Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De Itagiba a Leonel

Conta-se que o caçula rejeitou o próprio nome antes mesmo de saber o significado de um nome, como se houvesse uma misteriosa educação pelo nome, uma pedagogia da identidade, ele que, depois de se impor um nome, faria ecoar seu sobrenome pelo mundo inteiro, como se em cada etapa da sua vida precisasse de um novo batismo, chamando para si, numa solidão orgulhosa e inexplicável, por vezes melancólica e demorada, a tarefa de sentir o momento da virada e de se renomear até alcançar renome. Nascido Brizola, em Cruzinha, pedaço de Carazinho, distrito de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, em 22 de janeiro de 1922, chamado de Itagiba por uma mãe zelosa e aflita, Oniva, que encontrara prazer nessa sonoridade indígena, assim como já havia, ela e o marido José, se deleitado em chamar outros filhos, mais velhos, de Irani e Paraguassu. Oniva também era um nome que soava estranho e não é de duvidar que tenha havido entre ela e o esposo uma batalha doméstica pelos nomes, como acontece em muitas famílias, tendo outro menino, mais moço do que Paraguassu, recebido o nome de Frutuoso, homenagem, certamente, ao caudilho uruguaio, um dos pais da pátria oriental, e a filha do jovem casal, discretamente, como era de bom tom para as moças daquela época dura, exigente e seca, sido batizada Francisca, que seria somente Quita.

Itagiba não quis ser Itagiba, Frutuoso não se tornou caudilho, como se os nomes não se acomodassem aos seus donos ou devessem, para a realização de um destino, se existe algum, ser alterados. Itagiba preferiu ser Leonel. Seria chamado, décadas depois, de caudilho, amargaria anos de exílio no Uruguai, onde teria uma fazenda, e jamais esqueceria a sorte do pai, tropeiro ligado ao líder maragato Leonel Rocha e ao Partido Libertador, metido nos entreveros da revolução de 1923, aquela que, enfim, acabaria com o longo reinado do ditador positivista Borges de Medeiros. O menino Itagiba era pequeno demais para sentir a tragédia da sua família, mais de cem homens cercando a sua casa, em 11 de outubro desse ano de sangue de 1923, comandados por um certo Pedro Ivo dos Santos, a mando de um tal coronel Tutucha, apelido de Vitor Dumoncel, esperando a chegada de José, conhecido como Beja, quebrando as coisas, prendendo-o, enfim, partindo com ele, indiferentes, dolorosamente indiferentes aos gritos de Oniva, a mulher de nome estranho, a esposa aturdida, a mãe desatinada correndo com o filho mais novo no colo, Itagiba, em prantos, atrás dos invasores. José Brizola seria morto a tiros na beira do Rio Jacuizinho, tendo Dumoncel declarado: “Se vierem aqui pedir pelo Beja, não adianta. Já mandei matá-lo.” Esse pai destemido e sacrificado por um “chimango”, caso essa versão seja mesmo a boa, pois existem outras, como é comum nas melhores biografias, não aquelas escritas, mas as vividas, não veria Itagiba, nome que não aprovara, correr pelo pátio da sua casa, de espada de brinquedo na mão, gritando “eu sou Leonel, eu sou Leonel, Leonel”.

Oito décadas depois, Brizola exclamaria:

– Que loucura! Que injustiça! A paz já estava feita. Meu pai voltava para casa já desmobilizado. Que maldade!

Ventava muito naqueles dias, como se o vento devesse espalhar o apego do filho ao herói do pai, o pai assassinado, o pai revolucionário, lavrador, tropeiro, o pai sem poder em luta contra o poder, como se Itagiba para vingar o pai precisasse se converter desde cedo num pequeno caudilho com o sobrenome do pai e o nome do seu chefe militar, tudo isso numa estranha e inconsciente simbiose, uma mistura de fantasia de criança e de brincadeira séria da vida. Certo é que o pequeno Itagiba deixou de ser Itagiba, tornando-se Leonel, assim como aquele que viria a ser o seu maior ídolo, Getúlio, não seria Bueno, mas Vargas, nesse caso por decisão de uma bisavó, mulher ferida pelo marido que se fora com outra, que decidira não legar aos seus descendentes o sobrenome de um pai infiel. Vargas fez-se um nome. Seria Getúlio. Itagiba deu-se primeiramente um novo nome, Leonel, mas entraria para história pelo sobrenome do pai: Brizola.

