Argemiro Ferreira é jornalista há mais de 40 anos. Desde 1992 vive nos Estados Unidos, para onde foi cobrir os quatro meses finais da campanha presidencial Clinton vs. Bush e acabou ficando por lá. Adotou, então, um regime de trabalho no qual conseguiu manter correspondência, sem vínculo trabalhista, para múltiplos veículos brasileiros. Hoje, Argemiro é correspondente da Tribuna da Imprensa, da GloboNews, do Jornal de Notícias de Portugal e do serviço em português da Rádio França Internacional. E está lançando o livro O Império contra-ataca, com o subtítulo ‘as guerras de George W. Bush, antes e depois do 11 de Setembro’.
Seu novo trabalho em livro relata a discussão política havida entre 1992 e 2004, nos EUA, e revela os mecanismos utilizados pelos chamados neoconservadores, aliados aos fundamentalistas religiosos, para tirar partido da histeria patriótica que tomou conta do país depois do 11 de Setembro. Argemiro localiza o ovo da serpente no governo de Bush pai e mostra como os principais protagonistas da nova direita americana finalmente puderam aplicar suas idéias no mandato de Bush filho. E dá-lhe arrogância imperial e guerra interna às liberdades civis.
Esta é a entrevista que o jornalista concedeu, por e-mail, ao Observatório.
***
O que o levou a escrever O Império contra-ataca? Para que espera que o livro sirva?
Argemiro Ferreira – Fiquei traumatizado com o 11 de Setembro, mas fiquei igualmente chocado com o clima que o país passou a viver depois do ataque terrorista. Fiz imediatamente o paralelo com o período macartista que tinha sido o tema de meu livro anterior, Caça às bruxas, publicado em 1989. A convite de Silviano Santiago, escrevi, em 2002, para a revista latino-americana Margens/Márgenes, um ensaio aproximando o consenso da guerra fria com aquele novo consenso, do 11 de Setembro. Na mídia, o humorista Bill Maher perdera o emprego na ABC e o apresentador Dan Rather, da CBS – hoje exorcizado pela direita por causa da reportagem sobre o serviço militar de Bush –, disse ao David Letterman que naquele momento era só um patriota. Não lembro as palavras exatas, mas era algo como: ‘Estou aqui como soldado do presidente Bush. Presidente, ordene e eu cumpro’. Fora a nova guerra às liberdades civis, revivendo o FBI do tempo de J. Edgar Hoover, este um dos maiores inimigos das liberdades civis na história dos EUA.
Toda a mídia entrou nessa onda, totalmente ridícula para qualquer observador estrangeiro. O ensaio de Margens sugeriu o projeto do livro. E enquanto escrevia o livro e fazia o que os americanos chamam de ‘conectar os pontos’, a idéia evoluiu para retratar o debate no país entre 1992 e 2004. Por coincidência, era meu período de correspondente nos EUA. Mas fazia sentido por outra razão: o projeto neoconservador é de 1992. Pouca gente recorda hoje que um documento interno do Pentágono vazado à imprensa naquele ano escandalizou as vozes moderadas da política externa dentro dos EUA e os países aliados tradicionais. Era uma receita de Pax Americana, para substituir a estratégia da guerra fria. A controvérsia só terminou quando o velho Bush (o pai), então em fim de mandato e candidato à reeleição, mandou o então secretário da Defesa, Dick Cheney, refazer o texto daquela diretiva do Pentágono, redigida por Paul Wolfwitz. A receita voltaria 12 anos depois, com o retorno dos neocons, levados pelo segundo Bush, em 2001.
Quanto à outra parte da pergunta, acho que o livro será útil para o leitor entender o que acontece nos EUA. Até para aqueles que discordam de minhas posições. Por uma razão. Ofereço um conjunto minucioso de informações. O livro é farto nelas, com citações de fontes e tudo. Até usando as próprias fontes que cito, meus eventuais oponentes podem me contestar. Entre elas há documentos oficiais – da Casa Branca, do Departamento de Estado, dos neoconservadores etc. E o mais importante: sempre que possível, dou os links para o leitor ir direto ao original, pela internet. Ou seja, como Marx disse sobre o capitalismo, o livro contém o germe de sua própria destruição, se os críticos quiserem usá-lo para isso. Mas acredito, claro, que está bem fundamentado e seu conteúdo resistirá a qualquer tentativa nesse sentido.
Como a direita americana conseguiu conquistar tantos corações e mentes no país? Conquistando também a mídia?
A.F. – Na verdade, não começou agora. E a mídia certamente tem muito a ver com isso. No livro procuro descrever o processo. Em 1964, quando o senador Barry Goldwater disputou a presidência e varreu da convenção republicana na Califórnia os liberais de Nelson Rockefeller, foi massacrado nas urnas por Lyndon Johnson. Mas Ronald Reagan, que o apresentara [Goldwater] solenemente na convenção, sobreviveu. E depois de perder para Nixon e Ford (não-conservadores) nas primárias de 1968 e 1976, Reagan elegeu-se graças à crise dos reféns do Irã em 1980, como restaurador da honra, do patriotismo, e da imagem da América forte.
