Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Da importância de transcender

A maior parte da atividade produtiva, hoje em dia, é realizada por empresas. Parte substancial dela, por grandes empresas. Gostemos ou não delas, constituem ator fundamental de nosso tempo, que por sua vez tem na economia um referente central. Comparemos nossa época com outras: a economia já foi menos importante que a religião. Sim, em toda época foi preciso produzir, vender, comprar e consumir; mas só no capitalismo essas atividades passaram a ditar a vida pessoal. Em sociedades pré-capitalistas, a produção e tudo o mais podiam ser meios. As identidades estariam baseadas, por exemplo, na religião. Hoje, estão fincadas no seu lugar na produção. Marx acertou muito, na sua descrição do capitalismo – e ele mesmo sabia que, antes desse regime de produção, a economia tinha papel menos relevante.

Os grandes atores da economia, as empresas, se comunicam? Como? Paulo Nassar, um dos nossos melhores conhecedores de comunicação empresarial, nas suas colunas agora reunidas em livro levanta perguntas, sobretudo, éticas. Ele alude ao economista Gilberto Dupas, que faleceu entre a publicação dessas crônicas em papel e sua reunião em livro, para lembrar que as empresas são movidas pelo lucro e que todo elemento ético em sua ação só poderá vir de fora, e não de dentro. Discutir a ética na empresa é, assim, debater uma questão que não nasce no seu interior ou de sua natureza, mas lhe é imposta – seja pelo poder político, seja pela opinião pública. Nas últimas décadas, com o aumento das liberdades políticas e sociais, bem como o recuo das ditaduras, o povo adquiriu maior poder de fala: ora, cedo ou tarde, a democracia aumenta a cobrança de ética, inclusive nas empresas.

A centralidade do lucro

Comunicar o que elas fazem, o que não fazem, se torna assim questão essencial. Isso não é fácil. Um presidente de empresa municipal, na capital de São Paulo, apresentou no começo dos anos 80 à imprensa a maquete do que seria uma praça reurbanizada no centro da cidade. Uma repórter lhe perguntou: ‘E o verde, presidente?’ Ele respondeu: ‘É só pintar o cimento.’ Foi uma brincadeira idiota, que já naquela época – ditatorial – causou má impressão. Hoje, seria inadmissível. Temos, aliás, até instrumentos legais para exigir responsabilidade com o ambiente. Mas, mais importante que a própria lei, é a mudança nas mentes. Nosso país com frequência avança muito na legislação, mas sem dispor de base para aplicá-la – e não me refiro a corpos de fiscais, mas a uma opinião pública que assuma uma lei nova como cria sua e dela cuide com carinho.

Porque as mais importantes, dentre as leis novas, são aquelas que expressam valores que a sociedade deseja implementar. Assim foi com a penalização do assédio sexual, com a exigência de medidas ambientais, com a lei de defesa do consumidor, com a proibição de outdoors na cidade de São Paulo. Em todos esses casos, a lei foi endossada pela opinião. A lei foi expressão, não imposição – mesmo quando só veio a ser conhecida a posteriori. Expressou uma vontade popular. Não foi imposta aos cidadãos.

Comparemos uma empresa a um governo eleito. Na democracia, o governo é um ente potencialmente ético. Quando o vemos agir de maneira imoral, o que é mais frequente do que gostaríamos mas é bem menos usual do que os detratores imaginam, sentimos que ele está faltando a seu dever. Governos nascem da necessidade que temos de regular nosso convívio, nosso modo de viver em conjunto. A polis, o nome grego para a cidade enquanto lar comum de seus cidadãos, é um ser ético. Por isso, o governo deveria ser, também, ético. Agora, a empresa não nasce dessa necessidade de convívio. Ela existe para organizar a produção e seu grande agulhão é o lucro. Por isso é que a ética é um aporte, um a-mais, que além disso muitas vezes entra em conflito com a centralidade do lucro.

Riqueza e pobreza

Qual o papel do comunicador nas empresas, quando elas vivem graças a uma energia interna que não é, ela própria, ética? Ele é alguém que vai restringir esse lado não-ético e mesmo, por vezes, anti-ético que elas têm ou podem ter. Isso não é fácil. Histórias como a do urbanista da ditadura são mais numerosas, ainda, nas empresas. Quando duas empresas vendem leite com soda cáustica, ou quando uma montadora deixa passar, em sua publicidade, a informação de que seu novo carro pode atingir 200 km por hora, a ética está sendo ferida. O primeiro caso é um crime. O segundo está entre a distração e a falta de consciência do que é a responsabilidade que cada pessoa – inclusive as jurídicas – tem pelo mundo em que vivemos. Não é à toa que Paulo Nassar dá particular atenção a anúncios de carros. Eles oferecem o sonho com uma potência descomunal, em conflito com um mundo que precisa ser sustentável. Poderá cada pessoa guiar a 200 por hora ou depredar seu carro atual para comprar um novo, vivendo no mais cabal egoísmo? (Ia dizer ‘puro egoísmo’, mas pode o egoísmo ser puro?) Outro anúncio, mais recente, mostra um motorista num silêncio absoluto dentro de sua máquina, enquanto à volta as pessoas vivem no barulho, na bagunça, na confusão. O que se oferece, aí,não é uma história de como viver junto. É uma história de como sair da massa, de como ser você contra a massa, contra o povo que o rodeia. É a história de como não viver junto. É o ideal de cortar relações, graças a seu poder aquisitivo, com a sociedade. O consumo de luxo é valorizado justamente porque permite cortar laços, não criá-los.

