Nos anos 1980, quando ainda morava no Brasil, tive a oportunidade de encontrar pessoalmente a jornalista e escritora italiana Oriana Fallaci. Ela estava lançando em português seu livro Um Homem. O assunto me interessava muito: tratava da vida de Alekus Panagulis (1939-1976), coronel do exército grego que desertou ao ser implantado um regime ditatorial em seu país, liderado por Georgios Papadopulos (1919-1999).
Alekos organizou um atentado contra o ditador, que não obteve êxito. Foi preso, torturado e só não foi morto para que a oposição não criasse um mártir. Mesmo assim tornou-se um herói vivo da resistência contra o totalitarismo. Com o retorno da democracia, elegeu-se para o Parlamento. Mas sua luta continuou e, dois dias antes de apresentar documentos que comprometiam o ministro da Defesa, morreu num acidente automobilístico, em circunstâncias misteriosas.
Alekus Panagulis foi o homem da vida de Fallaci, seu único amor.
Tudo muito bem montado, deveria ser um acontecimento editorial, mas ‘la Fallaci’, durante o evento, resolveu ter um faniquito de prima-dona provinciana, pois ‘só naquela momento’ descobriu que a tradução para o português de Um Homem não era de seu agrado. A coisa soou tão falsa, a intenção promocional foi tão evidente, que desisti de comprar o livro e bani a escritora que qualquer possibilidade de estar em minhas estantes.
Alvos errados
Passou-se muito tempo, vim morar na Itália e Fallaci depois de um ‘silêncio’ de dez anos, voltou a escrever, apresentando um longo artigo no Corriere della Sera – ‘A raiva e o orgulho’ – sobre o atentado de 11 de Setembro às torres gêmeas de Nova York. Li o trabalho e, certamente, ainda confuso com o acontecimento nova-iorquino, gostei e o aprovei em quase tudo. O jornal publicou tão-somente um resumo; semanas depois saiu um livro, com texto integral e título homônimo, que também li, mas já não o achei muito bom. Trazia uma grande dose de discriminação e de xenofobia.
Passei à publicação de uma coletânea de entrevistas que a tornaram famosa, com Henry Kissinger, Yasser Arafat, Golda Meir, Indira Gandhi, Ali Butho, o aiatolá Komeini e outros. Todas tinham algo em comum: a entrevistadora, sem o mínimo pudor, se colocava como o personagem principal em todas as matérias. Mesmo assim não desisti e passei para um livro, Inscialla (1990), onde é relatada a participação das tropas de paz italianas durante a guerra civil libanesa (1983). Este livro pode servir de exemplo emblemático para a afirmativa de Paulo Francis, quando dizia que desconhece qualquer livro que possa se manter interessante depois de 300 páginas. De fato, para digerir as enjoadas 800 páginas de Inscialla faz-se necessária uma enorme dose de sal de frutas.
Oriana Fallaci continua escrevendo e publicando quilométricos artigos, que se transformam em livros com grande sucesso editorial, nos quais seu alvo preferido são os islâmicos e os emigrantes assentados na Itália que praticam essa religião.
Na quarta-feira (16/11) foi lançado o livro Cattiva maestra. La rabia di Oriana Fallaci e il suo contagio (Professora ruim. A raiva de Oriana Fallaci e o seu contágio), de Giancarlo Bosetti . O autor faz uma análise da declaração de guerra da jornalista contra os muçulmanos. Diz Bosetti:
‘Sobre as virtudes literárias da senhora se continuará discutindo e o campo é livre para todos, seja o que pensem, invejosos ou não, críticos literários, historiadores e admiradores. Mas esse é um assunto que não me diz respeito. O que me diz respeito e se lhe chegar às mãos esse livro é porque existe um depois de ‘11 de setembro’. Depois daquele evento, a senhora abandonou os seus precedentes projetos literários para dedicar-se de corpo e alma a uma campanha pessoal contra o terrorismo, que é de fato uma fundamental declaração de guerra contra os muçulmanos como tal, contra uma religião como tal. Contra o inimigo, o dragão, o monstro.
Abriu essa campanha e a está conduzindo com o seu capital de popularidade e com todas suas virtudes de escritora – uma empresa que eu considero triste, insolente e cúmplice da preguiça mental, que sempre alimente os estereótipos. Os seus livros, os seus artigos, as suas entrevistas desses anos contêm uma mistura de ingredientes que correspondem aproximadamente à lista completa das abstrações e dos erros que deveriam ser evitados caso se queira realmente derrotar o terrorismo jihadista, se o desejo é debilitá-lo e isolar os canalhas que o sustentam.’
De fato, tem razão o autor, haja vista que a raiva e o orgulho são maus conselheiros, sugerem péssimos argumentos, atingem alvos errados, aumentam os conflitos abrindo novas frentes e eliminam a moderação tão necessária em casos difíceis.
Oriana Fallaci exerce a discriminação racial e religiosa com uma raiva irracional. Diz um imã moderado, reconhecendo dolorosamente o que ele pensa ser uma verdade: ‘Os muçulmanos não são todos terroristas, mas todos os terroristas são muçulmanos’. Esquece a jornalista que na primeira metade do século passado, os italianos que emigraram para Estados Unidos fugindo da miséria implantaram nesse país o crime organizado através da nefasta Máfia e o mais importante: ‘Todos os italianos não eram mafiosos, mas todos os mafiosos eram italianos’.
De fato, Oriana Fallaci é uma péssima professora e não pratica um bom jornalismo.
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Jornalista