O que teriam em comum o jogador Júlio César, a bailarina Ana Mondini, o sociólogo Luiz Ramalho, o dançarino Murah Soares, o comerciante de pedras preciosas Tarcísio Loch e o capoeirista Washington Silva? Eles são brasileiros vivendo na Alemanha. Em algum momento de suas vidas, tomaram a decisão de começar tudo de novo num país distante. Em alguns casos, deixaram para trás família e amigos, e precisaram assimilar novos valores para sobreviver, começando pela difícil barreira da língua. Tornaram-se einwanderer, imigrantes.
Suas histórias foram reunidas no livro Somente as pedras preciosas vêm do Brasil – Brasileiros na Alemanha, da jornalista Adriana Nunes, uma baiana de Salvador que vive na Alemanha desde 1988. Como todo imigrante, ela precisou passar por difícil processo de adaptação. ‘Sem perceber, eu tinha me transformado, no decorrer do tempo, na baiana mais germânica da Bahia Kölônia. Séria, contida, retraída, estressada demais para o meu gosto’, diz. Ao todo foram ouvidos 50 brasileiros com as mais diversas experiências.
Dos relatos emergem, porém, dois pontos em comum: a busca por uma vida melhor e a saudade da pátria verde e amarela. Publicado pela editora EOS-Verlag, o livro, inédito no Brasil, tem sido amplamente divulgado em diversas cidades da Alemanha. Adriana Nunes estudou Jornalismo na Universidade de Brasília. Na Alemanha, trabalhou para emissoras de rádio e TV, como a Deutsche Welle e a WDR. De Colônia, onde mora, ela falou por e-mail sobre o seu trabalho.
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Qual a sua expectativa em relação a esse livro?
Adriana Nunes – Fornecer um panorama amplo e complexo das experiências de vida de brasileiros na Alemanha. Brasileiros de todas as classes sociais, de todas as partes do Brasil, que exercem todos os tipos de profissão ou que não trabalham. Pessoas bem adaptadas na Alemanha ou não. Que se sentem bem aqui ou não. Pessoas que viveram aventuras transoceânicas extraordinárias. Eu queria que o livro refletisse a diversidade, a riqueza e complexidade das experiências dessas pessoas, e que o leitor, ao se confrontar com essa multiplicidade, chegasse às suas próprias conclusões. Eu queria também que em cada relato aflorasse a subjetividade do entrevistado.
Como é que surgiu a idéia de escrevê-lo?
A. N. – Nas conversas e entrevistas com outros brasileiros aqui na Alemanha, eu sempre senti a necessidade das pessoas de trocarem impressões e até de ‘desabafarem’ sobre as dificuldades e desafios, mas também sobre o lado rico, fascinante e maravilhoso de viver no exterior. Comecei a fazer algumas anotações sobre essas conversas. Bem mais tarde, numa conversa com outra jornalista brasileira, surgiu a idéia de escrever o livro. A princípio, pensamos em escrever juntas, mas escrever qualquer coisa a quatro mãos é muito difícil. Então, levei o projeto adiante, sozinha.
Como foi o processo de escolha dos brasileiros que fazem parte do livro?
A. N. – Alguns eu conhecia da época em que trabalhava como editora na rádio Deutsche Welle: artistas e outras pessoas que eu havia entrevistado. Outros me foram indicados por outros entrevistados. Alguns, como o caso do bailarino Ismael Ivo, do jogador de futebol Júlio César, e do artista plástico Antônio Dias, são pessoas com uma certa notoriedade aqui na Alemanha, e eu já sabia deles através da imprensa alemã. Alguns eram conhecidos meus. Mas o principal critério foi a riqueza do depoimento, da experiência, das análises e da personalidade do entrevistado. Além disso, eu queria que os depoimentos refletissem uma multiplicidade de opiniões sobre o estar na Alemanha e os alemães. Portanto, as opiniões e experiências selecionadas ora se contradizem, ora se confirmam ou se complementam. Surgiu um caleidoscópio, onde, por vezes, um entrevistado comenta a situação de um outro, sem saber nada a respeito dele.