Anos atrás, Simon Romero, que era correspondente do New York Times no Brasil, me entrevistou sobre o fato de que São Paulo se tornara a segunda cidade do mundo em número de helicópteros. Os outros entrevistados se orgulharam desse índice. Eu, não – nem o repórter, aliás. Como se orgulhar de um indicador de poluição? Como, além disso, num país com tanta pobreza, se orgulhar da desigualdade social? Sugeri, como explicação para os dois fenômenos – o grande número de helicópteros e o orgulho com esse perverso indicador de má distribuição de renda – uma indiferença, um descompromisso da elite brasileira com nosso povo, com nossa sociedade. Não é que sejam contra o Brasil. Simplesmente, não veem relação entre sua riqueza e a pobreza dos outros. Seriam vasos estanques. Mas, sem relação, sem laço, não há sociedade.

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Paulo Nassar não fala só de empresas. Gosto especialmente de seu comentário sobre o debate entre os dois finalistas da eleição presidencial de 2006; diz ele, num texto obviamente datado, mas que conserva seu gume e merece ser ressaltado:

‘Essa gente que não ama o país deixou a transcendência fora do debate. Temas como a inclusão social e a sustentabilidade ambiental, tão relevantes para o país, quase sem futuro, não foram lembrados. Depois do debate, se você sabe quem são Alckmin e Lula, envie-me um e-mail.’

A transcendência é um tema que ressoa nos textos deste livro. Não é a transcendência religiosa. É a maneira como se sai do aqui-e-agora banal, do prosaísmo; é o modo pelo qual se caminha para algo mais elevado. Poesia é transcendência, valores são transcendência, projetos de longo fôlego são transcendência. Falta isso ao nosso tecido social. Falta aos nossos políticos. Lembro um órgão de imprensa internacional que lamentava terem os Estados Unidos um presidente – o segundo George Bush – tão banal. Paulo Nassar diria: sem transcendência. Seus compatriotas o veem como pessoa simpática, ‘o vizinho legal’; mas um presidente, em especial da maior potência do mundo, tem de ser capaz de inspirar, de fazer as pessoas irem além do cotidiano e sonhar, imaginar. Qual não foi o impacto – enorme – da singela frase de Martin Luther King, I have a dream?

Valores morais

O reverendo negro pronunciou seu discurso em Washington, em 28 de agosto de 1963. A certa altura, disse que, ‘num certo sentido, viemos à capital de nossa nação para descontar um cheque. Quando os arquitetos de nossa República escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de Independência, estavam assinando uma promissória em nome de cada norte-americano’. Não é um começo impressionante, não para nós; as imagens são monetárias demais para um gosto não norte-americano. Mas o espírito está em dizer que, ‘em vez de honrar essa sagrada obrigação’, ‘aos negros se deu um cheque ruim, um cheque que foi devolvido por falta de fundos’. É o contraste entre a esperança ‘sagrada’ e o cheque ruim. Daí a pouco, porém, Martin Luther King chega às palavras simples e ricas:

‘Eu sonho que, um dia, esta nação se erguerá e viverá o verdadeiro significado de seu credo: Consideramos evidentes as verdades [que afirmam] que todos os homens são criados iguais. Sonho que meus quatro filhinhos viverão – um dia – numa nação na qual não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Sonho que, um dia, nas montanhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os dos antigos donos de escravos serão capazes de sentar-se juntos à mesma mesa, a mesa dos irmãos.’

Falta isso. Este é o fio condutor de toda reflexão ética sobre esta complicada profissão que é a do comunicador. Falo em fio condutor, porque nos artigos de Paulo há, como deve haver, de tudo: há a discussão técnica sobre os meandros da profissão; há o debate sobre o que é justo e ético nas propagandas, no trato com o cliente, com o consumidor; mas, sobretudo, há essa pergunta: o que faz a vida valer a pena? É uma questão discreta, mas que está subentendida ao longo de todo o livro e que orienta a reflexão de Paulo Nassar. Porque não é dourando uma realidade feia que se melhora o convívio humano.

