A Transparência Internacional divulgou, há poucos dias, que o Brasil ocupa a 23ª posição no Índice de Pagamentos de Propina (Bribers Payers Index – BPI), ou seja, a oitava pior posição, no “ranking” com 30 países, além de ter caído nove posições no “ranking” do Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial e classificado na lista negra da pirataria elaborada pela União Européia. Nesses tempos de valores invertidos, há autoridades capazes de identificar a mazela brasileira: um magistrado da Vara Criminal de Goiânia determinou a soltura, no dia 5/10/2006, de um rapaz de origem humilde acusado de furto por entender injusto e pouco razoável mantê-lo preso enquanto “políticos e administradores públicos desviam fortunas dos cofres públicos e sequer passam diante de uma delegacia”, conforme noticiado pela imprensa escrita em 7/10/2006.
Também nesse diapasão, São Paulo tem assistido, perplexa, às seguidas investidas do Primeiro Comando da Capital. Instalou-se na região metropolitana e em cidades do interior paulista uma espécie de guerra civil, de números alarmantes: dezenas de mortos, inclusive com assassinatos de agentes da segurança pública; atentados contra postos policiais e alvos civis como prédios públicos, agências bancárias, supermercados e incêndios em veículos de transportes coletivos, com reflexos que já são sentidos em outros Estados.
Desde 2001, a facção comandou mais de 100 rebeliões em presídios paulistas, em demonstração evidente de que o terror das ruas seria apenas uma questão de tempo. A barbárie de maio evidenciou o colapso completo da segurança pública brasileira. Não foram eventos isolados. A coordenação ditada pelos criminosos evidenciou atentados simultâneos em São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná e Minas Gerais, que culminaram, inclusive, com o seqüestro de uma equipe de reportagem de televisão para instituir moeda de troca voltada para transmissão, em rede nacional, de mensagem forçada de terror.
Ressalvadas reações pontuais, o que se viu foi a politização dos discursos no encaminhamento da crise. A facção criminosa vem sendo tratada como verdadeira anomalia do sistema. Sustenta-se que teria sido fruto de treinamento de guerrilha quando do contato de seus integrantes com presos políticos. Ou que teria sido resultado da inteligência privilegiada de um só de seus integrantes, apontado como senhor absoluto de estratégia ímpar e conhecimento literário especial. Dizem alguns que a crise seria resultado da culpa do estado de São Paulo, incapaz de estabelecer e gerir, sozinho, um plano competente de segurança pública. Para outros, seria culpa da União, desinteressada no aprimoramento legislativo das execuções penais. Na verdade, a facção, que deixaria surpresas as democracias suíça e belga, é fruto natural da corrupção que domina parte das instituições brasileiras.
O mesmo Brasil
É verdade. O fato precisa ser admitido. Não há nada de muito diferente nos criminosos dos presídios, que já não seja fato consolidado em segmentos do funcionalismo do Estado. O país da facção é o mesmo que levou recentemente ao Supremo Tribunal Federal, por denúncia de corrupção, nada menos do que 40 políticos contra os quais, muito pouco tempo antes, nada pesava de suspeito. Aliás, muito pelo contrário, tratava-se, na maioria, de pessoas de prestígio nacional.
Na primeira lista de parlamentares envolvidos na Operação Sanguessuga foram destacados 62 congressistas. O número impressiona? Basta lembrar que na Operação Mãos Limpas, na Itália, iniciada por uma denúncia de pagamento de propina para renovação de contrato de limpeza num hospital público, foram presos 109 prefeitos, condenados dois juízes e um deputado. Há diferenças entre o nicho de corrupção brasileiro e o italiano. Evidenciada a proximidade dos números, lá, na Itália, a centena de corruptos foi presa. Não se tergiversou. No Brasil, ao contrário, o foro privilegiado é um modelo processual penal arcaico. Nele são contemplados mais de 24 recursos! Como superá-los? Ninguém se esqueceu de que, em homenagem à impunidade, Paul Castellano, conhecido mafioso, já dizia que não queria mais pistoleiros. Preferia antes, e com maior eficiência de resultados, deputados e senadores. Aqui reside a lógica que precisa ser invertida.
