Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Capote, a sangue de cinema

Os artigos que temos lido até aqui sobre Capote misturam o filme que se vê nas telas, o maior livro do escritor e o personagem Capote. Melhor, pior, misturam, não, fazem uma só massa de uma coisa só. Capote, o filme, A sangue-frio, o livro, Truman Capote, o escritor, têm formado na imprensa uma síntese melhor que a santíssima trindade. E de tal maneira pode ser dito, pelo andar da carruagem, que esta é uma vitória do cinema, da ilusão e réstia de fantasmas no escuro sobre a tela.

Se não tomarmos cuidado, a versão do filme terminará por ser a imagem do escritor, assim como a imagem do Cristo das pinturas terminou por vencer a imagem real do palestino. Com a vantagem, para o cinema, de que esse filme nos diria a verdade sem maquiagem do que era o escritor, sem falsa grandeza, portanto, pois o mostra em atos à margem da ética. Se fala mal, dizem-nos e nos dizemos, verdade boa deve ser essa biografia filmada. Conquistam-nos pela desconfiança.

Nas sinopses distribuídas nos sites da web ocorrem coisas como…

‘…no filme Capote, Hoffman encarna Truman Capote, o chamado Pequeno Terror das letras norte-americanas, que conseguiu fama e rompeu moldes na literatura, mas também vendeu sua alma para escrever um livro que ao fim destruiu sua vida’.

E mais, nas palavras do genial ator, a esta altura uma autoridade sobre a literatura e vida de Capote: ‘Hoffman diz que a obra – o filme – é sobre o ‘trato com o diabo’ de Capote para escrever A sangue-frio…’, até aí poderia estar a competência do ator-médium, mas não, Hoffman ousa até a redução do novelista e ampliação do filme, ‘… que conta como dois jovens – Perry Smith e Dick Hickock – levam a cabo uma matança de uma família em uma isolada granja do estado do Kansas em 1959’. Percebam, o filme é sobre o ‘trato com o diabo’ de Capote para escrever A sangue-frio, que conta como dois jovens etc. etc. Na frase que mistura três coisas distintas, o filme, o escritor e o livro se fazem uma coisa só. Uma ficção da ficção, parece, quando na verdade é uma confusão da confusão. Em resumo, uma confusão dos diabos.

O personagem, a criação de Hoffman

Devagar com o andor, o andar e a carruagem. Poderíamos dizer sobre o publicado na imprensa, em um tom muito diplomático: quanta idiotia! Entre as bobagens que se escreveram poderíamos citar frases como…

‘…talvez o grande achado do filme seja revelar que A sangue-frio não foi apenas uma revolução na literatura, mas também a autobiografia dissimulada de Truman Capote…’

…e como uma estupidez chama outra, com base nessa afirmação pôde ser acrescentado…

‘…o encontro com Perry Smith perturba Capote porque ele perde a capacidade de controlar seus impulsos vitais mais profundos… Hoffman incorpora à perfeição todos os tiques do excêntrico escritor: a voz efeminada, os gestos afetados, o ego monstruoso, o humor cruel… O encontro com o criminoso reavivou demônios adormecidos dentro do escritor. Em Perry Smith, Truman Capote viu um espelho.’

Há tanta coisa néscia junta que para não imitar o método – sim, porque a estupidez tem lá seu método – vamos selecionar um momento de nescidade:

‘Hoffman incorpora à perfeição todos os tiques do excêntrico escritor: a voz efeminada, os gestos afetados, o ego monstruoso, o humor cruel’.

Menos. A brilhante interpretação de Hoffman, este Philip Seymour, é tão boa que confunde. Confesso, nós saímos do cinema encantados. Cinema tem disso, encanta até o ponto em que ficamos estúpidos. Mas a minha filha, já na volta, me acordou do encanto: ‘Eu pensei que ele fosse mais chocante’. Mais?!, quase lhe respondo, mas calei, chocado e a chocar, pensamentos. E a ruminar, no longo caminho de volta para casa, com raiva, confesso, com raiva, como uma criança que perde o seu brinquedo.

