No domingo (24/2), a premiação do Oscar pode reacender a polêmica do plágio ao escolher, para um das 11 indicações à estatueta, As Aventuras de Pi, de Ang Lee, baseado no livro do autor canadense nascido na Espanha Yann Martel, de 50 anos. No prefácio do livro, entre os agradecimentos, Martel concedeu “…já a centelha de vida devo ao Sr. Moacyr Scliar”. Morto aos 73 anos em 2011, no mesmo ano da publicação do livro de Martel, o médico gaúcho autor de 21 romances – fora os contos e os infantis – não pode se defender. Mas Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, conta no blog da editora que Scliar quis processar Martel (Folha de S.Paulo, 16/2/2013; ver “Scliar e o felino”). E no prefácio de Max e Os Felinos (L&PM) Scliar revelou sua decepção.
Ao saber dos comentários que Martel fez ao ganhar o prestigioso prêmio Booker no valor de 55 mil libras esterlinas com As Aventuras de Pi,Scliar estranhou. “Um escritor, do chamado Primeiro Mundo, copiando um autor brasileiro? Copiando a mim?” O canadense dizia que, depois de ter lido uma resenha desfavorável sobre o livro de Scliar por John Updike para o New York Times, concluiu: “Uma pena que uma ideia boa – um garoto num barco com um felino – tivesse sido estragada por um escritor menor”.
Publicado 20 anos antes, composto de três capítulos (“O tigre sobre o armário”, “O jaguar no escaler” e “A onça no morro”), Max e os Felinos foi traduzido para o inglês e o francês e conta a história de um jovem alemão, Max Schmidt, que, fugindo do nazismo, embarca para o Brasil num velho cargueiro, junto com animais do zoológico. Max sobrevive a um naufrágio criminoso, ele e um jaguar.
Ainda no prefácio do livro, Scliar lembra que a história do menino hindu Piscine Molitor Patel – Pi –, que se salva de um naufrágio junto com um tigre de Bengala, é diferente da sua. “Mas o leitmotiv é, sim, o mesmo. E aí surge o embaraçoso termo: plágio. Embaraçoso não para mim”, escreve o elegante Scliar, que logo diz que seu livro A Mulher Que Escreveu a Bíblia partiu de uma hipótese levantada pelo crítico norte-americano Harold Bloom, segundo a qual uma parte do Antigo Testamento poderia ter sido escrito por uma mulher. Com uma diferença: Scliar colocou o trecho de Bloom na epígrafe do livro, e o enviou ao crítico.
Leituras e histórias
Em Fazenda Modelo (1975), Chico Buarque teria plagiado Animal Farm, do inglês George Orwell, escrito 30 anos antes? O Nobel peruano Mario Vargas Llosa teria plagiado em A Festa do Bode (2000) o correspondente Bernard Diederich em They Killed the Goad (Mataron al Chivo), escrito 12 anos antes sobre a era do ditador dominicano Rafael Trujillo? E, afinal, foi ou não plágio dos três autores do livro The Holy Blood and the Holy Grail, escrito em 1982, o livro de Dan Brown O Código da Vinci, lido por meio mundo em 2003 e que virou filme três anos depois?
Num ótimo artigo publicado no The New York Review of Books (edição de 21/2/2013), o biólogo e neurologista Oliver Sacks escreveu sobre as armadilhas da memória, “Speak, Memory” (Fala, Memória). E conta como ele próprio escreveu sobre fatos vividos na infância que foram mais tarde desmentidos pelo irmão. Oliver, o irmão garantiu, não estava presente quando aquilo aconteceu. Foi assimilado, imaginado, deduzido e impresso na sua memória ou teria sido uma traição da memória do próprio irmão?
Sacks fala na diferença entre plágio e criptomnésia, que poderia ser entendida como “plágio inconsciente”. Como exemplo cita a música do beatle George Harrison, “My Sweet Lord” (1970), que tinha enorme semelhança com “He’s So Fine”, gravada oito anos antes por Ronald Mack. Embora o juiz tenha considerado um plágio, refrescou o beatle acusando seu subconsciente: “Não acredito que ele tenha copiado deliberadamente”.
Helen Keller, cega e surda, tinha 12 anos quando publicou The Frost King numa revista e foi acusada de plagiar Margaret Canby na história infantil The Frost Fairies. A própria Helen assumiria que as apropriações aconteciam quando os livros eram “lidos” pela técnica de fingerspelling, diretamente nos dedos. Nesse caso ela não era capaz de dizer se a fonte tinha vindo de fora ou criada por ela mesma. Isso não acontecia quando os livros em Braille eram “folheados” pelas suas mãos. O humorista norte-americano Mark Twain, nascido Samuel Clemens, não se conteve e escreveu para Helen:
“Deus meu, como é incrivelmente engraçada, idiota e grotesca essa farsa de plágio! Como se existisse outra coisa na expressão humana que não fosse plágio! Porque basicamente todas as ideias são de segunda mão, conscientes ou inconscientes, sugadas de um milhão de fontes existentes no mundo.”
Oliver Wendel Holmes, médico como Scliar e considerado um dos melhores escritores do século 19, recebeu na festa dos seus 70 anos a confirmação do plágio de Twain, pelo próprio Twain:
“Holmes foi o primeiro grande escritor de quem eu copiei alguma coisa…”, Twain o saudou no discurso. “Quando publiquei meu primeiro livro, The Innocents Abroad, um amigo me disse que havia gostado muito da dedicatória, mesmo depois de ter lido a mesma em Songs in Many Keys,de Holmes. Surpreso, escrevi a Holmes, não pretendia roubar a dedicatória. E ele me respondeu dizendo que inconscientemente nós todos trabalhamos ideias acumuladas em leituras e histórias orais mas, ao criá-las, acreditamos que elas sejam absolutamente originais.”
Novos tempos
Mesmo que não esteja presente para fomentar a polêmica do plágio durante a premiação do Oscar, Scliar deixou registrada sua opinião no prefácio de Max e os Felinos. Disse que leu o livro de Martel “sem rancor… ali estava a minha ideia”. Mas, como Twain, ressalvou: “Uma ideia é uma propriedade intelectual. Isto não significa que não possa ser partilhada”.
Na sua coluna da “Ilustrada”, da Folha de S.Paulo, Scliar escreveu, em 2002:
“É plágio? Depende, o que dá margem a uma discussão não apenas literária: nesta época de copyrights, propriedade intelectual é uma coisa séria, e uma ação judicial me foi sugerida. Recusei. Não sou litigante.”
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[Norma Couri é jornalista]