Em 2016, comemoram-se os 50 anos da publicação em livro de A Sangue Frio, principal obra do jornalista e escritor estadunidense Truman Capote (1924-1984). Depois de ser publicada como série de reportagens em setembro de 1965 pela revista The New Yorker, a história do assassinato de uma família no interior do Kansas saiu em livro, até hoje reeditado e que deu origem a filme e narrativa em quadrinhos sobre seus bastidores.
“Bastidores”, por sinal, é palavra central quando se fala de A Sangue Frio. Isso porque o lançamento da obra deu origem também a uma polêmica sempre revisitada: as relações éticas no relato de Capote e a veracidade dos fatos narrados. Independente disso – e também por isso – a obra merece ser revisitada pela qualidade do texto e pela controvertida história da relação entre jornalismo e literatura.
Capote ficou seis anos em investigação para escrever A Sangue Frio. Viajou para o Kansas, teve a ajuda de uma amiga no levantamento das informações, anotou cerca de 8 mil páginas e entrevistou as mesmas pessoas várias vezes em busca de detalhes sobre o assassinato dos Clutters. Depois, acompanhou de perto a prisão, o julgamento e o enforcamento dos dois assassinos: Richard Hickcock e Perry Smith, de quem, inclusive, refez o trajeto de fuga e captura. Esperou até 1965 para publicar porque dizia precisar do desfecho e, após se transformar, durante os anos de prisão, numa espécie de confessor dos assassinos, foi uma das 19 pessoas que puderam assistir à execução. Viu a de Richard. Preferiu afastar-se quando Perry foi morto.
O jornalista tinha material para escrever um relato da maior precisão e fidelidade àquilo que observara. Entretanto, preferiu fazer diferente e assumiu, como escreve seu biógrafo Gerald Clarke (2006), que inventou a cena final do livro porque, simplesmente, não queria terminá-lo com as execuções. A questão é: dá para chamar de jornalismo um relato assumidamente inventado? Claro que não. Primeiro, porque o compromisso do jornalista deve ser transmitir as informações conforme sua checagem e investigação. Depois, ao assumir a invenção da última cena, ele coloca em dúvida a credibilidade das 8 mil folhas de anotações e das cerca de 400 páginas que tem o livro. Fontes entrevistadas por Capote – que se recusava a usar gravador ou fazer anotações na frente delas – também questionaram que seus relatos não correspondiam exatamente ao que haviam dito. William Shaw, então editor da The New Yorker, três décadas depois disse que se arrependera de publicar as reportagens que dariam origem ao livro e que a maioria dos questionamentos dele a Capote não foi respondida. Para ajudar na polêmica, é mais do que conhecida a grande afeição – por que não paixão? – entre Capote e Perry, o assassino que ele não quis ver executado e que, no livro, é abonado com várias tentativas de diminuir a culpa.
O que é mesmo a “verdade”?
Mas Capote, o “homenzinho terrível”, como nomeado num documentário sobre sua vida, era esperto e irônico. Ele, na verdade, definiu seu livro como “romance de não ficção”, conceito no mínimo controverso. Essa designação também contribuiu para que outros preconceitos e polêmicas viessem depois e continuassem a ressoar hoje. Primeiro porque persiste um discurso de que Truman Capote teria inaugurado o chamado Jornalismo Literário. Mas isso também é uma invenção. As relações entre jornalismo e literatura são mais antigas do que a própria ideia de objetividade na prática jornalística. Uma das principais narrativas não ficcionais com recursos literários, inclusive, foi publicada 20 anos antes de A Sangue Frio, também nos Estados Unidos: Hiroshima (Cia. das Letras, 2005), de John Hersey (1914-1993), sobre sobreviventes da hecatombe.
A verdade: Capote contribuiu para um novo período dessa história, o chamado new journalism, movimento surgido no âmago da contracultura e que apresentaria às letras nomes ainda em atividade como Gay Talese, Joan Didion e Tom Wolfe. É nesse contexto que a obra deve ser compreendida. A literatura ficcional dos EUA, naquele período, estava focada em questões existenciais e, como Wolfe lembra no ensaio The New Journalism (2004), os jovens jornalistas do grupo aproveitaram para levar aos leitores o que lhes faltava: (boas) histórias. Claro que foram recebidos com preconceito e muitas críticas, principalmente entre os defensores da pirâmide invertida. “Uma turma que não escrevia direito”, diziam alguns, para fazer lembrança ao título do livro de Marc Weingarten sobre o período. Quando são trazidas as polêmicas sobre Capote, o preconceito sobre essa época e o estilo literário no jornalismo só aumentam.
Mas o que fazer então? Ler ou não ler Capote? Incluir a obra numa espécie de limbo ou de index librorum prohibitorum do campo do jornalismo? A leitura de A Sangue Frio sempre trará bons momentos, independente dos objetivos do leitor. Exclui-lo da lista de leitura nas faculdades de jornalismo também não parece ser o caminho, pela sua qualidade estética e pela importância histórica. Ao contrário: sua leitura é uma salutar oportunidade para a discussão sobre os limites da profissão, além das relações éticas e as técnicas de edição, para citar somente um dos pecados de Capote: a simples inversão temporal das cenas faria com que o livro não terminasse com a execução… Ele também sabia disso, certamente.
Apesar da importância de A Sangue Frio, é preciso expandir a discussão sobre o período em que a obra foi escrita e dar destaque para outros autores e livros essenciais para quem quer compreender o que foi o New Journalism, inclusive com a célebre frase de Gay Talese, mestre do período: “O jornalismo literário é tão fidedigno quanto a mais fidedigna das reportagens” (2004, p. 09). Do próprio Capote, a polêmica em torno de A Sangue Frio escanteia outros textos jornalísticos de qualidade e contra os quais não pairam polêmicas. É o caso do perfil de Marlon Brando (1924-2004) e de uma reportagem sobre uma turnê de um grupo da Broadway na Rússia, ambos publicados no Brasil na coletânea Os cães ladram: pessoas públicas e lugares privados (L&PM, 2006).
Mas, para comemorar os 50 anos de A Sangue Frio, providencial se faz uma pergunta, sem, claro, apagar os deslizes do autor: o que é mesmo a “verdade”? Hummm… Está aí o capote que a realidade dá em todos nós.
Referências
CAPOTE, Truman. A sangue frio. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
______. Os cães ladram: pessoas públicas e lugares privados. São Paulo: L&PM, 2006.
CLARKE, Richard. Capote, uma biografia. Rio de Janeiro: Globo, 2006.
TALESE, Gay. Fama e anonimato. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
WEINGARTEN, Marc. A turma que não escrevia direito: Wolfe, Thompson, Didion e a revolução do Novo Jornalismo. Rio de Janeiro: Record, 2010.
WOLFE, Tom. Radical chique e o novo jornalismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.
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Fabiano Ormaneze é jornalista, professor da PUC-Campinas e doutorando pela Unicamp