Para se ter uma idéia do ‘interesse’ do brasileiro na História do Brasil, o melhor livro sobre a vinda da Família Real – Dom João VI no Brasil, de Oliveira Lima –, lançado em 1908, no primeiro centenário, teve até agora quatro edições. A segunda foi em 1945 e a terceira em 1996. A quarta, da Editora Topbooks, com prefácio de Wilson Martins, saiu apenas em 2006.
Ninguém ignora que nas últimas décadas tem havido no Brasil uma esterilização da História. Lêem-se pilhas e pilhas de livros, mas ninguém fica sabendo de nada, já que o propósito dos autores é exibir erudição em pormenores ou defender sua ‘tese’. Reconheçam-se as exceções, que as há, mas a norma tem sido esta: não dizer nada.
Laurentino Gomes, formado em jornalismo pela Universidade Federal do Paraná, deu uma lição ao retomar um modo de escrever que, sem falsear a História, troca em miúdos para o leitor a matéria que, se os doutores a conhecem, não sabem como ensiná-la… Nascido em Maringá (PR), Laurentino tem 51 anos, 30 deles de atividade profissional como repórter e editor em jornais e revistas de grande porte, entre os quais O Estado de S.Paulo e a revista Veja. Atualmente, dirige uma unidade da Editora Abril responsável pela publicação de 23 revistas segmentadas. O jornalista tem paixão por temas da História.
Apesar da apelação do subtítulo desjeitoso (‘Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil’) que tem o fim de chamar a atenção do público, o livro 1808 (Editora Planeta, 408 páginas, R$ 39,90) já é um dos melhores momentos dessa efeméride, ao conciliar pesquisa e modo de revelar o que foi descoberto.
Bom conselho
Efemérides são boas oportunidades para o leitor ficar sabendo de tudo. A celebração dos 200 anos da vinda da Família Real para o Brasil vem ensejando, não somente às editoras, mas também à mídia, múltiplas oportunidades de informar e formar o leitor.
Aquilo que a escola não tem dado nas últimas décadas, do ensino fundamental, passando pelo segundo grau, agora juntos na expressão ‘ensino médio’, até chegar ao curso superior, vem sendo suprido de forma admirável por outro tipo de ensino a distância: aquele oferecido por jornais, revistas, livros, rádio, televisão, internet.
Devido às fortes tempestades enfrentadas no caminho, algumas naus vieram diretamente para o Rio, enquanto aquela em que viajava Dom João VI foi parar em Salvador. O então príncipe regente só chegaria ao Rio de Janeiro no dia 7 de março.
Aqui se tornaria rei de Portugal, do Brasil e de Algarves, e passaria à História como um rei bondoso, meio atrapalhado, comedor de frango assado, com medo de tomar banho de mar, quando foi em verdade, apesar de tais usos e costumes talvez fazerem parte de sua complexa personalidade, um soberano sagaz, receptivo ao povo, com grande visão de estadista.
Lembremo-nos do conselho que deu ao filho, Dom Pedro I, quando aqui o deixou, voltando a Portugal: ‘Pedro, meu filho, põe a coroa em tua cabeça antes que algum aventureiro o faça!’.
Roteiro infiel
O brasileiro, sempre jocoso, inclusive consigo mesmo e um pouco mais com os portugueses, com freqüência é atacado, não apenas de saudável irreverência, que o faz rir de si mesmo, mas de um masoquismo que vê tudo de pior no Brasil e no que diz respeito ao nosso país.
Ora, o próprio Napoleão reconheceu em Dom João VI um inimigo difícil de combater. E já no exílio, o outrora temido e poderoso imperador reconheceu que o príncipe português foi o único que não o venceu, mas o enganou.
Assim, em vez de fuga atabalhoada, como nos fazem crer diversos historiadores, a vinda da Família Real foi uma das maiores retiradas, senão a maior, de toda a História.
Infelizmente veio do cinema uma contribuição sinistra e inverídica. O filme de Carla Camuratti, Carlota Joaquina, falseia a História para angariar simpatias bobas e meio autoflageladoras. O perfil de Dom João VI, representado pelo grande ator que é Marco Nanini, não é fiel à História e nem às tradições portuguesas e brasileiras. Nem mesmo o de Carlota Joaquina, representação igualmente magistral de Marieta Severo, é fiel à soberana espanhola. Os atores são ótimos, mas o roteiro e os diálogos apoiaram-se em bibliografias que falsearam a História. Ou então foram mal digeridas…
Ínvios caminhos
Dom João VI era de uma memória prodigiosa, como, aliás, todos os da Casa de Bragança. Em rápidas ou demoradas conversas, mostrava saber coisas relevantes sobre a vida de quem o procurava para despachos no beija-mão. Ao lado do trono, ficava uma mesinha onde eram depositados os requerimentos e pedidos.
Todas as noites, por volta de 21h, o rei, com muito gosto, recebia todos para a cerimônia do beija-mão, sem dispensar os ritos próprios.
Todos eram iguais perante o rei, naquela solenidade tão curiosa. Um general poderia estar atrás de um simples sapateiro, cozinheiro ou lavrador das cercanias, pois valia o princípio da fila – uma das maiores instituições do Brasil e das mais estáveis.
Quem chegasse primeiro ficava em melhor posição para beijar a mão do soberano. Naturalmente, algumas doenças também eram transmitidas nessas ocasiões… de saliva em saliva.
Quem fundou o Brasil foi o único rei que superou Napoleão em estratégia. Num tempo em que reis eram depostos, humilhados, vencidos ou até decapitados – como ocorreu ao soberano francês pouco mais de duas décadas antes da vinda da Família Real –, Dom João salvou a si mesmo, a seus familiares, à Corte e, por ínvios caminhos, também o povo, português e brasileiro.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação; seu livro mais recente é o romance Goethe e Barrabás (Editora Novo Século)