, mais seguro, melhor e mais divertido que o mundo real. Foi genialidade de Walt reconhecer que não são só as crianças que querem escapar da realidade. Como qualquer bom mágico, você precisa acreditar na ilusão, ou ela se desfaz. É uma crença circular adotada de maneira tão apaixonada por tantos americanos que o nome Disney tornou-se sinônimo de uma cultura americana idealizada, na qual os sorrisos se tornam realidade.
Assim como muitos aspectos da Disney, isso mudou no tumultuado ano e meio desde a minha estréia no Reino Animal. Depois que a Comcast Corporation, a gigantesca companhia de cabo baseada em Filadélfia, fez uma oferta de aquisição agressiva para a Disney em fevereiro de 2004, a Disney suportou uma terrível avalanche de publicidade, e uma reportagem no Wall Street Journal revelou que altos executivos da Disney tinham aparecido nos parques temáticos vestidos como personagens. Com o disfarce revelado para o público nacional, Eisner concordou que não havia mais sentido em fingir que o Pateta era real, e concordou que eu pudesse descrever minha experiência como o personagem.
Eu havia conhecido Michael Eisner há muitos anos, antes de ser jornalista. Em 1978 eu era um jovem advogado na Cravath, Swaine & Moore, uma grande firma de Nova York, e Eisner era o presidente da Paramount Pictures. Minha firma estava representando a CBS em um caso antitruste movido pelo Departamento de Justiça contra as redes de televisão, segundo o qual elas teriam conspirado para reduzir os custos da programação produzida pelos estúdios de Hollywood, que eram os instigadores do caso e se beneficiariam com qualquer indenização. Eu fui designado para o aspecto Paramount do caso e ajudei a tomar o depoimento de Eisner.
Lembro de quando cheguei ao seu escritório nos estúdios Paramount, em Hollywood. Ele tinha uma sala espaçosa de canto no segundo andar, com um balcão externo sombreado por uma trepadeira de hera. Para alguém que estava sendo interrogado por uma equipe de advogados, Eisner foi muito confiante e engraçado, brincando sobre sua relação às vezes contenciosa com o presidente do conselho da Paramount, Barry Diller. Ele tirou os sapatos e descontraiu os pés – algo que eu nunca tinha visto em uma firma de advocacia em Nova York. Embora estivéssemos em lados opostos do caso, Eisner me deu um ingresso para a gravação naquela noite do programa ‘Mork & Mindy’, uma série de TV de sucesso do estúdio. Foi a primeira vez que vi o ator Robin Williams ao vivo. Nos longos momentos em que as câmeras não estavam gravando, Williams mantinha um frenético monólogo cômico que fez a platéia se contorcer de risos até de madrugada.
Tudo isso causou mais impressão em mim do que Eisner; o governo acabou desistindo do caso. Quando perguntei a Eisner se se lembrava de mim do depoimento, ele não respondeu. Muitos anos haviam passado, e ele deixara de ser um jovem iniciante ousado na Paramount para se tornar um venerável, bem-sucedido e rico presidente da Disney. Quando chegou à Disney em 1984, a empresa balançava, com seu estúdio e a lendária divisão de animação moribundos, seus bens cobiçados por predadores corporativos ávidos para dividir a companhia e vender suas partes. Eisner não apenas tinha salvado a Disney como a transformara na maior companhia de entretenimento do mundo e protegera sua amada marca.
Rebelião de acionistas
Procurei Eisner em 2001 porque queria escrever um livro sobre a empresa. Desde meu trabalho no caso antitruste das redes, me interessara pelo funcionamento do setor de entretenimento de Hollywood. Depois de escrever livros investigando os mundos das finanças de Wall Street e da política em Washington, Hollywood parecia outro grande centro de poder e influência que valia a pena explorar. A Disney, com sua imagem poderosa e seu sucesso criativo, para não falar em uma grande quantidade de intrigas corporativas, parecia a opção óbvia. Eisner foi previsivelmente a favor da idéia. John Dreyer, o diretor de relações públicas na época, foi educado, mas desanimador. Mesmo assim, enquanto continuei a juntar informação sobre a companhia, Dreyer me convidou para encontrá-lo na sede da Disney em Burbank.
