Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Criação, diálogo e transformação

Quais são as intersecções entre literatura, tradução, modernismo e vanguarda?

Esta pergunta norteou os trabalhos apresentados no colóquio ‘Tradução, Vanguarda e Modernismos’, realizado na Universidade Federal de Ouro Preto em julho de 2007. Considerando o tradutor como um agente que trabalha a partir de um texto, mas também rompe com ele, tomando liberdades, fazendo escolhas e negociando sentidos, o encontro propunha-se a enfocar a tradução como uma prática inerente a diversas formas de produção literária. Tradução enquanto procedimento de vanguarda. Para além do adágio lugar-comum, traduttore, traditore, traduzir é criar, dialogar com a tradição, possibilitando sua continuidade pela transformação.

Díspares e diversos, os artigos desta coletânea têm em comum a preocupação em trilhar caminhos não balizados, rotas imprevistas no território da tradução, emergente campo de estudo. Teatro, prosa, poesia e música popular são examinados pelo viés tradutório, como espaço de cruzamentos múltiplos, nas colaborações aqui reunidas.

Dentre os que contribuíram para esta reflexão sobre o papel da tradução na modernidade, José Lira, tradutor paraibano da poesia de Emily Dickinson, discute os desafios enfrentados na tarefa que se impôs e reivindica o ato de traduzir poesia como genuína forma de criação artística. Afirma também, citando Guimarães Rosa, que a própria criação literária já é uma forma de tradução, de explorar, dar forma a um texto invisível, situado alhures, ou seja, no inconsciente do escritor e que precisa ser representado verbalmente. Mas o escrever é também uma incursão dialógica na linguagem, ‘um reaproveitamento bakhtiniano de palavras alheias, enfim, uma reedição’, afirma Lira, que distingue em suas traduções dos versos da poeta norte-americana três categorias distintas: ‘recriação’, ‘imitação’ e ‘invenção’, cada uma destas com implicações distintas no que diz respeito ao caráter ‘autoral’ da tradução de poesia.

Escolha como forma de rebeldia

A ideia de que o tradutor de poesia deve ser necessariamente poeta é também fio condutor para abordar as traduções de um dos principais expoentes da geração beat, o poeta Allen Ginsberg, executadas pelo também beat Cláudio Willer. Divergindo da noção de tradução poética como ‘transcriação’, proposta pelos concretistas, Willer reafirma a fidelidade como critério tradutório, visto não sob o prisma da tradução literal, mas como o compartilhar de uma perspectiva ou horizonte comum que permite ao tradutor explorar outra faceta do eu lírico. Ao verter os versos do norte-americano para o português, Willer prioriza o efeito sonoro das palavras; neste sentido, reconhece o aprendizado com a experiência performática da poesia lida em voz alta, que treinou seus ouvidos. Admite ter sido um tradutor privilegiado, pela oportunidade de corresponder-se com Ginsberg e obter esclarecimentos sobre algumas dúvidas que surgiram na tradução de Uivo.

O interesse de editores brasileiros em traduções da poesia da geração beat está ligado ao impacto que o acordo MEC-SNEL-Usaid, assinado em 1967, teve no setor livreiro do Brasil. Com o acordo, a cultura norte-americana passa a estar cada vez mais presente no país, não só através dos livros traduzidos, mas também através do cinema, das histórias em quadrinhos, da televisão, das imagens, brinquedos, música e uma vasta gama de produtos comerciais que são disponibilizados para o mercado brasileiro. Irene Hirsch discute a integração de obras estrangeiras ao sistema literário brasileiro, analisando os desdobramentos do acordo assinado durante a ditadura militar, avaliando a atuação das casas editoriais na época, assim como a tradução de numerosos volumes de clássicos norte-americanos para consumo brasileiro.

A própria seleção dos ‘clássicos’ norte-americanos a serem traduzidos no Brasil durante o período militar denota um caráter marcadamente conservador, mas, como afirma Irene, é interessante observar que nessa época surge, simultaneamente, uma explosão criativa e vanguardista na tradução de poesia. A escolha dos poetas traduzidos, interpretada como uma forma de rebeldia, já é bastante significativa: destacam-se os modernistas Marianne Moore, William Carlos Williams e Ezra Pound, além de escritores identificados com a contracultura: Norman Mailer, poetas beat como Allen Ginsberg, Charles Bukowski, entre outros. A reflexão crítica em torno dessas traduções, por autores como Augusto de Campos, é de reconhecida importância na teoria literária brasileira.

Diálogo e enunciação no teatro

Ainda sobre tradução de poesia: cotejando quatro traduções de Le Pont Mirabeau, de Apollinaire, Silvana Vieira da Silva evidencia as estratégias adotadas nas traduções e discute como o traço vanguardista do poeta francês se mantém nas versões para a língua portuguesa. A tradução do texto literário poético é também discutida por Norma Domingos, que se propõe a fazer uma tradução crítica de alguns contos da obra Contes cruels, de Villiers de l´Isle-Adam (1838-1889). A pesquisadora comenta desafios estilísticos que enfrentou em seu percurso e atenta o leitor para o apagamento das fronteiras entre gêneros literários distintos como prosa e poesia no movimento simbolista. Seu ensaio reconstitui a trajetória simbolista na França, onde a tradução de textos de Edgar Allan Poe por Baudelaire teve um papel primordial.

