Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cem anos de solidão, 1 milhão de exemplares

‘Tinha completado há pouco 38 anos quando sentei em frente à máquina escrever, sem ter a mínima idéia do significado e da origem da frase que lancei no papel em branco: ‘Muitos anos depois, defronte ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía teria lembrado daquela remota tarde em que seu pai o levara para conhecer o gelo.’’

Assim começou seu depoimento-reportagem o jornalista e escritor que recebeu na pia batismal o nome de Gabriel José de la Concordia García Márquez, conhecido por seus leitores somente como Gabriel García Márquez e por seus amigos tratado por Gabo, no dia 26 março, em Cartagena (Colômbia), perto de sua nativa Aracataca, quando festejava seus 80 anos.

Parecendo ignorar que seja um dos dez mais importantes escritores da idade moderna, como um simples mortal se diz perplexo com o lançamento da edição 1 milhão de exemplares de seu trabalho maior, Cem anos de solidão, e surpreso ao lembrar que se pudesse juntar os leitores desse livro em uma só comunidade morando num mesmo lugar, formariam um país entre os 20 mais populosos do mundo. Em sua festa, quis tão-somente uma extravagância – ‘Quero o rei’, dizia a seu editor, isto é, a presença do rei da Espanha, Juan Carlos, o qual, não se fazendo de rogado, compareceu com a rainha Sofia.

‘A inspiração se evapora’

Mas vamos voltar a janeiro, quando García Márquez, contrariando todos seus princípios, resolveu dar uma entrevista a Jordi Valle (il Venerdi di Repubblica). Quando o entrevistador ligou o gravador, num botequim em Cartagena, Márquez deu uma amostra do que viria dali para a frente, isto é, que ele não estava ali como escritor: ‘Nós, jornalistas, ainda não aprendemos a usar o gravador! Nem para lembrar as entrevistas, nem para não cometer erros.’

Pediu uma ‘colita’, versão colombiana da Coca-Cola, e explicou: ‘A inspiração do escritor se evapora como o uísque esquecido num copo. Meu problema era ficar acordado à tarde, mas agora, não. Passo longas horas lendo, deitado, coisa que não podia fazer antes, pois adormecia.’

‘A curiosidade nos faz viver’

Memória de minhas putas tristes, (no Brasil, há 85 semanas entre os dez mais vendidos) segundo diz, é oficialmente o último de seus livros, deixando a entender que deve algum outro na gaveta ou que pretenda dar prosseguimento à sua biografia Vivir para contala. Sobre Memória, que foi esnobado pela crítica italiana, diz: ‘Deveria ter sido uma reportagem sobre os prostíbulos sul-americanos, depois tornou-se a descrição da velhice ativa. Somos viejos.’ Não tem mais colaborado nos jornais – ‘me inchan los huevos’.

Levanta, sai, e pouco depois chega com uma garrafa de uísque ‘do bom’: ‘É uma beleza não ter mais que ser obrigado a escrever agora, quando leio muito. Não quero dizer que não volte a fazê-lo. O computador me ajuda a ter notícias sobre o que está acontecendo no mundo inteiro. O meu cérebro as filtra, as avalia. As esquece e algumas vezes as registra. As notícias importantes, à noite se tornam prepotentes, e é aí que o caráter de repórter se torna gigantescamente curioso. Não é a curiosidade a força que nos faz viver? Não é a primeira característica de quem escreve, seja lá o que for?’

‘Fui, sou e serei jornalista’

Saiu recentemente na Itália o livro Periodismo militante, um apanhado de reportagens, crônicas, artigos escritos por ele até 1978. No livro, ele faz uma verdadeira destruição do mito da inocência da informação, do jornalismo neutro e de outras máscaras usadas por jornalista conservadores que, através da mídia, manipulam as massas.

Gabo pára, pensa, olha distante, como se fizesse uma viagem no tempo, e continua: ‘Num determinado momento de minha vida, fiz um balanço. A única coisa que me sobra é a celebridade. Eu queria ser escritor, um bom escritor, queria ser lido, queria ser reconhecido como um bravo escritor, mas não esperava tanta celebridade, que é a coisa mais incômoda do mundo, que serve somente para ser perturbado por aqueles que querem te entrevistar, e então me pergunto: o que eu faço com essa celebridade? Carajo!’

Finaliza com uma profissão de fé sobre sua primeira atividade, iniciada aos 17 anos: ‘Eu fui, sou e serei sempre um jornalista. Quando comecei a escrever romances era por excesso de tempo e também para arredondar minha entrada de dinheiro.’

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Jornalista