Eu não havia esperado encontrar Eisner em pessoa, mas enquanto Dreyer e eu almoçávamos num refeitório da empresa, Eisner apareceu de repente e se sentou à nossa mesa. Ele fez algumas perguntas sobre meu projeto de livro, mas depois disse que havia gostado muito de uma reportagem que eu escrevera recentemente na revista The New Yorker, intitulada ‘Matchmaker’, sobre Erica Feidner, uma mulher com uma capacidade aparentemente mágica de encontrar o piano perfeito para clientes da Steinway. Eu fiquei lisonjeado, mas Dreyer pareceu incomodado.
– Michael, não tenho certeza se eu entraria nisso agora – ele disse, mas Eisner insistiu.
– Eu vejo isso como outro Mr.Holland: Adorável professor – continuou, referindo-se ao filme estrelado por Richard Dreyfuss como um amado professor colegial e diretor de banda. – Eu disse a Nina [Jacobson, presidente dos estúdios Disney] para desenvolver isso.
Eu não esperava essa evolução. Agradeci pelo interesse, mas salientei que não poderia me envolver em um filme da Disney enquanto estivesse escrevendo um livro sobre a empresa. Não me ocorreu então que talvez essa fosse realmente a idéia, que se a Disney comprasse os direitos do filme eu abandonaria a idéia do livro. Ou talvez fosse uma combinação dos dois, já que mais tarde Jacobson me disse que ela realmente achava que a história daria um bom filme. Fosse qual fosse a verdade, não deu em nada. Várias semanas depois os terroristas atacaram o World Trade Center. O negócio dos parques temáticos Disney entrou em parafuso quando o turismo despencou e os parques pareciam um alvo potencial evidente para terroristas. Dreyer me ligou para dizer que a cooperação sobre o livro estava fora de questão agora, e eu também deixei de lado o projeto para escrever sobre fatos ligados ao 11 de Setembro, que resultaram em meu último livro, Heart of a soldier [Coração de soldado].
Quando liguei novamente, no início de 2003, Zenia Mucha, que deu uma postura mais agressiva ao cargo, tinha substituído Dreyer como diretora de relações públicas corporativas. Ex-assessora política do governador de Nova York George Pataki, Mucha foi elevada ao cargo depois de se destacar como diretora de relações públicas da rede ABC. Embora não estivesse entusiasmada pela perspectiva de um livro sobre a Disney, Mucha pareceu inclinada a dar alguma colaboração. Eisner estaria em Nova York em março, e ela arranjou para que nós três jantássemos juntos.
Eisner escolheu o restaurante, o Nobu, no bairro de Tribeca, em Manhattan, favorito das celebridades de Hollywood em visita à cidade. Quando ele chegou houve um burburinho de reconhecimento na sala, e várias pessoas o pararam para cumprimentar enquanto ele caminhava até a mesa. Eisner estava tão descontraído e engraçado como eu me lembrava dele no depoimento. Parecia disposto a discutir qualquer assunto que eu levantasse, fosse o recente flerte fracassado entre a ABC e David Letterman, as negociações com o governo chinês para abrir mais um parque temático ou a perspectiva da guerra no Iraque (‘Certamente Bush não fará nada tão idiota’, ele disse). Mencionando a ameaça de infarto que quase o matou em 1994, Eisner folheou o cardápio procurando opções sem gordura, e me aconselhou a tomar um remédio que reduz o colesterol, que segundo ele foi responsável por prolongar sua vida. Ele é um bom contador de histórias, uma habilidade que sem dúvida orientou sua escolha de inúmeros scripts que foram transformados em filmes de sucesso ao longo dos anos.
Durante aquele primeiro jantar, contei a Eisner meus planos para um livro: uma visão dos bastidores da mais conhecida companhia de mídia e entretenimento do país, que enfrentava todo tipo de desafio criativo e tecnológico. Eu queria ver o processo criativo em ação, mostrar como a Disney moldou a cultura, ou foi moldada por ela, e como os executivos lidavam ao mesmo tempo com o interesse por lucros e as aspirações artísticas. Para crédito de Eisner, a Disney tinha escapado da derrota de uma fusão como a da América Online com a Time Warner, mas apesar disso ainda era predominantemente uma empresa que produzia ‘conteúdo’ e enfrentava a concorrência de gigantes da mídia como Viacom, News Corp. e Time Warner, que também possuíam sistemas de distribuição como televisão via cabo e satélite. Eu achava que a Disney estava em outro ponto decisivo de sua história, e me ofereci para acompanhá-la durante pelo menos o ano seguinte. Como o livro sairia, se seria ‘positivo’ ou ‘negativo’ do ponto de vista de Eisner, dependeria em grande parte do que acontecesse. Eu admitia que cooperar comigo seria uma espécie de jogo, já que não era possível saber como a história se desenrolaria. Eu não prometia nada; não haveria reciprocidade por qualquer cooperação.