Então caiu um discreto véu de desconfiança. Capote era mesmo assim? O que é que há de errado nesse show de interpretação? Eles se parecem tanto, Capote no filme com o Capote da vida real, eu me dizia, e com isto eu e todos os espectadores nos convencemos de saber como era o Capote que todos conhecemos, compreendem?, ali, tomando café na esquina, e depois num drinque do bar da praça Chora Menino.

Onde está o erro, se há, onde está o erro? E se algum erro houver, com base em quê poderei dizer, como um estúpido sozinho a marchar em passo de ganso, ‘hey, Seymour, you está wrong?’ Tudo parece tão ponderado, sóbrio, interiorizado na interpretação! Aqueles olhinhos que fitam cortando a vítima em close na tela, aquela voz fina, aquela rodada a exibir o corpo ao abrir a capa… tudo tão Capote! Então a memória revelou – este, do filme agora na tela, é um outro Capote! Este, de Philip Seymour Hoffman, é um outro, tão diferente do Truman Capote da vida real quanto pode ser uma água de piscina de uma água de oceano. Distintos, de uma abissal diferença, no exato instante da sua semelhança.

O outro, no anterior cinema

Existe um Capote que está mais próximo do real do que essa interpretação de Hoffman. E que pode ser visto por todos, quase em carne e osso. Refiro-me ao que aparece no filme Assassinato por morte, título terrível da graça sem graça do original Murder by death, de 1976. Foi ele que a minha memória buscou, quando estranhava e procurava responder à minha filha, que achava por nossas conversas que Truman Capote era mais chocante. Foi ele quem me fez sair de casa às pressas para ir a uma locadora distante, sair a dirigir com a costumeira falta de habilidade, com labirintite na cabeça e nos ouvidos, sem carteira de motorista e sem documentos do carro, esses documentos indispensáveis que nada dizem da inaptidão da gente em dirigir. Depois de evitar dois comandos policiais e para isso quase bater nos carros, porque jamais seria compreendido no diálogo impossível entre um homem sem dinheiro e os guardas:

– Documentos.

– Eu busco Capote.

– Guincho!

Depois de evitar esse pesadelo, afirmo-lhes que o risco valeu a pena. Que bom é e que bom foi rever o sujeito baixinho, gordo, de bochechas flácidas e boca de desenho pornográfico, de mãos cuidadas, pequenas, de voz de homem que fez cirurgia da traquéia para conseguir voz feminina. E que grita para um Peter Sellers chinês, imaginem o tom com que grita, como uma criança envelhecida, a reclamar da falta de artigos e de verbos nas falas do detetive chinês.

Lembro bem que há quase 30 anos quando o vi no cinema o choque foi bem maior que agora. Ali estava a antivoz de A sangue-frio, a anti daquela voz narrativa de poder, máscula, precisa, que corta cenas e desenvolve com força, sob rédeas retesadas, uma prosa como um thriller, a casar cenas burguesas de proprietários de fazenda com a viagem dos dois delinqüentes que vão assassiná-los. Anunciadas, vítimas e testemunhas, pelo título ‘Os últimos a vê-los vivos’, o que aumenta a tensão, porque somos levados a ler os últimos momentos de vidas que se extinguem.

Agora é mais simples, o choque é menor, porque estamos preparados, e porque, forçoso é dizer, a idade, a mais idade, faz a gente menos estúpido. Complacente. Este é o Capote, quase pulamos da cadeira. Por que dizemos que este é, e o outro, o de Seymour, não? Ambos representam, poderia ser dito. Hoffman e Capote representam, ambos, em filmes diferentes. A vantagem deste, do filme de 1976, é que, primeiro, Truman Capote era uma estrela, Capote era o seu papel, o que ele escolhera para si. E tal maneira isto era que aparece em um filme ao lado de David Niven, Peter Sellers, Alec Guiness, em um roteiro de Neil Simon!