O Brasil da facção é o mesmo que, em seguidas operações da Polícia Federal, viabilizou a prisão não só de integrantes da própria polícia e do pretenso intocável empresariado brasileiro, mas, também, de servidores públicos e agentes políticos das três esferas de Poderes, sob as mais variadas acusações, entre elas as de formação de quadrilha, contrabando, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, tráfico de influência e advocacia administrativa.
Derrocada nacional
No Brasil da facção, há evidente subordinação indevida dos órgãos de fiscalização ao próprio órgão ou Poder fiscalizado. Basta conferir os exemplos da própria Polícia Federal, da Secretaria da Receita Federal – SRF, da Controladoria-Geral da União – CGU e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras – Coaf.
O Brasil da facção é o mesmo que contabilizou, recentemente, duas surpreendentes operações em dois estados distintos, Espírito Santo e Rondônia, para desmascarar quadrilhas organizadas com atuação concatenada dentro dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo e, também, no Ministério Público. Troca de favores escusos, influência direta e ilegítima no curso de investigações policiais, apoio à sonegação fiscal, incentivo à propina, comprometendo a arrecadação tributária, são fatos atuais. O país da facção é aquele que exibe políticos corruptos na propaganda eleitoral gratuita, esquecendo-se, em nome de uma exacerbada presunção de inocência, das acusações graves que pesam contra eles em investigações ou ações penais em pleno andamento.
São, todos, exemplos tristes da derrocada nacional. O Primeiro Comando da Capital, que deixaria comprometido o sistema penitenciário americano ou que abalaria os alicerces da política criminal da França ou da Inglaterra, é, aqui no Brasil, decorrência direta da falência do sistema penitenciário, desvalorização do agente público e investimento deficitário em saúde, educação, moradia, emprego e segurança pública desde décadas passadas. É, na mesma proporção, fruto da alimentação da corrupção que envolve desde funcionários públicos ocupantes de cargos singelos até presidentes de Poderes do Estado.
Facção mais antiga
A corrupção é o elemento essencial para a sobrevida do crime organizado. Sem ela, o Estado enxerga a organização criminosa e tem força para destruí-la imediatamente. O incentivo à corrupção assegura a proteção aos negócios escusos, à fiscalização estatal deficiente, aumentando seu grau de sigilo, compartimentação e segurança. Se a pretensão é, de fato, enfrentar os criminosos da facção – e a providência é para lá de urgente –, o enfrentamento não virá com a utilização da parcela comprometida das entidades públicas.
Certamente não será assim. É ridículo supor diferente. O enfrentamento deverá ser feito com compartilhamento real de informações. A solução não será ditada por um único organismo público. Muito pelo contrário. Virá determinada na somatória de esforços legítimos de variados segmentos. Será encontrada no esforço conjunto de pessoas e segmentos sociais mais preocupados com o bem-estar da população e menos com a administração de vaidades e arrogâncias pessoais, bastante conhecidas da opinião pública. Sobretudo será resultante de constatação e punição do grave problema decorrente do descrédito das instituições.
O Brasil tem que acordar de vez: para derrotar o autodenominado Primeiro Comando da Capital, o pressuposto necessário é derrotar, também, outra facção mais antiga e mais entranhada na vida brasileira, o Primeiro Comando da Corrupção, de estrutura horizontal, com falsos dirigentes dissimulados e infiltrados em vários estratos da administração pública. Pelo voto consciente, expressão do exercício da cidadania, muitas das portas e janelas da corrupção poderão ser fechadas e, assim, o Brasil acordará do estado de letargia que vivenciamos atualmente.
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O primeiro, promotor de Justiça do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP; o segundo, delegado da Polícia Federal na Diretoria de Combate ao Crime Organizado em Brasília, professor da Academia Nacional de Polícia, pós-graduado em Processo Civil e Segurança Pública