Eisner pareceu intrigado. Ele disse que os negócios da Disney estavam em alta, e em todo caso ele era um otimista por natureza. Havia escrito um livro que foi publicado em 1998, chamado Work in Progress [Trabalho em andamento], mas ficou decepcionado com a reação da crítica, que sugeriu que ele havia dourado alguns dos incidentes mais polêmicos de sua carreira, especialmente a saída de Jeffrey Katzenberg em 1994 e de Michael Ovitz alguns anos depois. (Eisner mais tarde admitiu que o livro tinha sido muito editado pelos advogados e outros executivos da Disney, que o fizeram cortar qualquer coisa que pudesse ser controversa.)
Eisner disse que apreciava o escrutínio.
– Realmente não me importo que você investigue a companhia – disse –, porque não tenho nada a esconder. Você poderá descobrir que cometemos alguns erros, mas não porque não tentamos acertar.
No fim do jantar, Eisner parecia ter apreciado a idéia. Entramos em sua perua preta dirigida por motorista e ele me deixou perto de meu apartamento. Pouco antes de eu descer, ele disse que adorava seu trabalho.
– Não adianta fazer uma coisa se não for divertida – disse. – Então vamos nos divertir com o livro.
É claro que ninguém poderia ter previsto os eventos dramáticos que iriam se desenrolar, provocando tumulto na empresa e mantendo a Disney nas primeiras páginas dos jornais nacionais: uma revolta do conselho administrativo liderada por Roy Disney e seu aliado Stanley Gold; a abrupta renúncia de Roy e Gold do conselho; o colapso das negociações com os estúdios de animação Pixar; uma reorganização da diretoria da ABC; uma proposta de aquisição agressiva da Comcast; e uma rebelião de acionistas que deixou Eisner publicamente humilhado e sem sua presidência, mas não sem seu poder cotidiano. Eu estive numa reunião com Eisner em meio a tudo isso, um dia depois que o executivo-chefe da Pixar e principal executivo da Apple, Steve Jobs, subitamente encerrou as negociações para estender a parceria lucrativa que haviam gerado Toy Story e Procurando Nemo para a cinemateca Disney.
– Estou vendo que seu livro vai se transformar em Os bárbaros no portão Eisner observou gravemente.
Um pouco de prática
Dois meses depois daquele primeiro jantar com Eisner, na quinta-feira, 21 de maio, um carro me apanhou às 6h30 da manhã na Estalagem do Reino Animal no Walt Disney World. Fiquei vários dias hospedado naquela interpretação espetacular das pousadas de safári na África oriental enquanto mergulhava no parque temático, revisitando passeios como a ‘Montanha Espacial’ e a ‘Torre do Terror’ da Twilight Zone, passando por áreas de ‘bastidores’ reservadas aos ‘membros do elenco’ e assistindo aos preparativos de eventos teatrais como IllumiNations: Reflections of Earth [IlumiNações: Reflexos da Terra]. Caminhei pelo parque com o presidente do Walt Disney World, Al Weiss, que, mantendo a tradição de Walt, corria para apanhar qualquer papel ou dejeto no chão e o colocava numa lata de lixo. O hábito era contagioso: logo eu me vi procurando qualquer lixo desgarrado.