Em 1981, início do governo Reagan, o jornalista I. F. Stone [1907-1989] me disse numa entrevista, depois publicada (pouco antes da morte dele) na revista Imprensa, que a direita estava invadindo os campi. O coração dos estudantes inclinava-se naturalmente para a esquerda, mas eles passaram a ser subornados por propostas (bolsas, empregos, mordomias) pelos think-tanks conservadores, dos quais os mais conspícuos eram (e ainda são) o American Enterprise Institute e o Heritage Foundation. Ao mesmo tempo, a direita religiosa, dos cristãos fundamentalistas, retomou o fôlego na batalha pelo impeachment de Bill Clinton, em 1998-99.
Até então eu não estava tão atento ao processo dos neocons – os neoconservadores; observava mais a direita religiosa e fundamentalista, também chamada ‘conservadorismo teocrático’, que originou o neologismo theocons. Ao iniciar o livro, os neocons passaram ao centro da minha atenção. Tinham um projeto pronto (o Projeto do Novo Século Americano) ao chegar ao poder com George W. Bush e os theocons.
Quais as mudanças mais notáveis no jornalismo americano pós-11 de Setembro?
A.F. – O medo da histeria patrioteira determinou a mudança. A Fox News assumiu a liderança, celebrando aquela histeria – os outros acompanharam, intimidados. Nem o New York Times ousou resistir. Por isso tenta minimizar hoje o crime jornalístico praticado por Judith Miller, que mantém como estrela da equipe, embora o que ela fez seja muito mais grave do que a ficção jornalística de Jayson Blair e Rick Bragg, para a qual veio autocrítica pomposa do jornal.
A Fox massacrou a CNN e escancarou a força potencial da direita naquele momento junto à população americana. Um dos mais notáveis neocons, Irving Kristol – que inventou a expressão ‘neoconservadorismo’ não agora, mas há mais de 20 anos – chegou a escrever uma vez que bastaria a um presidente americano enrolar-se na bandeira e poderia (devia) mentir à vontade para ter o apoio da população. A imagem de Reagan tinha sido abalada pelo atentado que matou, em Beirute, 241 fuzileiros navais americanos, levando o presidente a retirar as tropas, com o rabo entre as pernas. Como tinha cometido o erro ao mandar os fuzileiros, Reagan tentou reabilitar a imagem logo depois do desastre. Como? Invadindo a inofensiva Granada, aqui no Caribe. Kristol apoiou essa operação de todo o coração. E viu aí a grande lição: o presidente, enrolado na bandeira, mentiu dizendo que estudantes de medicina dos EUA corriam risco. Os americanos não sabiam onde diabo ficava aquela ilha. Mas o país inteiro apoiou.
Terminada a operação, houve festa patriótica nas ruas – como se fosse heróica a invasão da ilhota de 100 mil habitantes pela maior máquina de guerra que o mundo já conheceu. Nessa ocasião, aliás, a mídia protestou, pois o Pentágono não admitiu a presença de jornalistas (só um pool, dias depois, com a situação já sob controle e os repórteres guiados por cicerones militares). Depois disso, consolidou-se ainda a regra do Pentágono: não se admitiu jornalistas na invasão do Panamá, menos de 10 anos depois, e agora os jornalistas vão para a cama com os militares, os embedded, o que a mídia festejou no Iraque como conquista.
Qual o espaço do jornalismo independente nos Estados Unidos? Que importância tem sua audiência?
A.F. – Sou um entusiasta dessa mídia. Não apenas estão ali jornalistas brilhantes, mas também alguns dos mais sérios, mais estudiosos, que ousam contestar o governo e colocar os fatos no contexto. Mas esses jornalistas, obviamente, não estão no que é chamado aqui de mainstream press ou mainstream media. Estão em The Nation, The Progressive, In These Times, no rádio e na televisão em programas como Democracy Now, de Amy Goodman, no canal alternativo Free Speech TV, do Colorado etc. Ainda tem coisa boa, rara, na PBS e na NPR, as redes públicas de televisão e rádio. Coisas como o Now with Bill Moyers – para mim, o exemplo mais notável, pois Moyers, jornalista da grande mídia, ex-secretário de imprensa de Johnson, hoje deixa a direita indignada e é denunciado pela Fox News como de extrema esquerda, apenas por ser sério e conseqüente contra os crimes das grandes corporações. Lamentavelmente Moyers aposenta-se em janeiro.