No livro, você se mantém o mais fiel possível aos tons originais de cada relato. Sentiu alguma empatia com as dificuldades que iam sendo descritas?
A. N. – Claro que sim. De uma certa forma, eu reconheci um pouco da minha própria história em cada um dos relatos.
Você acha que essas dificuldades são também comuns aos mais jovens, filhos de imigrantes nascidos no país?
A. N. – Acho que os problemas dos mais jovens são um pouco diferentes e dependem muito da experiência dos próprios pais. Quando os pais se sentem bem na Alemanha e não sofrem tanto com o conflito de identidade, é mais fácil essas crianças e adolescentes se posicionarem, encontrarem sua forma de ser, de se impor como seres de identidade múltipla, e encararem isso como algo enriquecedor e normal no mundo globalizado atual.
Como os entrevistados reagiram à idéia de expor suas experiências em livro?
A. N. – De um modo geral, bem. A maioria foi muito generosa no fornecimento de detalhes interessantes, de análises minuciosas e assinou embaixo do depoimento. Alguns me pediram que a experiência fosse publicada anonimamente, por viverem sem documentos aqui, por terem casado para permanecer no país ou por terem tido uma experiência traumática. Muitos não quiseram se confrontar com sua própria verdade, ali, preto no branco, e preferiram que suas histórias fossem anônimas. Agradeço a todos eles pela disposição em participar do projeto.
Independentemente da posição social que hoje ocupam na sociedade alemã, os brasileiros ouvidos por você são unânimes em denunciar a dureza que é integrar-se à vida no país. Por que é assim tão desafiante se adaptar aos códigos alemães?
A. N. – Quase unânimes. Primeiramente por causa da língua, que muitos têm dificuldade em aprender. E depois, como explica bem o sociólogo Luiz Ramalho no livro, os alemães têm uma cultura de diálogo diferente, baseada na discussão exaustiva e aprofundada dos temas, no confronto direto, o que soa, às vezes, agressivo para os brasileiros, assustando-os. A maneira de mostrar os sentimentos também é bem diferente. Nós temos uma forma mais exuberante, mais calorosa, talvez até meio exagerada. Nossos afetos seriam talvez mais inconstantes, mais mutantes, mais superficiais? Além do mais, há uma certa desconfiança de muitos alemães em relação à competência profissional do estrangeiro. ‘Será que um povo que ri tanto, que faz tanta piada, pode ser competente?’ – é o que muitos parecem pensar. Um outro desafio interessante é tentar compreender suas expressões faciais, sua linguagem não-verbal. Há alguns relatos engraçados sobre este assunto no livro.
O jogador Júlio César relata no livro que viveu uma situação de racismo, e recuperou-se graças à acolhida da torcida do Borússia Dortmund, time em que atuava. O racismo na Alemanha teria alguma característica que o difere do racismo no Brasil?
A. N. – Difícil dizer. Não me ocupei suficientemente do assunto. Já ouvi opiniões diferentes. Muitas mulheres negras brasileiras dizem que aqui são bem menos discriminadas do que no Brasil – elas seriam valorizadas pelos alemães por sua personalidade, inteligência e caráter, o que não aconteceria aí. Outras reclamam de um racismo misturado a um chauvinismo, tão ruim quanto em qualquer outro lugar do mundo. Os homens alemães gostariam delas, sim, principalmente de seu corpo atraente e sensual.
Para o alemão, e o europeu de um modo geral, a mulher brasileira é sinônimo de luxúria. Em sua opinião, é possível trabalhar esse estigma na própria sociedade alemã?
A. N. – A questão é saber até que ponto as mulheres querem romper com esse ‘estigma’. Muitas o consideram até positivo, acham que podem tirar proveito dele, sem problemas. E as que não se identificam com a imagem da mulher ‘apenas boa de cama’ mostram, pela própria capacidade, as mil outras facetas da sua personalidade (generosidade, inteligência, competência, bom humor aliado a seriedade, responsabilidade e profissionalismo etc.)