Quando criança, eu havia feito duas viagens à Disneylândia com minha família, e me lembro delas como as melhores férias que passamos juntos. Meu pai trabalhava para um pequeno canal de televisão no centro-oeste que transmitia o programa ‘O Clube do Mickey Mouse’, e nós recebemos tratamento VIP (apesar de termos de entrar nas filas). Eu ganhava ingressos ilimitados para os passeios mais populares, como meus favoritos, o ‘Trenó do Matterhorn’ da Terra da Fantasia e a ‘Indy Speedway’ da Terra do Amanhã. A ‘Casa do Futuro Monsanto’ ganhou um domínio especial sobre minha imaginação, assim como a ‘Casa na Árvore da Família Robinson’ e a visão aérea de Londres do passeio de Peter Pan. Em nossa segunda visita, fomos ao estúdio Disney e comemos no refeitório com crianças fantasiadas que participavam de Mary Poppins, que era a produção da época no estúdio. Lembro da última noite da nossa segunda visita, esperando por um táxi para ir ao aeroporto diante do Disneylândia Hotel. Minha irmã de 7 anos começou a chorar porque não queria ir embora. Ela ficou tão chateada que deixou cair o cobertor que arrastava para qualquer lugar aonde fôssemos, e nunca mais falou nele. De certa forma eu sabia que nunca mais voltaríamos. Era o verão de 1963, poucos meses antes do assassinato de Kennedy. Aos 11 anos, já sentia saudade de uma infância que eu sabia que estava terminando.
Hoje, quatro décadas depois, chego ao grupo de escritórios de entretenimento do Walt Disney World às 7 da manhã para começar a ensaiar para minha aparição como um personagem Disney. Tammy Gutierrez, uma moreninha fervilhante, me recebe e explica que a habitual orientação de cinco dias será condensada em algumas horas, em meu benefício. Originalmente contratada para retratar Dunga, Gutierrez passou catorze anos no papel mais exigente de Branca de Neve, um dos personagens ‘falantes’ do parque. (Qualquer personagem com rosto humano – Cinderela, Branca de Neve, Mary Poppins, o Príncipe Encantado – deve falar com os visitantes.) Gutierrez realmente se parece muito com minha lembrança de Branca de Neve. Agora ela testa e ensaia novos atores para interpretar os personagens.
Eu pensei que simplesmente me colocariam uma fantasia e eu ficaria passeando pelo parque, mas Gutierrez logo me desengana.
– Nós queremos animação – ela diz. – Você precisa dar energia e espírito ao papel, torná-lo real. Não somos pessoas usando fantasias – ela insiste. – Qualquer um pode fazer isso.
Gutierrez me mostra um vídeo com uma gravação de arquivo de Walt falando sobre sua visão da Disneylândia, um lugar que os adultos apreciariam juntamente com seus filhos.
– Fotos e autógrafos serão o grosso do seu trabalho – continua Gutierrez, quando o vídeo termina. – Lembre-se, as pessoas esperaram a vida inteira pelo momento de encontrá-lo. Você pode estar fantasiado, mas a foto deve parecer real. Você não fala, mas se comunica. Você deve ser animado. Há muita coisa que pode fazer.
Eu preciso andar como o Pateta, balançar a cabeça como o Pateta, fazer os gestos dele, coisas que são identificáveis e únicas do Pateta. Gutierrez me dá uma folha datilografada que explica as características do personagem:
Características: freqüentemente desajeitado, sempre alegre, otimista, um coração de ouro, feliz, gosta de quase todo mundo, dedicado, sincero, honesto, um sonhador.
Sinopse: embora o Pateta seja um cachorro com roupas de homem, ele é bastante humano. Pode parecer um típico bobo da aldeia, mas é uma alma boa e prestativa, um pouco tolo, mas sempre inofensivo.
O Pateta quer ser um cavalheiro, mas quando fica envergonhado esconde seu rosto simples de dentes salientes e pronuncia sua expressão preferida: ‘Poxa’. Ele não tem nada dos atributos físicos geralmente associados a um ‘astro’. Tem as costas encurvadas, os ombros estreitos, os braços que parecem pesados e uma barriga saliente. Enquanto caminha, sua cabeça, a barriga e os joelhos parecem ir na frente. Isso, porém, não o impediu de se tornar uma autoridade em qualquer tipo de esporte e ocupação – todos realizados à sua maneira particularmente ‘Pateta’.
Com seus métodos hilariantes de tentativa e erro, ele faz tudo errado ou completamente ao contrário. Sendo um otimista eterno, ri dos próprios erros e tenta tirar alguma coisa deles. O encanto brincalhão e familiar do Pateta mostrou-se irresistível. Durante toda a sua carreira, ele nunca deixou de honrar seu nome. Ele é simplesmente ele mesmo – o Pateta!
