Eliane Brum é uma autora boxeur. Afirmo isso não pela sua habilidade em derrubar o leitor com cruzados infalíveis, mas por saber conduzi-lo como ninguém ao esgotamento de uma forma que não possa perceber que está indo a nocaute quando, na verdade, já beijou a lona. Assim é a experiência da leitura de Uma duas, seu primeiro romance, publicado há pouco pela editora Leya.
Foi por um cruzado (ou seria um gancho?) que prestei atenção na sua escrita. Isso aconteceu há pelo menos doze anos, quando publicou em Zero Hora um texto chamado “Enterro de pobre” e que pode ser lido no livro A vida que ninguém vê, vencedor do Jabuti de 2007. Trata-se de uma crônica-reportagem para ser lida sem respirar e que tem como tema a pobreza. Não a pobreza como é descrita pelo IBGE, que afirma haver no Brasil de 2011 pelo menos quinze milhões de pessoas vivendo além do que seria o limite da pobreza extrema (o que há além da pobreza extrema?), não como quem trata de forma evocativa ou numérica a realidade da pobreza ou a classifica, e sim, como quem lhe dá qualidade, nome, endereço e destino. No texto, conta o que acontece a uma família que se despedaça e, pela pobreza, não tem sequer onde depositar os seus pedaços. E ela o faz como se friccionasse as palavras em direção aos olhos do leitor, para que se misturem a ele e este não possa mais saber com que olhos está fazendo a leitura. Mas é improvável que se possa explicar uma coisa dessas.
Em Uma duas, Eliane mostra que vem aperfeiçoando essa destreza. Semanalmente ela tem praticado em pé, em sua coluna semanal em Época, e tem enfrentado adversários de peso. Nos últimos tempos, tem escrito sobre a questão ambiental, a vida dos sem-teto, a vaidade dos com-tudo, a frieza da vida urbana, pessoas sem nome, periféricos, estratosféricos, maternidade, pessoas trabalhando, ciberespaço, escolas, ruas, shoppings, violência, identidades, que mais? Em Uma duas, ela exercita outra técnica, a do mergulho. O mergulho psíquico de suas duas personagens centrais: mãe e filha. Às vezes fundo quase a ponto de não sobrar tempo para se voltar à superfície.
Mergulhar no alheamento da vida
Como é sabido, todo mergulho tem o seu risco. Às vezes até pode ser que seja um risco calculado. Mas há vezes em que um mergulho tem por causa um naufrágio. Em Uma duas, mãe e filha são náufragas exauridas uma pela outra. O cenário da narrativa é quase todo feito por imagens incompletas, como destroços de uma casa, de um hospital, de uma redação de uma revista, escadarias, janelas para a rua e cenas interrompidas. Mas as lembranças, as impressões, o medo, a raiva, os sentimentos e as sensações são pintados com o pincel da inclemência, da dubiedade e da humanidade, erguendo-se mais alto que as paredes, os sons e o estrondo do mundo físico, das coisas palpáveis. O risco de ler um livro como esse é o de ser arrastado ao seu fundo muito mais que por um pedaço de alguma coisa, como um caco de um elemento decorativo, por um chamado inaudível, uma palavra sem resposta, pelo crispar de unhas, pelo silêncio, companhia da imaginação ou pela imaginação, companhia da solidão.
É do encontro e do desencontro dessas duas mulheres solitárias que surge a narrativa de Eliane, esgueirando-se no estremecimento afetivo e percorrendo trajetos psíquicos sem destino certo e sem qualquer promessa ou indício de um final feliz. São personagens centradas em si mesmas, confundindo espaços, olhares, palavras e afetos. Uma duas tem como uma variante subtropical da cor interior bergmaniana, de quem pode buscar e sabe encontrar a expressão subjetiva do ser humano e seus desejos, mesmo que nas situações mais periclitantes e improváveis.
Essa busca, o desenvolvimento dessa capacidade, Eliane tem feito desde os tempos de “Enterro de pobre”, sua crônica-gancho-no-queixo. E desfere seus golpes por vislumbrar um outro que descortina sua humanidade aos poucos, às vezes em lágrimas represadas ou sangrando aos borbotões. Seu mergulho em Uma duas poderá consagrar ainda mais sua perícia de boxeur sensível e trazer aos seus leitores a experiência inconfundível de mergulhar no alheamento da vida das pessoas mais comuns e sofridas, como se tivéssemos sempre uma última de chance de darmos as mãos e inutilizar em definitivo os discursos prontos e fáceis. Ainda não concluí a leitura de Uma duas, mas preciso dizer que ela já me fez mergulhar na lona.
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[Lucio Carvalho é coordenador da revista digital Inclusive: inclusão e cidadania e autor de Morphopolis]