Um acontecimento inusitado surpreendeu o Brasil em setembro de 2005: o ex-governador e ex-prefeito Paulo Salim Maluf foi preso pela Polícia Federal, acusado de usar seu poder para impedir as investigações sobre o dinheiro que desviou dos cofres públicos para contas secretas no exterior, principalmente na Suíça.
A história de como os bancos suíços entregaram Maluf às autoridades brasileiras, revelando as contas secretas que o tinham como beneficiário, mesmo quando em nome de seu filho Flávio ou de outros parentes, é contada pela primeira vez no livro O dinheiro sujo da corrupção – como a Suíça entregou Paulo Maluf, do jornalista Rui Martins.
Rui Martins e o jornalista suíço Jean Noel Cuenod, que também cobriu o caso para a imprensa européia, têm uma surpresa para a família Maluf: cobrarão em ato público, em Genebra, a promessa do ex-prefeito de entregar o dinheiro das contas ‘a quem o encontrar’. Como eles afirmam que encontraram o dinheiro, vão exigir que a fortuna lhes seja entregue. Pretendem doar a alguma entidade brasileira idônea de combate à desigualdade social.
Rui Martins, que vive na Europa desde 1969, radicou-se em Genebra, na Suíça, e acompanhou todo o caso Maluf. Seu livro é o segundo de uma coleção de instant books inaugurada com o polêmico A usina da injustiça – como um só homem está destruindo uma cidade inteira, sobre o empresário Benjamin Steinbruch, controlador da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a cidade de Volta Redonda.
O dinheiro sujo da corrupção tem prefácio do ativista Jean Ziegler, ex-deputado suíço que se tornou o terror dos bancos, autor de vários livros sobre lavagem de dinheiro.
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‘Queremos o dinheiro do Maluf’
Rui Martins, que na semana passada estava em Iaundê, capital de Camarões, como enviado especial da Organização Mundial de Saúde para cobrir um fórum sobre Aids, disse ao Observatório que estão previstas três iniciativas em Genebra, após o lançamento do livro, em novembro: na presença da imprensa internacional (‘há 200 jornalistas de todo o mundo credenciados aqui na ONU’), ele e o colega Jean-Noël Cuénod, da Tribune de Genève, que também cobriu o caso, pedirão formalmente que Maluf cumpra a promessa de dar o dinheiro a quem o encontrasse. Rui acredita que tenham sobrado nos bancos locais cerca de 8 milhões de dólares – o resto tomou vários destinos, inclusive . ‘Ele tinha prometido que quem provasse a existência do dinheiro na Suíça podia ficar com ele’, cobra o jornalista. ‘A seguir, anunciaremos que se esse dinheiro nos for entregue doaremos ao MST, e deixamos desde já convidado um representante do MST a tomar assento conosco, em Genebra, no dia desse anúncio.
Outra iniciativa será a criação de um movimento para que o desconto anônimo, pelos bancos suíços, nos lucros obtidos com a evasão fiscal de clientes residentes na União Européia seja também aplicado às contas secretas de residentes em países pobres e emergentes, como o Brasil. ‘Foi ao criar essa exceção, nos acordos bilaterais da Suíça com a UE, que os suíços salvaram o segredo bancário’, diz Rui. ‘Por isso, demos o nome de Princípio da Exceção à extensão desse mecanismo a outros países, como um positivo precedente’. A dupla pedirá apoio a ONGs, governos e movimentos de cidadania para reforçaram a viabilidade do Princípio da Exceção. ‘Os depositantes brasileiros têm mais de 150 bilhões de dólares na Suíça; ora, esse dinheiro gera lucros fabulosos, e o desconto na fonte deverá render ao Brasil alguns bilhões de dólares’.
A terceira iniciativa é de defesa do trabalho dos correspondentes internacionais na Europa. ‘Formalizaremos denúncia à Fenaj, ao Ministério das Comunicações, com cópia para a Organização Internacional do Trabalho e a Organização Mundial do Comércio, do dumping praticando por rádios estatais internacionais, por concorrência abusiva: oferencem ao Brasil e a outros países material jornalístico gratuito’, reclama. ‘É concorrência desleal, pois são rádios estatais’.