Truman gostava de representar, de se representar, de se apresentar, de ser o gênio que todos tinham que engolir, apesar de. Vaidoso ao extremo, como todo artista. Mas pleno também da vaidade que deseja não só o reconhecimento dos pares, que possuía, de Norman Mailer a Tennessee Williams, mas pleno da vaidade vulgar, porque ele, pobrezinho, queria admiração até da gente mais pobre de espírito. Dos motoristas aos boys, dos boxeadores às atrizes, do povo na rua aos burgueses – ele não poderia estar incógnito.

É claro que ao descobrir nesse Capote de 1976 o original, o ‘verdadeiro’, possuímos mais que a passagem fugaz da sua gorda figura pelas câmeras. Nós o lemos fora do set de filmagem, estamos informados da sua vida e dos acontecimentos biográficos além e aquém do filme. (Compreendemos, até, os risos das japonesas, a que ele se refere como uma característica nipônica, na magistral ‘entrevista’ – um texto estranho ao pingue-pongue tradicional de perguntas e respostas – que fez com Marlon Brando. As japonesas riam dele, vemos a distância.) Daí que percebemos o tipo especial de Capote que Seymour representa como uma interpretação particular sobre um intelectual, de um comportamento e gênero de sexo que não cabem em Capote.

Hoffman, sem o brilho da língua rápida, da resposta imediata e de veneno do original, representa um Capote educado, refinado, clean. Se mais profundas leituras tivesse – quase diria, as leituras de que precisa um escritor – ele saberia que a complexidade mental não se confunde com poses e atitudes educadas, de boas maneiras. (Impossível não lembrar Balzac, que a jantar com um louco em uma festa, fez desconhecidos acreditarem que o genial romancista é que era o louco. Balzac devorava tudo, enchia a boca, babava-se, falava alto, gargalhava, cuspia, enquanto o louco de hospício comportava-se em silêncio e educadamente.) Para esse perfil idealizado, claro, a partir da informação da homossexualidade de Capote, Hoffman copiou um gênero particular de homossexual, o do homem fino, de requintada educação, que fala suave e conquista, pela delicadeza de gestos e brilho gentil. Um certo tipo de homem, que todos na vida conhecemos, que é cópia e imitação de uma virgem romântica. Daquelas, por exemplo, que possuem ojeriza a coisas sujas. E por ‘sujas’ querem apenas dizer, fecho os ouvidos, são essas coisas insuportáveis de sexo. Discreto, discretíssimo, nessas coisas repugnantes.

Em se tratando de Capote, nada mais falso. Ele era o tipo do homem que procurava chamar a atenção, ele precisava, ele era viciado, muito antes do álcool e da cocaína, em chamar a atenção. No seu primeiro livro, na contracapa ele se mostrava em pose voluptuosa, como Claudette Colbert, deitado a olhar a câmera. Desde o começo, desde a infância, ele queria a fama, como bailarina e como atriz de Hollywood. A vida e o próprio talento lhe fizeram boas e insuperáveis correções. Ele se fez então um escritor, pela via do jornalismo, que é sempre uma forma de escrever e ser reconhecido de imediato, sem os penosos anos de obscuridade e silêncio. O Capote discreto, educado, longe está da imagem do filme de 1976 e dessa pequena amostra, relato que fez de um sonho:

‘Por exemplo, outra noite eu estava sentado com uns amigos em um bar cheio de gente em Kay West. Em uma mesa vizinha, havia uma mulher meio bêbada com seu marido, completamente bêbado. Daí a pouco, a mulher se aproximou e me pediu um autógrafo em um guardanapo de papel. Isto não pareceu bom ao marido. Ele veio então, dando golpes em nossa mesa e, depois de abrir a braguilha e retirar todo o membro, disse: ‘Já que está dando autógrafos, por que não assina aqui?’. As mesas ao redor ficaram em silêncio, e assim muitíssima gente ouviu minha resposta: ‘Não sei se caberá minha assinatura, mas será que posso pôr as minhas iniciais?’’.

Que a imprensa até aqui misture Capote, o filme, a Capote, o escritor, e publique resenhas a sangue-frio, só faz lembrar o genial Mark Twain, nessa observação sobre jornalismo: ‘Jornalismo é separar o joio do trigo. E publicar o joio’

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Jornalista e escritor