As obras de brasileiros como Jorge Amado e Gilberto Freyre teriam contribuído para potencializar essa visão sensual que se tem da mulher brasileira lá fora, em especial as negras e mulatas?
A. N. – Acredito que as brochuras das agências de viagem e de restaurantes brasileiros, os cartazes de festas brasileiras aqui na Alemanha e alguns artigos na imprensa alemã tenham um papel muito mais forte na veiculação desta imagem.
De todos os depoimentos, há algum que tenha lhe provocado maior emoção? Por quê?
A. N. – Vários. O da bailarina Ana Mondini, por exemplo. Ela descreve tão bem a perplexidade da chegada a um novo país, a angústia de estar num mundo que não se entende, a sensação de orfanato profissional, pelo fato de as coisas que ela havia feito no Brasil, na área de dança, não serem conhecidas aqui ainda. O de Dirceu de Jesus (nome trocado), que, um dia, num acesso de saudade, subiu, sem quê nem pra quê numa mesa – no meio de uma festa, na oficina mecânica onde trabalhava – escandalizando (e divertindo) os presentes, com o samba que ele começou a cantar.
Como tem sido a recepção do livro na Alemanha?
A. N. – Muito boa. Logo que o livro foi lançado, fiz uma leitura na embaixada brasileira de Berlim para um público brasileiro e alemão, que se mostrou muito receptivo e interessado. Em Salvador, li histórias do livro no Instituto Goethe, e o ex-cônsul-geral da Alemanha no Brasil Thomas Meister me convidou para uma leitura no Recife. Aqui, o livro foi usado por um professor de Sociologia da Universidade Livre de Berlim, Sergio Costa, como bibliografia introdutória a um de seus cursos. Depois de uma leitura muito divertida na Universidade de Munique, onde os brasileiros e alemães presentes riram muito, fui convidada para leituras no Museu das Mulheres (Frauenmuseum) em Bonn, em Hamburgo e de novo em Bonn, esta para o dia 6 de outubro. Dei entrevistas a uma revista de Munique, a uma rádio de Düsseldorf, outra de Hamburgo. E tenho outras leituras planejadas (mas ainda sem data) para Colônia, Freiburg, Düsseldorf.
Você tem sido procurada espontaneamente por outros brasileiros, após a publicação do livro, para novos depoimentos?
A. N. – Sim. Na Universidade de Munique, no fim da leitura, uma moça veio me perguntar se eu queria escrever a história dela. E muita gente comenta assim: ‘Ah, ainda tem tanto caso interessante aqui! Você deveria escrever um segundo livro…’
Você acha que o imigrante brasileiro na Alemanha tem merecido suficiente apoio dos órgãos de representação do governo brasileiro no país?
A. N. – Acho que ainda tem muito o que ser feito neste campo.
E as associações de ajuda ao imigrante brasileiro formadas pelos próprios brasileiros?
A. N. – Sei da existência de algumas delas, mas não conheço de perto sua atuação, por isso, preferiria não opinar. Mas me parecem iniciativas bastante interessantes.
Em sua opinião, a chegada oficial dos países do Leste europeu à União Européia pode ajudar a diluir o xenofobismo de uma sociedade como a alemã?
A. N. – Não necessariamente. A chegada de muitos novos trabalhadores altamente qualificados do Leste europeu, em busca de espaço profissional num país assolado por um alto nível de desemprego, pode até vir a acirrar os conflitos.
Um dos entrevistados no livro, o lutador de capoeira Washington Silva, afirma que foi para a Alemanha na base do ‘Deus me ajude’. Esse é o perfil típico do brasileiro que se aventura por aí?
A. N. – Eu não falaria de um ‘perfil típico’. As experiências são tão variadas, não dá para generalizar. Mas há obviamente um grande número de brasileiros que vem completamente despreparado – com pouco dinheiro no bolso, sem saber falar a língua, sem contatos, e, muitas vezes, sem saber para onde ir. Tem até uma história no meu livro de um rapaz que foi parar em determinado lugar só porque a moça no balcão de informações do aeroporto de Frankfurt lhe escreveu o nome da tal cidade num papel. Em princípio, ele achou que era o nome de uma amiga dela, que o ajudaria, mas por fim ele compreendeu.
