A barbárie das edições de livros brasileiros volta a incomodar quando lemos a resenha/crítica da “Ilustríssima” de domingo (12/5), “Narrativa das Narrativas”. Uma página inteira chamou atenção para a importância do lançamento pela Record de Uma História das Histórias: de Heródoto e Tucídites ao século 20, de Josep Fontana, tradução de Nana Vaz de Castro. Os historiadores, cansados de ler histórias gerais da historiografia editadas em Portugal, aplaudiram a chegada da tradução brasileira. Mas só até comparar as duas edições. Mais da metade do artigo de Rogério Forastieri da Silva tratou de incorreções de nomes e datas, supressão de palavras, erros primários.
Campônios foram traduzidos por palhaços, “preços da época Tudor” viraram “príncipes Tudor”, “não gregos” se tornaram “bárbaros”, Jürgen Habermas passou a ser Norbert Elias, 1641 virou 1691, século 16 virou 17 e o 20, 21. O que chocou o resenhista foi a inserção nada acadêmica de expressões como “já era”, “cada vez mais badalada”, “a micro-história pega”. A tradutora ainda introduziu o milho na Antiguidade e na Idade Média europeia, quando o cereal só chegou à Europa depois da colonização do chamado Novo Mundo.
O desrespeito ao leitor brasileiro, sempre privado de índices onomásticos e rodapés que constam nas edições originais, confirma o que Mário Vargas Llosa vem alardeando sobre os processos de banalização da cultura e a exaltação do entretenimento banal, light. A coisa continua como está porque no Brasil pouca gente reclama, e os poucos interessados vão comprar suas obras pela Amazon, Estante Virtual ou no exterior.
Onde, o poeta?
Modernidade atrelada à barbárie vem sendo pouco criticada justamente porque sumiu quem deveria fazer esse papel, o jornalista, o crítico literário, substituído na imprensa pelo resenhista que ou relata os lançamentos e descreve rotineiramente a trama dos livros enviados pelas editoras (já recheados de resenhas prontas) ou comete ensaios acadêmicos tão herméticos que se dirigem àquele público que não precisa deles: os que já compram os livros originais. Aliás, sumiram não só os críticos que deveriam fazer esse papel. Sumiu o papel, o espaço na imprensa onde a crítica deveria constar, com prós e contras, estimulando e/ou condenando a leitura, assim mesmo, lado a lado, o leitor decide.
Ao contrário do que aconteceu no domingo no suplemento “Ilustríssima”, da Folha de S.Paulo, em geral fica evidente a falta de conhecimento do resenhista, a falta de estudo e até da própria leitura do livro que resenha.
Que falta faz críticos como Mario Faustino no Jornal do Brasildos anos 1950, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Sergio Milliet, Antonio Cândido, Oswald de Andrade. Críticos que criavam polêmicas, faziam elo entre a obra e o leitor comum, chamavam atenção para os novos talentos, marcavam a diferença.
Crítico é o nova-iorquino Harold Bloom, que diz “ler é a única maneira de dar sentido à vida”. O livro é a ponte entre milhares de leitores desconhecidos, o jeito de falar e atrair leitores dissidentes impedindo seu “suicídio intelectual” – como ele qualifica os adeptos de Stephen King, J.K.Rowling ou “do oceano cinzento da internet”. Pois é nesse mar cinzento que as editoras americanas e brasileiras como a Record, Planeta, Companhia das Letras estão apostando, fazendo concursos para eleger blogueiros resenhistas que se sentem pagos com a simples possibilidade de comentar um livro, espalhado a quatro ventos pela internet, sabe-se lá com quantas imprecisões.
