Não perca a prosa – o pequeno guia da grande arte da escrita, de Antonio Fernando Borges, 132 pp., Versal Editores (www.versal.com.br / versal@versal.com.br), Rio de Janeiro, 2004; R$ 18
[do release da editora]
Escrever é traduzir idéias em palavras. Escrever bem é conseguir traduzir essas idéias nas palavras mais exatas, verdadeiras e belas possíveis. Eis uma boa definição da chamada arte da escrita. Mas, enquanto o pensamento é múltiplo e simultâneo, a redação é linear e sucessiva. Aí está o maior desafio de quem quer redigir bem. Não perca a prosa – o pequeno guia da grande arte da escrita vai ajudar – e muito – a superá-lo. Sem ser exclusivamente prescritivo, pretende tratar, sobretudo, de como traduzir a simultaneidade e a multiplicidade do pensamento na linearidade da escrita.
Para Antonio Fernando Borges, a obra difere de um manual, pois apresenta os fundamentos da arte da composição. Também é diferente da maioria dos guias práticos de redação ao não concentrar sua visão da linguagem na função exclusiva de informar algo a alguém – a chamada comunicação.
Por entender que a aventura humana constitui muito mais do que meramente comunicar-se, Não perca a prosa abordará, especialmente, o potencial criador da linguagem, seu compromisso com a expressão da exatidão e da beleza, como postularam tantos grandes filósofos, de Platão a Leibniz.
Antonio Fernando Borges é jornalista e escritor, publicou Que fim levou Brodie? (Record, 1996/Prêmio Nestlé de Literatura, 1997) e Braz, Quincas & cia. (Companhia das Letras, 2002). Desde 2001, dá cursos e palestras sobre a arte da escrita. A seguir, a entrevista com o autor.
***
Como você avalia o atual nível da escrita no Brasil, pelo que lê em jornais, revistas, livros, internet e pelo que se sabe da escrita informal na vida cotidiana?
Antonio Fernando Borges – Numa avaliação rápida e superficial, não se pode deixar de constatar um empobrecimento generalizado. Ao olhar desavisado, poderia parecer o oposto: afinal, nunca se escreveu tanto e sobre tantos assuntos – nem jamais houve tantos veículos diferentes (a própria internet, por exemplo). Existe também todo um criticismo no ar, uma aparente conscientização geral, que poderia dar a impressão de grandes reflexões e escrita elevada. Mas a verdade é que nunca se escreveu tanto para se dizer tão pouco. Basta um olhar mais atento para se perceber como o vocabulário e as estruturas gramaticais empobreceram. Se a escrita constitui a tradução de idéias em palavras, então se conclui que nunca se pensou tão pouco – e mal – como agora!
Você diz que no Brasil existe o mau costume de atribuir uma ‘informalidade obrigatória à fala’ fazendo com que ‘as estruturas coloquiais passem a ser referências exemplares para a escrita’. Qual a conseqüência disso?
A.F.B. – Existe, de fato, no Brasil uma tendência a se sobrepor os pares oral x escrito e informal x formal, como se fossem praticamente a mesma coisa. Na verdade, a linguagem oral surgiu antes da linguagem escrita, mas o modelo formal de uma língua precede suas variantes informais. E pela mais simples das razões: no fim das contas, ser informal significa transgredir – e ‘deformar’ – formas previamente existente. Trata-se de uma questão de ordem lógica: aquilo que não existe não pode ser transgredido. A bem dizer, isso parece uma tendência mundial. Para não ir muito longe: mesmo o português praticado em Portugal estabelece diferenças formais entre a fala e a escrita. O problema no Brasil – com nossa excessiva informalidade – é que existe uma verdadeira guerra declarada contra a formalização da escrita, e de resto contra as formalizações e os critérios normativos em geral. Certamente, não existe pecado nenhum em combinar aspectos formais e informais da linguagem, na hora de escrever. O problema começa quando se percebe que a coloquialidade da fala ameaça tomar conta de tudo, empobrecendo a linguagem, a literatura e, conseqüentemente, o pensamento como um todo. Este constitui o principal problema: um povo que pensa mal… E quando as pessoas começam a pensar mal; bem, o resto já se pode imaginar.
Você coloca a escrita como uma aventura e convida o leitor a embarcar nela. Por que a escrita é uma aventura e por que embarcar nela?