Há casos de brasileiros prisioneiros aí na Alemanha. Você não se interessou em também ouvi-los?
A. N. – Sim, mas a pessoa que seria entrevistada acabou cancelando a entrevista, por razões pessoais. Respeitei sua decisão.
Na sua opinião, os depoimentos são representativos da experiência dos brasileiros na Alemanha?
A. N. – Os depoimentos dão uma boa idéia dos vários tipos de experiências de brasileiros na Alemanha. Ele mostra a vida do exilado político que se refugiou aqui da ditadura militar; da menina que veio para cá achando que ia cuidar de um bebê, e foi obrigada a se prostituir; do descendente de alemães que trabalhou no garimpo no Brasil e veio negociar com pedras preciosas; do artista bem-sucedido e do que ficou à margem da sociedade; do estudante; da mulher que fugiu do racismo no Brasil e se casou com um alemão e é feliz; da mulher que se casou só para fugir da miséria; do jornalista, da psicóloga, do empresário bem-sucedido, da política, da dona-de-casa, da adolescente escolar. O livro traz um apanhado bem amplo, justamente para mostrar ao leitor a complexidade do tema ‘migração’.
Você acredita que o seu trabalho pode ter o mesmo efeito que obteve o livro Cabeça de turco, do jornalista alemão Günter Wallraff, na década de 80, ao expor os problemas dos turcos na Alemanha?
A. N. – É difícil dizer, visto que a quantidade de brasileiros na Alemanha é bem menor do que a de turcos, e o caráter da migração brasileira é bem diferente do da turca. Os turcos vieram para cá como trabalhadores convidados pelo governo alemão, tiveram suas dificuldades específicas, e representam para os alemães – tanto social, como política e individualmente – algo bem diferente do que nós, brasileiros, representamos. A maioria dos migrantes brasileiros na Alemanha é de mulheres, e vieram para cá por outras razões. E temos uma fama de povo simpático, alegre, criativo, de certa forma, inofensivo – somos associados a tudo o que é divertido e dá prazer: carnaval, boa música, Sol, dança, praia, caipirinha, futebol, mulheres bonitas. O caráter do livro do Walraff também é bem diferente.
Obviamente que eu também tive a intenção de fazer uma denúncia social, e o meu livro é bastante crítico, tanto em relação à Alemanha quanto ao Brasil. Mas o meu objetivo primordial era mostrar outros aspectos da migração: conflitos de identidade e identidades múltiplas num mundo pós-moderno e globalizado, comparação entre mentalidades e culturas, os preconceitos mútuos, os clichês, os choques culturais, o aprendizado e o enriquecimento pessoal dos migrantes, a questão da saudade, da nostalgia versus o fascínio do novo, do transitório, a transposição de limites e fronteiras, inclusive pessoais, o que se perde e o que se ganha com a mudança de país. Além do mais, eu quis revelar também a subjetividade dos entrevistados, deixá-los falar de seus sentimentos, suas impressões, seus conflitos interiores. O livro tem um lado analítico, reflexivo, mas também poético, impressionista. E alguns relatos têm episódios muito inusitados e engraçados.
Você acha que o seu livro pode contribuir para orientar potenciais imigrantes brasileiros para o terreno em que vão pisar, caso optem por uma vida na Alemanha?
A. N. – Com certeza. O leitor se depara com uma série de questões com as quais ele poderá se confrontar, ao chegar aqui. Assim sendo, ele, ao passar provavelmente por algumas situações semelhantes, não se sentirá mais tão isolado. Ele saberá que ‘essas coisas’ (empecilhos burocráticos, dificuldades com a língua, preconceitos, mal-entendidos, dificuldade de compreender os novos códigos, de aceitar o novo e o diferente) não acontecem só com ele.
Como os demais brasileiros, você precisou passar por um processo de adaptação. O livro lhe trouxe respostas?
A. N. – Sim. Depois do livro, fiquei mais leve, mais tranqüila. Estou mais em paz e consigo rir mais de mim mesma.
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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)