O risco da comunicação está aí. O grande número de profissionais que trabalha com empresas, seja para vender seus produtos, seja para gerir crises, seja para resolver problemas pequenos e grandes, com frequência corre o risco de sacrificar à empresa – ou ao lucro, como lembrava Gilberto Dupas – os valores morais. Estes não fazem parte da genética da empresa. Somente se tornam vitais, no ambiente empresarial, quando cidadãos pressionam. Entre esses cidadãos podem estar os próprios empresários, ou os consumidores, ou observadores que, como Paulo e alguma rara vez eu [em meu livro O afeto autoritário – televisão, ética, democracia (São Paulo, 2005), analiso a certa altura os julgados do Conar – o conselho de autorregulação publicitária – para criticar certos vieses seus. Contudo, seria injusto ignorar que o autocontrole publicitário melhorou. E certamente cobranças de consumidores, bem como artigos de críticos, devem ter contribuído para isso], criticam.

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Porque na verdade, quando o foco se desloca do grande conflito que marcou a consciência por mais de um século – entre o capital e o trabalho, entre o patrão e o empregado – para a variedade de conflitos que hoje vivemos, muda também o sentido do que é o conflito, do que é expor o conflito, do que é o papel de quem comenta esses enfrentamentos e, sobretudo, de quem ganha ou perde com isso. Exploremos esse veio final.

O conflito capital-trabalho, na vertente marxista, era o conflito por excelência. Seria irredutível. Não haveria como escapar dele. A única saída seria a vitória, final, do trabalho, ou seja, o fim do capitalismo. Mas mesmo aqueles que não concordam em nada com Marx têm uma percepção desse conflito como central. O dinheiro engoliu o mundo.

Hoje, não vivemos mais um conflito central e estratégico, uma ‘luta final’, como a que os versos da Internacional previam: em vez desse combate decisivo, temos inúmeros conflitos – que se caracterizam, aliás, por não preverem a destruição do outro. Em vez de inimigos, temos adversários. Discutimos as fronteiras com o outro, não a existência dele.

Por isso, quem trata dos conflitos não precisa nem deve necessariamente assumir o papel de porta-voz ou defensor de um lado. É mais importante saber descrever, compreender, negociar, do que armar-se em favor ou contra. Esse, o papel de quem comunica. Mal comparando: num jogo da seleção, nossos locutores se entusiasmam pelo time do Brasil; mas, num campeonato nacional, eles têm de relatar um time e outro de maneira mais equilibrada, porque têm ouvintes são-paulinos e corinthianos, flamenguistas e vascaínos. O comunicador precisa estar mais atento a essa situação em que nenhum lado está completamente certo ou errado.

Uma boa mensagem

Essa mudança de posições se justifica, finalmente, porque não temos mais uma situação de soma zero ou negativa. Temos soma zero quando um só ganha às custas do outro e na proporção de suas perdas. Temos soma negativa, quando o que um ganha é menos do que as perdas do outro. Crimes quase sempre produzem somas negativas. Quem furta meu rádio do carro vai vendê-lo a preço bem mais barato do que me custou, ou do que me custará seu reparo. Numa soma positiva, os dois lados ganham.

Pois é o que acontece, por exemplo, quando muda a condição das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos homossexuais na sociedade. Também os homens, os brancos, os descendentes de europeus e os heterossexuais ganham, com uma sociedade mais multicor e com a própria percepção de possibilidades que também são suas.

É igualmente o que sucede com uma sociedade sustentável, um dos valores que Paulo Nassar expõe. Se cuidarmos de não destruir o meio ambiente, se procurarmos repor o que consumimos da natureza, ganhamos todos. Evidentemente, isso passa pela repressão aos que poluem e depredam. Mas eles mesmos ganham. Recordemos o que é provavelmente uma lenda a respeito do general Westmoreland, que comandou os exércitos norte-americanos na guerra contra o Vietnã, e que recorreu intensamente ao agente-laranja, forte produto químico, para desfolhar as árvores das florestas em que se refugiavam os combatentes vietnamitas. Seu filho teria sido, ele próprio, envenenado pelo produto que o pai mandou empregar. Não importa se a história é verdadeira. O que conta é ser ela verossímil. Expressa algo muito importante em termos de meio-ambiente: quem o explora e devasta também está sujeito a ser vítima da devastação que produz. É um dos raros casos em que a injustiça carrega, consigo, seu preço.

Daí, também, que seja possível uma soma positiva, isto é, um ganho para todos. Pondo fim à devastação ambiental, promovendo ações sustentáveis, temos meios de fazer que todos se beneficiem. Esse é um tipo de conflito sobre o qual ainda sabemos pouco. Quase todo conflito de que falamos tende a descambar em guerra e a gerar somas negativas ou, quando muito, zero. A boa notícia é que estamos caminhando, cada vez mais, para conflitos em que os lados possam, simultaneamente, ser vitoriosos. Creio que o livro de Paulo Nassar, com sua preocupação ética, com o empenho na transcendência, transmite esta boa mensagem.

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Filósofo e professor de Ética e Filosofia Política