A.F.B. – A linguagem humana representa muito mais do que um instrumento de comunicação – coisa de que muitas espécies animais também dispõem (basta observar as abelhas, os pássaros, etc.). Ela constitui uma sofisticada ferramenta pela qual o homem faz orações a Deus, promulga leis, encena uma tragédia – enfim, traduz seus pensamentos em palavras. Por conta disso, a escrita talvez seja uma das expressões mais nobres da aventura humana. Sem falar que é através da escrita que o homem aprende – e existe aventura maior do que o aprendizado? Embarcar na aventura da escrita significa mergulhar no mais fundamental e essencial da aventura humana.
Em seu livro, há uma crítica ao chamado determinismo lingüístico de Wittgenstein, Lacan e outros pensadores. Em que consiste essa crítica?
A.F.B. – Existe uma corrente teórica (infelizmente bastante disseminada pelo mundo) que considera que o pensamento estará sempre determinado e limitado pelas categorias e estruturas permitidas pela língua – no caso, por cada língua em particular. Essa tendência, com todas as suas variantes, acredita que as diferenças entre as línguas se refletem nas idéias de seus falantes. Mas, com isso, eles simplesmente se esquecem de esclarecer que, se fosse assim, somente os russos poderiam compreender Dostoiévski, apenas os ingleses entenderiam Shakespeare, e assim por diante. Pior: essas pessoas parecem ignorar o gênio não-verbal da linguagem humana, que se expressa, por exemplo, através da pintura, da música e da matemática.
Você define o texto como uma estrutura dotada de três dimensões: a sintaxe, a semântica e a harmonia. Poderia situar cada uma delas?
A.F.B. – Em linhas gerais, a sintaxe seria o conjunto de regras e princípios que comandam a ordem das palavras no texto, ou seja, a maneira como as palavras se relacionam entre si; a semântica se refere ao significado, mensagem ou conteúdo que as palavras procuram transmitir; e a harmonia, o modo equilibrado, elegante e bonito com que se pode distribuir as palavras num texto para transmitir determinadas idéias. Estas seriam as chamadas ‘três dimensões do texto’. Cada uma delas corresponde a um dos três aspectos indispensáveis a tudo o que existe: exatidão (sintaxe), verdade (semântica) e beleza (harmonia). Mas não se deve esquecer que, como as dimensões de qualquer corpo, elas não podem se separar, a não ser esquematicamente. Num bom texto, as três precisam estar em equilíbrio permanente.
Os escritores costumam dizer que o mais difícil na arte da escrita é encontrar o tom. O que é o tom e em que se diferencia da voz e do estilo?
A.F.B. – Realmente, essa reclamação costuma ser geral, e eu também considero a questão importante – a ponto de dedicar um capítulo do livro ao assunto. Afinal, um tom errado pode comprometer o resultado do mais bem-intencionado dos textos: porque, no caso, já não se trata apenas daquilo que o autor quis dizer, mas do que ele acabou dizendo, mesmo sem querer. O tom depende sempre dos propósitos ou mesmo do humor de quem escreve. Ninguém tem obrigação de ser elegante ou gentil todo o tempo. Por isso, um texto pode ser também agressivo ou suave, irônico ou imparcial – só não pode ser inadequado, impróprio para as intenções do autor e de seu texto. Quanto ao chamado estilo, as pessoas costumam exagerar sua importância. Muitos autores se perdem num texto (e, muitas vezes, ao longo de sua carreira) procurando um ‘estilo’, quando deveriam estar buscando escrever com exatidão, verdade e beleza. No fundo, o estilo representa apenas o resultado, bem ou mal articulado, das palavras que o autor escolheu para produzir um texto – e isso depende, sobretudo, da capacidade de adequar a linguagem às suas necessidades de expressão.
E o que diferencia seu livro de outros já publicados sobre o assunto?
A.F.B. – Sem querer entrar no mérito de sua qualidade, acho que o grande diferencial que eu procurei estabelecer ao conceber Não perca a prosa refere-se justamente a sua visão da linguagem – não como um simples veículo de comunicação, mas como uma poderosa ferramenta de grande potencial criador. A conseqüência disso é que procurei ir mais longe do que apenas publicar mais um guia prático de redação: quis fazer uma reflexão sobre o grande compromisso moral e intelectual da escrita com a expressão da exatidão, da verdade e da beleza.