Para Rui Martins, a única exceção aceitável seria de caráter humanitário. ‘Material informativo gratuito só deveria ser fornecido a pequenas rádios do interior de países latino-americanos ou africanos, nunca a redes comerciais, com condições de pagar correspondentes no exterior’, diz. ‘Esse dumping praticamente acabou com a existência de correspondentes de rádio’. Para Rui, há que se estudar o interesse por trás dessa iniciativa. ‘Por que gastariam milhões de dólares para oferecer material grátis? Esse material é isento de intenções neocolonialistas?’
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Trecho do prefácio de Jean Ziegler…
Um testemunho esclarecedor
Foram, porém, as revelações de Rui Martins, nas imprensas suíça e brasileira, que impediram a justiça suíça de enterrar os processos abertos na Europa. Homens como Rui Martins tornam transparentes os processos judiciários complicados, trazem à luz as pressões exercidas sobre os juízes e denunciam os perigos constantes de assoreamento que ameaçam os processos. Eles alertam e mobilizam a opinião pública. E, por sua vez, a pressão dessa opinião pública permite que juízes corajosos prossigam em suas investigações.
As democracias – tanto a brasileira como a suíça – são constantemente ameaçadas pela corrupção, pela arrogância, pelo arbitrário e pelos múltiplos abusos cometidos pelos poderosos. Homens corajosos como Rui Martins criam a transparência e informam os cidadãos. A imprensa livre é a respiração da democracia.
Albert Camus formula a seguinte questão: ‘Quem responderia hoje à terrível obstinação do crime se não fosse a obstinação do testemunho?’ A Rui Martins e aos seus colegas jornalistas de investigação nós devemos uma gratidão e uma admiração profundas. (Genebra, maio de 2005′)
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…e do posfácio de Carlos Aranha
Duas coisas me fascinaram assim que terminei de ler O dinheiro sujo da corrupção – Por que a Suíça entregou Maluf. Fascinar, aqui, no sentido de ficarem abertas as portas para mais uma aventura no espaço do jornalismo, da política e da cidadania.
A primeira é que seu autor, Rui Martins, ao deixar clara uma face da Suíça desconhecida de quase todos os leitores (desde a disfarçada cumplicidade daquele país com a perseguição nazista aos judeus até a aceitação do dinheiro sujo depositado em seus bancos por ditadores africanos, asiáticos e latino-americanos), leva qualquer um a repensar os conceitos sobre a tal globalização que oculta toda a perversidade que prolonga a miséria no planeta.
Jean Ziegler lançou, em 1976, A Suíça acima de qualquer suspeita. Trinta anos depois, o livro de Rui Martins possibilita a releitura da realidade, no sentido de que temos de globalizar não a economia, mas a cidadania. Esta é uma das partes principais da aventura a que este livro pode conduzir no universo das novas discussões.
A segunda fascinação está na boa provocação, oferecida pelo livro, para que seja repensado o papel da imprensa, do jornalismo e da mídia em geral no Brasil que, a cada ‘cena do próximo capítulo’, multiplica os personagens do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha.
Não quero participar do coro dos contentes e assim vejo todo o relato de Rui Martins, demitido da CBN com uma alegação empresarial que convence apenas aos ingênuos, como um alerta para que o jornalismo investigativo ultrapasse a observação dos personagens políticos para revelar, aqui e acolá, a cumplicidade de alguma empresa de comunicação com um (ou vários) desses personagens.
Não há semelhanças nem coincidências no que lemos em Rui Martins. Há fatos registrados, narrados, impossíveis de serem ocultados e em torno dos quais surgirão, com certeza, revelações. O tempo e as pessoas, em cumplicidade não previamente estabelecida, disso se encarregarão. É de se considerar que um político como Paulo Maluf não esteve sozinho, sem ligações com um ou outro veículo de comunicação. Também que não há somente um Maluf no Brasil. Há políticos como ele em quantidade suficiente para desestabilizar qualquer projeto de mudança nas relações complexas que sustentam o monstruoso modelo socioeconômico do país.
Dinheiro sujo da corrupção, enfim, configura-se uma obra mais que aberta. O oportuno livro de Rui Martins possibilita, no mínimo, a rediscussão de, a partir da Suíça, como o exterior nos olha, e como e quando poderemos reagir às ondas operadas por meio dos sistemas bancários globalizados, e do papel do rádio, do jornal e da televisão, para que não sejamos transformados no ‘admirável gado novo’. (Carlos Aranha é jornalista, músico e escritor, ex-presidente da Associação Paraibana de Imprensa e editor da coluna ‘Essas Coisas’).