Depois de absorver isso, olho para Gutierrez um tanto desanimado. Aquilo era mais do que eu tinha pedido.
Ela me leva para um espaço de ensaios que parece um grande estúdio de dança. Uma parede inteira está coberta de espelhos. Gutierrez me entrega um short preto e uma camiseta cinza e me diz para vesti-los. Isso serve em parte para me fazer abandonar a identidade associada a minhas roupas e começar a me tornar o Pateta. Quando volto, ela me faz entender os aspectos da roupa do Pateta que exigem mais ajustes: é um colete estofado coberto de pele falsa que me dá uma barriga e um certo volume atrás; e um par de sapatos enormes e moles, como os de palhaço. Gutierrez me mostra o caminhar e os movimentos de braço do Pateta e me faz imitá-la enquanto me olho no espelho. Não é tão fácil quanto parece. O Pateta tem um andar lento e flexível, dobrando os joelhos enquanto dobra os braços nos cotovelos, e os balança de modo exagerado. Acho que estou começando a pegar o jeito, mas Gutierrez me faz repetir várias vezes. Somente então ela me coloca a cabeça do Pateta, o que é uma espécie de choque. É muito pesada, e com o longo focinho fica desequilibrada, ameaçando descer sobre o meu rosto. Pior, é desenhada de um modo que meus olhos enxergam pela abertura da boca do Pateta. Gutierrez me leva até o espelho.
– O que você está vendo? – pergunta. Não sei bem o que dizer.
– Você está olhando para cima, para o espaço. O Pateta não é um personagem fácil por causa das linhas de visão – ela explica. – Se você olhar para a frente através da boca, o Pateta fica com a cabeça inclinada para trás. Para parecer que o Pateta está olhando para a frente, você precisa olhar para seus pés. Eu olho novamente para a folha datilografada.
Seu papel: como o Pateta, mantenha a cabeça baixa para que seus olhos possam ser vistos. Quando andar, rebole e deixe seus joelhos e a barriga irem na frente. Tente fazer alguma coisa, e quando confundir tudo sorria de si mesmo e passe para outra coisa. Lute boxe consigo mesmo ou com um parceiro imaginário. Jogue beisebol com o Donald ou converse com Pluto. Escolha uma garota e mostre a ela como você é tímido. Seja supereducado, tire a poeira das cadeiras para as senhoras, depois faça uma reverência e ria. Seja tolo, descontraído, desajeitado e adorável.
É mais fácil falar do que fazer. Para um personagem que não fala, o Pateta certamente parece capaz de produzir muitos sons. Depois de um pouco de prática, Gutierrez concorda que um autêntico ‘Poxa!’ talvez esteja além de minhas capacidades. Tento atravessar a sala me olhando nos espelhos.
– Leve a barriga na frente – ela diz. – Mantenha a cabeça baixa. Abra os pés para fora, coloque o calcanhar primeiro e depois role. Continue andando. Balance a cabeça, vire-a, agora acene.
Vozes infantis
O tempo todo estou olhando para meus pés. Não acredito como todos aqueles personagens parecem naturais no vídeo; isso exige muita coordenação. O Pateta também tem um repertório de gestos que eu preciso dominar. Como ele é alto, tem de ficar em uma posição para tirar fotos com as crianças. Ele se ajoelha com uma perna, de braços estendidos, e faz o que Gutierrez chama de gesto ‘TaDa!’, estendendo um braço enquanto coloca a outra pata sobre o joelho. O Pateta também manda beijos, e pode fazer o som de um beijo. Ele ri levantando as patas até a boca, mas quando eu experimento isso Gutierrez diz que parece que estou espirrando.
Está na hora de passar para os autógrafos, que são avidamente desejados por adultos e crianças. Walt decretou que a assinatura de cada personagem tinha de ser sempre igual, onde quer que fosse conseguida, para preservar a ilusão de que cada personagem é único. A idéia de que todas as assinaturas devem ser iguais parece ter-se tornado uma obsessão, e Gutierrez me faz praticar a assinatura do Pateta várias vezes até eu acertar. Não é fácil, pois as patas com luvas têm apenas quatro dedos.
