Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Dante, Proust, a Bíblia

É conhecido o divertido texto de Umberto Eco imaginando os motivos de devolução de textos fundamentais. O parecerista recusa os originais de Homero, da Bíblia e de famosos escritores como Dante e Proust, entre outros.

Da Bíblia diz o seguinte: ‘As primeiras centenas de páginas deste manuscrito realmente me fisgaram. Cheias de ação, elas têm tudo o que os leitores de hoje querem numa boa história. Sexo (aos montes, incluindo adultério, sodomia, incesto), assassinatos, guerras, massacres e por aí vai. O capítulo de Sodoma e Gomorra, com os travestis dando forma aos anjos, é digno de Rabelais; as histórias de Noé são puro Júlio Verne; a fuga do Egito merece uma grande produção cinematográfica’. Sugere, porém, alteração estrutural e a mudança de título: ‘Que tal Os desesperados do Mar Vermelho?’.

Da Odisséia ser diz ‘uma boa trama, excitante, embrulhada em aventura’, destacando ‘os grandes momentos dramáticos, um gigante de um olho só, canibais, até algumas drogas’.

Depois dos pareceres negativos à Bíblia e a Homero, chega a vez de A Divina Comédia. Conterrâneo de Dante Alighieri, Umberto Eco é hoje no mundo um dos maiores conhecedores da Idade Média. E, na pele do editor que tudo recusa, diz ser Dante ‘um típico escritor de domingo’, sem que se possa exatamente definir o que vem a ser um escritor de domingo. ‘Eu particularmente gostei das descrições de astronomia e de certas noções teológicas concisas e provocativas. A terceira parte do livro é a melhor e terá o maior apelo’. Mas faz restrições à primeira parte; ‘é obscura e auto-indulgente, com passagens de erotismo barato, violência e crueza absoluta’.

Referências vagas

Ao inventar exame e recusa de Marcel Proust, o autor de O Nome da Rosa exagera menos. Afinal, antes de o romancista italiano imaginar que o original de Em Busca do Tempo Perdido poderia ser devolvido, André Gide recusara a publicação.

Eis os motivos inventados por Umberto Eco para que seu personagem não quisesse saber de Marcel Proust: ‘A pontuação deve ser refeita. As sentenças são muito elaboradas; alguma tomam uma página inteira. Bem trabalhado, reduzindo cada sentença para um máximo de duas ou três linhas, quebrando os parágrafos, o livro seria aceito’.

Immanuel Kant também é devolvido. Eis o parecer sobre A Crítica da Razão Prática: ‘É um pequeno e razoável livro sobre moralidade, que poderia se adaptar perfeitamente às nossas séries filosóficas, e poderia até ser adotado por algumas universidades’.

Chega a vez de O Processo e também Franz Kafka sofre nas mãos do onipotente editor: ‘Um pequeno e agradável livro. Um thriller com alguns toques de Hitchcock. Por que todas essas vagas referências, esse truque de não dar nome a pessoas ou lugares?’

Dia e noite

James Joyce é o último. Vejamos o juízo singular que faz de Finnegans Wake: ‘Por favor, diga ao editor para ser mais cuidadoso ao distribuir livros aos analistas de textos. Eu sou leitor de língua inglesa, e vocês me mandaram um livro escrito em alguma outra língua remota. Estou devolvendo-o em pasta separada’.

O escritor Esdras do Nascimento comentou a atualidade dessa prática editorial ao constatar que várias editoras brasileiras, há pouco mais de cinco anos, devolveram originais de Machado de Assis, que lhes foram enviados pelo correio com um endereço de e-mail para a resposta.

A Bienal do Livro do Rio de Janeiro foi muito boa, aproximou autores, leitores e livros, mas o verdadeiro mundo da escrita está em muitos outros lugares. É um mundo que nos acompanha todos os dias, principalmente todas as noites. E sopra em textos como esse de Umberto Eco.