Indo além da poética, questões de ética na prática tradutória são abordadas no ensaio de Maria Teresa Quirino, que estuda as traduções francesa, argentina, portuguesa, brasileira e catalã de Ulisses, de James Joyce. Partindo do princípio de que a obra de Joyce em si tem a ver com tradução, Maria Teresa vale-se das ideias de Antoine Berman de que a ética na tradução está diretamente ligada à ‘experiência do estrangeiro’ para empreender sua análise de projetos diversos de tradução de Joyce. O texto enfocado no ensaio é ‘Aeolus’, sétimo episódio de Ulisses.

A tradução no teatro é também alvo de discussão. José Roberto O´Shea reflete teoricamente sobre as especificidades da tradução de teatro, revendo conceitos teóricos relacionados às características do diálogo e da enunciação teatrais, aliados às reflexões de Clarice Lispector sobre suas próprias traduções de drama.

Incorporação de elementos ‘estrangeiros’

Ana Helena Souza, tradutora de Samuel Beckett, examina como a autotradução está integrada à obra do escritor irlandês, chamando a atenção para as diferenças nas versões francesas e inglesas de obras como Esperando Godot e Molloy, entre outras. O fato peculiar de Beckett escrever seus textos em francês e depois vertê-los para sua língua ‘materna’, o inglês, desperta o interesse de diversos críticos. Considera-se que Beckett deliberadamente optou por um ‘empobrecimento de seus recursos linguísticos’ no pós-guerra, caminhando em direção oposta à ‘apoteose da palavra’, característica da escrita de seu compatriota, James Joyce. Ana Helena considera a análise das autotraduções de Beckett um valioso recurso para quem se dispõe a traduzir a obra do autor irlandês, sobretudo para evitar certos equívocos, como o de traduzir o texto beckettiano segundo as normas do que é considerado ‘bom estilo’.

Tradução e adaptação encontram-se entrelaçadas na peça teatral ‘pós-dramática’ O amor de Fedra, de Sarah Kane, como demonstra a diretora teatral Tania Alice Feix, que investiga as diversas faces do mito nas peças de Eurípedes, Sêneca e Racine. Atenta ao caráter que o mito assume na versão de cada um dos autores, Tania ressalta como Sarah Kane adaptou o enredo clássico para o teatro da contemporaneidade tomando Sêneca como fonte, sem consultar Eurípedes e nem o texto neoclássico consagrado de Racine. Ao encenar a adaptação de Sarah Kane, Tania resgatou o Coro, que aparece constituído por jornalistas, assinalando como a subjetividade contemporânea é determinada por esses agentes da mídia.

Investigando o processo de intersecção de dois tipos de manifestação poética, a canção popular e o poema literário, Lauro Meller avalia a distinção entre poesia e letra de música. Considera as características das letras compostas pelo ex-beatle Paul McCartney, examinando como poemas e letras de sua autoria foram traduzidos para o português pelo letrista Márcio Borges, parceiro de Milton Nascimento no Clube da Esquina. Ainda no espaço da música popular e sua interface com a tradução, Heloísa Pezza Cintrão discute a confluência entre dois movimentos de vanguarda brasileiros: Tropicália e Antropofagia. Comenta a maneira como, no Tropicalismo, elementos ‘estrangeiros’ passam a ser incorporados pela MPB e examina o processo de transcriação nas traduções que Gilberto Gil faz da música popular internacional, em especial aquela que congrega ritmos africanos.

Reflexões sobre diferentes áreas do saber

No plano da literatura infanto-juvenil contemporânea, Adriana Maximino dos Santos discute as novas modalidades de levar literatura aos jovens leitores, ressaltando, entre outros aspectos, a importância das imagens, ilustrações e projeto gráfico dos livros. Considerando a obra Tintenherz, de Cornelia Funke (2003) e sua tradução para o português, Coração de tinta, de Sonali Bertuol (2006), Adriana discute a interação do tradutor com os diversos aspectos editoriais que determinam o êxito do livro infanto-juvenil.

Questões identitárias, ligadas à alteridade e suas expressões, estão no cerne dos estudos culturais. Formam também um dos focos de interesse para os estudos da tradução. Assim, Adail Sebastião Rodrigues-Júnior aborda a tradução brasileira da coletânea de textos homoeróticos Stud, intitulada As Aventuras de um Garoto de Programa, como uma estratégia de ‘desguetificação gay‘, no sentido de dar legitimação à vida gay ‘como estilo e prática social’, valorizando sua expressão literária. As Aventuras de um Garoto de Programa foi lançado no Brasil no final da década de 1990, uma época em que os movimentos gays ganhavam força política no país e ampliavam os meios para expressar suas ideologias. Adail apresenta o contexto em que esses movimentos se fortaleceram e que possibilitaram a tradução e expansão da literatura homoerótica no Brasil.

Concluindo o volume, Flávia Florentino Varella e Valdei Lopes de Araujo fazem uma ponte entre tradução e historiografia examinando manifestações do tacitismo no Correio Braziliense (1808-1822). Tecem um paralelo entre a situação do editor do periódico, Hipólito José da Costa, e a do historiador latino Tácito, no que diz respeito à negociação entre a história hipotética e a contemporânea. Trata-se de ‘uma espécie de tradução de formas antigas’, como afirmam os autores do artigo, na direção de uma escrita histórica moderna.

Nesse entrecruzar das fronteiras da história, da música e dos estudos literários, este volume pretende ser uma contribuição para os estudos da tradução, com reflexões acerca da tarefa do tradutor em diferentes áreas do saber, procurando situá-lo como agente de transformações, na vanguarda dos acontecimentos culturais.

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Pesquisadoras e escritoras