Às 10 da manhã é hora de partir para o Reino Animal, mas eu poderia ensaiar mais. Foi muita coisa para absorver em apenas algumas horas. Sou levado para um grande prédio junto à cerca do parque. Lá dentro, outros atores a caráter estão passando por uma aula de alongamento e aquecimento. Eles são esguios e parecem bailarinos profissionais. O armazém de fantasias é enorme, com longas araras de roupas estendendo-se na distância. Pego um par de meias pretas e uma camisa preta justa, e já sinto calor antes de colocar a fantasia acolchoada de pele e o colorido traje de safári. Carregando a cabeça, Gutierrez me leva até uma perua e me encoraja enquanto vencemos a pequena distância até um trailercom ar-condicionado junto à entrada do parque. Sintome como um astronauta sendo levado até a cápsula para o lançamento.
– Lembre-se – ela me diz –, para essas crianças você é uma celebridade maior que qualquer uma que você conhece do mundo adulto.
Dentro do trailer, me dão uma touca de pano para segurar o cabelo, e então a cabeça pesada é colocada sobre meus ombros e presa à touca. Há outro Pateta no trailer, descansando entre seus turnos de 30 minutos, e ele parece se divertir enquanto eu luto com a cabeça.
Minutos depois estou no parque. Gutierrez está por perto, para o caso de uma emergência. Depois do meu primeiro encontro de sucesso com uma garota, sinto-me feliz. Minha adrenalina está aumentando. As pessoas me cercam. As crianças fazem fila para conseguir meu autógrafo; rostos tímidos, brilhando de excitação. Tento me lembrar de tudo o que Gutierrez me ensinou: balançar a cabeça, rir, acenar, mandar beijos, gesticular, ajoelhar sobre um joelho. Parecer bobo.
Com minha visão prejudicada, não percebo que um menino está ao meu lado, e quando viro a cabeça bato nele com o focinho. Momentos depois, uma voz estridente: ‘Mamãe, mamãe, o Pateta bateu na minha cabeça’. ‘Oh, meu Deus, vou ser processado’, penso. Mas Gutierrez não parece reagir, e de qualquer modo há muitas pessoas buscando autógrafos e fotos, disputando minha atenção. Muitos adultos também querem tirar fotos, o que me dá uma oportunidade bem-vinda de me levantar. ‘Deve ser quente aí dentro’, murmura um homem quando o flash dispara.
‘Pode acreditar’, penso, mas mantenho o silêncio. Com toda a excitação eu quase não havia percebido como era quente, mas agora estou empapado de suor e a touca de tecido à qual está presa a cabeça do Pateta começa a descer para a minha testa. Em pouco tempo passou das minhas sobrancelhas, e minha visão já limitada é ainda mais obscurecida. Preso dentro da fantasia, não há nada que eu possa fazer. O Pateta vai ficar cego dali a alguns minutos.
Pela fenda incrivelmente estreita pela qual ainda posso enxergar, vejo que um menino se aproxima. Ele é louro e parece ter 3 anos. ‘Abrace o Pateta’, alguém diz. Ele fica congelado no lugar, e parece que vai chorar. Gutierrez me avisou que os personagens assustam algumas crianças, e quando isso acontece não devemos fazer gestos súbitos. Agora eu escuto a voz: ‘Cumprimente o Pateta!’ Lentamente levanto a pata e o menino a toca. Então rapidamente recua. Ele dá a volta em mim desconfiado, depois se aproxima e levanta a mão aberta. Eu bato minha pata na mão dele. Seu rosto se acende em um grande sorriso e as pessoas ao redor começam a aplaudir.
Exatamente quando minha capacidade de enxergar desaparece, ouço Gutierrez dizer:
– O Pateta precisa ir agora. Digam até logo para o Pateta.
Eu escuto um coro de vozes infantis me chamando enquanto Gutierrez nos conduz para a saída, que felizmente está próxima. Sinto que estive no palco durante alguns minutos, mas na verdade completei um turno de 30 minutos. É um alívio tirar a cabeça e recobrar a visão. Mas entendo por que pessoas como Tammy Gutierrez continuam nisso há catorze anos. Depois que você vê o rosto daquelas crianças, nada mais é igual.