No meio dessa escuridão aprende-se a pinçar o resenhista e ler, este sim, até o fim. É o caso de Noemi Jaffe que tem de sobra o que anda faltando: coragem para criticar e conhecimento para fazê-lo. Numa das resenhas para o caderno “Eu&Fim de Semana”, do Valor Econômico(26-27-28/4/2013), Noemi usa ironia fina e corrosiva o suficiente para demolir a obra Qual é a sua Imagem? – Descubra o Que a Sua imagem Diz Sobre Você, de Patrícia Tucci (Livronovo, 302 páginas) . Para isso ela compara a um genial conto de Machado de Assis, “O Espelho”, os oito tipos banais oferecidos pela autora para o leitor se encaixar. “Que se prepare agora o leitor”, ironiza Noemi, “para a revelação de uma verdade da natureza metafísico-trancendental-epistemológica nunca antes pronunciada.” Os oito tipos oferecidos por Patricia Tucci são “deixa-que-eu-chuto”, “malabarista”, “comediante”, “encantador”, “diplomático”, “modesto”, “enigmático”, “sabichão”. Noemi ainda desafia o leitor a imaginar como a autora interpretaria o personagem machadiano cujo reflexo se perde no espelho. E termina contando a solução que a autora dá para a frustração de quem não se encaixou em nenhum dos oito tipos: “A solução é, como diz o livro, saber que ‘é caminhando que se faz o caminho’”. Ironia final de Noemi, “ah! o livro dá a fonte: a frase, na verdade, é dos Titãs”. Noemi dá por sabido, com razão, que o leitor das suas resenhas saberá que o verdadeiro autor é o poeta sevilhano Antonio Machado em “Caminante, no hay camino/ se hace camino al andar”.
Tradução palavrosa
A tradução traz outros problemas, como denunciou Rogério Forastieri da Silva, recomendando “completa e rigorosa revisão” do livro Uma História das Histórias já revisto por Vera Chacham. O escritor espanhol Antonio Muñoz Molina reclamou num artigo do El País(“Los traductores”, 29/9/2012) que não é raro um escritor receber um livro que ele imagina ter sido escrito por ele – já que seu nome está na capa, com a foto na orelha – mas o que está escrito ali é indecifrável. Não só porque os caracteres são russos ou chineses, mas porque, numa língua “legível”, o que se lê está longe de ser o que o autor escreveu.
Uma tradução é uma “negociação”, diz Umberto Eco, entre o texto original e os leitores do texto de destino – “mas também uma negociação com os editores, com a história da língua, com as diversas culturas” (Magazine Littéraire, janeiro, 2008). e exige uma compreensão do texto em geral, não de palavra por palavra ou da sintaxe. “A fidelidade muitas vezes exige reversibilidade, traduzir não o sentido das palavras mas o sentido da linguagem”. Em outras palavras, traduzir para o público que vai ler, na linguagem do leitor.
Chega a dar prazer as discussões sobre as traduções de O Corvo,escrito em 1845, por Edgar Allan Poe, quando os tradutores em questão são da estirpe de Machado de Assis (tradutor de Poe em 1883) ou Fernando Pessoa (que fez o mesmo em 1924).
Mas a sensação de estar lendo palavras em português com sentido em chinês assalta muitos leitores que não conseguem o livro no original, como é o caso de A Artista de Xangai, ficção sobre a vida real de Pan Yuliang escrita em inglês por Jennifer Epstein Cody e traduzida para o português por Flávia Carneiro Anderson (Record, 2010).
O livro atrai pelo comentário do resenhista do ótimo The New York TimesBook Review (“fascinante, uma história irresistível”), que tem razão: a história é ótima mas seria melhor se lida no original. É uma terrível sensação ler em português e compreender cada uma das palavras que, juntas numa frase, parecem se tratar de outra língua e no conjunto não flui. Como se fosse chinês.
Alguém saberá dizer se a tradutora não teria tesoura para cortar tantos adjetivos no mesmo parágrafo (bruxuleante, deslumbrante, luxuoso, rancoroso) que inclui tantos advérbios (ligeiramente, levemente, agradavelmente); se não teria algo melhor para substituir “estranhamente ansiosa, a jovem mordisca a unha” ou o que ela quis dizer com “segundos depois, no entanto, ela some, adejando para os recônditos de sua mente…”.
Melhor parar por aqui.
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Norma Couri é jornalista