No mais, sobram os alternativos. Fora das grandes redes, controladas por gigantes como a General Electric (corporação que abriga grandes fornecedores de armas do Pentágono, faturando com as guerras, além das redes NBC, MSNBC etc), Walt Disney (rede ABC), Viacom (rede CBS), Time-Warner (CNN). O resto é o resto: jornais e revistas, pequenas publicações assinadas (ou compradas) no máximo por pouco mais de 100 mil leitores (caso da Nation, a mais bem-sucedida de todas, com 140 anos de existência) não competem com os milhões de exemplares de Time, Newsweek e os grandes jornais. É uma liberdade de imprensa e de expressão duvidosa, embora os alternativos consigam influir muito no meio acadêmico (daí a denúncia conservadora de que os professores corrompem a juventude, disseminam o derrotismo e são um perigo para a segurança nacional americana).
Como se comporta a imprensa regional na cobertura dos assuntos de governo?
A.F. – Existe um grande mito em relação à imprensa regional. Vivo num subúrbio de Nova York, Westchester, primeiro condado ao norte de Manhattan (o mesmo onde mora o casal Clinton) . Quando vim para cá, em 1994, morei em White Plains, cidade simpática, relativamente grande, a meia hora da Grand Central Station (Rua 42 com Lexington). Depois fui para Cortlandt, mais ao norte. Tínhamos em White Plains um jornal supostamente local, o Reporter Dispatch, da cadeia Gannett, dona do USA Today, cuja sede é exatamente em Westchester. Ora, essa cadeia compra jornais locais há décadas. Hoje tem mais de 100 no país. E os locais deixam de ser locais – às vezes têm duas páginas locais.
O Reporter Dispatch foi fundido pela Gannett com outro de cidade próxima ao norte, o Journal News, que em seguida incorporou os de mais cidades e, já agora, dos condados mais ao norte – Putnam, Rockland, Dutchess. Que local é isso? É uma grande mentira. O material nacional é o mesmo do USA Today. O que está acontecendo é uniformização, igual ao McDonalds (daí a adequada expressão McPaper). Desaparece o critério jornalístico na administração. Prevalece o raciocínio da grande corporação – na verdade, da Wall Street. Quando demitem em massa, as ações sobem.
Esse é o jornalismo americano dos milhões de exemplares. O outro, o alternativo, mantém-se nos seus limites, vive em grande parte do apoio de pessoas (celebridades com consciência e convicção, como Paul Newman) e fundações, heranças (doações deixadas em testamento por pessoas progressistas que morrem). O que ameaça fazer mais diferença é a internet, os blogs. Uma revolução. Mas ainda é cedo para se saber para onde isso nos levará. Dá apenas para especular, alimentar sonhos – e muitas ilusões.
Como avalia a cobertura da mídia americana na campanha para a eleição presidencial de 2 de novembro?
A.F. – Não quero ser pessimista a esta altura. Mas temo que a eleição pode ter sido definida pela rede Fox News, em agosto, com a cobertura dos comerciais contra Kerry no Vietnã. O incrível é exatamente isso: ‘cobertura dos comerciais’. Desde quando comerciais merecem cobertura? No passado, no Brasil, eu já achava um absurdo colunas sobre propaganda nos jornais e na televisão. Na Rede Educativa, onde trabalhei, existia programa de uma hora sobre comerciais, apresentado como se fosse cultura. A rede pública veiculava aqueles comerciais gratuitamente e era proibida de incluir comercias em sua programação. Agora, a Fox descobriu a ‘cobertura de comerciais’. Passa o comercial e ouve pessoas. Exige que os adeptos de Kerry se defendam das denúncias torpes e mentirosas. Os comerciais eram fraude fabricada às escondidas pela campanha de Bush, que dizia, juntamente com o próprio presidente, discordar do conteúdo, reconhecendo da boca para fora ser um absurdo – até porque os documentos oficiais do Pentágono (sob controle de Bush) contestavam tudo aquilo.
A manobra imunda destruiu a reputação do candidato. E enquanto a Fox fazia isso, ainda dava para entender. Só que todas as outras passaram a imitar porque via o ibope da Fox subir. Calúnia e mentira sempre deram ibope. A CNN, rival e inimiga, passou a fazer a mesma coisa. E as grandes redes também. Para culminar a história, o grupo de mídia Sinclair, um império, cujas emissoras de TV (repetidoras das grandes redes) alcançam 25% do país, anunciou que alteraria toda a programação para incluir no horário nobre o documentário Honra Roubada, de 42 minutos, sobre o que Kerry falou 30 anos atrás dos soldados americanos no Vietnã.
Gravações antigas de Kerry foram devidamente editadas (como aqueles comerciais, algumas imagens eram as mesmas) para parecer que as denúncias eram dele. Não eram, ele apenas relatava o que fora dito por outros em depoimentos. Até hoje, depois de Abu Ghraib, os americanos acham que soldados americanos são uns santos, jamais praticaram atrocidades. Se você fala em My Lai eles ficam horrorizados. Dizem que é invenção dos comunistas, embora as fotos sejam oficiais, do Pentágono. E o tal documentário foi programado pela Sinclair a menos de três semanas da votação.