Não seria impróprio imaginar que, encastelado no Palácio Piratini, em 28 de agosto de 1961, disposto a morrer pela Legalidade, Leonel de Moura Brizola, que fora Itagiba certamente por desejo da sua mãe Oniva, pensava no seu pai, José Brizola, assassinado por resistir aos abusos do poder. Ali, na sede do governo gaúcho, Itagiba, transformado desde muito tempo em Leonel, chamado por quase todos de Brizola, está disposto, na condição de governador do estado, a defender os direitos do seu cunhado, o vice-presidente da República, João Goulart, tratado, apesar da importância do seu cargo, pelo apelido, Jango. Aquele que era Itagiba e, primeiro, tornara-se Leonel, depois Leonel Brizola, está pronto, depois de tantas águas roladas, impossíveis, improváveis, turbulentas, para dar o grande salto da sua vida, o salto maior que fará dele para sempre simplesmente Brizola.

Como pudera Itagiba, já sem a espada de brinquedo na mão, rebatizado Leonel, o filho de uma professora primária de nome esquisito, tão cedo órfão de pai, de um pai covardemente assassinado por não renegar as suas ideias, como pudera ele, Leonel, menino pobre do interior, chegar a essa condição de cunhado do vice-presidente da República, cunhado de um fazendeiro, um homem de tantas posses, homem de tantos cargos, ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, vice-presidente da República de Juscelino Kubitschek e de Jânio Quadros? Como pudera Leonel tornar-se efetivamente Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e, naqueles dias que entrariam para a história, inesquecíveis dias de agosto de 1961, converter-se em último baluarte da resistência a um golpe de Estado em escala nacional?

Leonel, que fora Itagiba por pouco tempo, entronizaria, com sua coragem quase provocativa, um presidente do Brasil, um presidente da sua família, irmão da sua mulher, mesmo que, mais tarde, mas não tão tarde assim, antes da grande noite que engoliria a tão frágil democracia brasileira, seus admiradores, desejosos de vencer as restrições de uma lei que lhes pareceria absurda, viessem a cantar com fervor: “Cunhado não é parente, Brizola para presidente”.

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O autor

Nascido em 1962 na cidade gaúcha de Santana do Livramento, Juremir Machado da Silva é escritor, jornalista e historiador. É doutor em Sociologia pela Universidade René Descartes, Paris V, Sorbonne. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, além de coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUC-RS, assina uma coluna duas vezes por semana no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre/RS.

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[Do release da editora]

O Rio Grande do Sul teve um papel determinante na história do Brasil do século XX. É inegável. A revolução de 1930, comandada por Getúlio Vargas, levou os gaúchos a amarrarem seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Por 24 anos, Getúlio, dentro ou fora do poder, influenciou os destinos dos brasileiros. Morto, deixou seus herdeiros, entre os quais, João Goulart, que se tornou duas vezes vice-presidente do país. Em 1961, Jânio Quadros renunciou intempestivamente.

No final de agosto de 1961, há 50 anos, começou em Porto Alegre uma primavera da liberdade. O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, comandou a resistência ao golpe contra Jango. Requisitou a Rádio Guaíba, formou a Rede da Legalidade, distribuiu armas, mobilizou a população e, com discursos inflamados, garantiu a volta de Jango da China.

Este livro é uma história de muitas vozes, vozes da Legalidade e da ilegalidade, a voz de Brizola, em tom maior, a voz de Jango, buscando uma solução pacífica, a voz de Carlos Lacerda, governador da Guanabara, o Corvo, o eterno golpista, incendiando o ânimo dos militares contra João Goulart, a voz do general Machado Lopes, comandante do III Exército, sediado em Porto Alegre, a voz do ministro da Guerra, Odylio Denys.

Mas também a voz do renunciante, o esquisito Jânio Quadros, as vozes dos remanescentes, jornalistas, radialistas e políticos, todos muito jovens na época, que lembram a grande aventura com a justa nostalgia e o devido orgulho, a voz das ruas, a voz do Rio Grande, a voz do rádio, especialmente da Rádio Guaíba, que se tornou a cabeça de uma rede inusitada e vitoriosa.

O livro é uma história de nomes de homens, de coadjuvantes e protagonistas, quatro civis e dois militares, uma história de vozes tonitruantes, vozes da era do rádio.