A melhor coisa do último livro de Carlos Heitor Cony é o título: Eu, aos pedaços (Leya, 253 páginas, 2010). O subtítulo – Memórias – foi que me fez vencer a indecisão do preço caro e comprar. Constatei na leitura a felicidade do título, próprio de um copidesque ao velho estilo: ao invés de um texto integral de reminiscências, o livro é composto de partes, pedaços já publicados, nada de novo. Um livro inútil, que eu podia jogar fora.
Durante os anos da juventude eu comprava os livros de Cony mal eles apareciam e os lia de uma só vez, às vezes num único dia. Poucos escrevem tão bem dentre nós quanto ele. Sua ficção é única, penetrando no mundo da classe média brasileira contemporânea inacessível ou inexplorado por outros escritores. Os anos de seminário, a lidar com latim e lógica, teologia e metafísica, lhe deram um superior refinamento e um humor sutil. Mas também acuidade e sensibilidade para a alma humana. Lê-lo proporcionava prazer e aprendizado.
Esse Cony moralista, num estilo urbanizado e atualizado, foi interrompido pelo golpe militar de 1964. A crônica que ele escreveu no dia 1º de abril daquele ano foi a primeira – e uma das mais arrasadoras – sátiras ao movimento militar, que ele testemunhou em Copacabana, onde morava. Foi sua primeira manifestação explicitamente política. Antecipou e ajudou a mudança de posição do Correio da Manhã, que ainda era o jornal de maior influência política no país. Depois de apoiar a deposição do presidente João Goulart com dois editoriais flamejantes (‘Basta’ e ‘Fora’, escritos por Edmundo Moniz, que era de esquerda), o Correio começou a denunciar os desmandos dos novos donos do poder até se incompatibilizar com eles.
Preço bom
Quando pegava meu exemplar do Correio, ia direto à crônica de Cony no 2º caderno. Depois, aos livros que reuniam sua produção dessa época, Da Arte de Falar Mal, O Ato e o Fato e Posto Seis, dos melhores já publicados em língua portuguesa.
A progressão da sátira chegou ao paroxismo quando Cony criou sua versão do Ato Institucional e acarretou ainda mais problemas ao Correio. Ele então se demitiu e Antônio Callado, que acabara de assumir o cargo de redator-chefe do jornal, o acompanhou.
O gesto parecia heróico e temerário: ele respondia a processo instaurado a pedido do todo-poderoso ministro da Guerra (o último com esse título), marechal Costa e Silva, que viria a suceder ao marechal Castelo Branco na presidência. O enquadramento na terrível Lei de Segurança Nacional caiu, mas o jornalista foi condenado pela Lei de Imprensa.
Parecia que seguiria a partir daí rumo ao ostracismo quando Adolpho Bloch o adotou na Manchete e ele se tornou o principal redator do empresário. Era o retrato de Bloch, ao lado de sua cadela de estimação, que aparecia decorando seu artigo semanal na revista. Mas quem o escrevia era Cony. Ele foi assumindo a condição de escritor de aluguel, o que correspondeu, no seu íntimo, a vender a alma. Sua literatura se evaporou e suas qualidades pareciam congeladas, enquanto ele viajava, circulava e aparecia ao lado de celebridades. Era o eterno acompanhante de Adolpho Bloch. Deixei de lê-lo até Quase Memória, que nos devolveu ao que ele tem de melhor
Só mesmo a admiração remanescente pelo escritor me fez voltar a ler Cony depois que ele reivindicou (e conseguiu) uma indenização milionária do governo, mais uma sinecura mensal até o fim dos seus dias, como vítima de perseguição política durante a ditadura. Sou, em geral, contra essa ‘bolsa ditadura’, que enriqueceu muita gente. Mas particularmente em relação a Cony ela é absolutamente indevida.
É claro que ele teve sua cota de sofrimento causado pela perseguição que sofreu logo depois do golpe por conta do que escreveu. Mas escrevia como um profissional, escalado para aquela função por contrato e sob remuneração. Vivia bem. Durante a transição entre a saída do Correio e a incorporação à nau de Bloch, ele deve ter amargado privações. Mas depois passou a ter dinheiro como nunca antes. Aceitou deixar de lado a consagração como escritor pela condição de jornalista influente em Manchete. A perseguição, a partir daí, ao invés de prejudicá-lo, o favoreceu. Ele vendeu por bom preço o seu passe valorizado de herói.
História bonita
As viagens ao redor do mundo, que ele fez depois de ter se livrado da condição de perseguido, teriam sido possíveis se ele tivesse continuado como redator de jornal, cargo que ocupava quando começou a se entestar com os centuriões da nova ordem? Poderia estar flanando em Milão, vestido com o Rossetti Yacht que Bloch lhe deu?
No livro, colcha de retalhos amarfanhados, Cony admite que, ao final de outubro de 1965, ‘dei por encerrada minha participação na luta contra o golpe de abril’. Por coerência, devia devolver o dinheiro que o povo lhe paga pelo que não fez. Mas em 2004, culminando um processo que tramitou aceleradíssimo, o ministro Márcio Thomaz Bastos mandou pagar ao escritor 1,4 milhão de reais a título de ‘reparação econômica de caráter indenizatório’ e uma pensão mensal de R$ 23 mil. Esse dinheiro faz falta aos que não podem ou não sabem contar uma história bonita para se fazer herói, mesmo o herói compungido, como Carlos Heitor Cony. Ele aparece na capa desse seu livro descartável sugerindo uma humildade que é o inverso do que sua biografia mais recente apregoa ao mundo. Um herói de Liliput.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)