Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

‘Defender o jornalismo é proteger a democracia’

O professor Victor Gentilli, da Universidade Federal do Espírito Santo, lançou seu livro Democracia de Massas: jornalismo e cidadania em junho, durante o XIV Compós, realizado na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. De lá para cá vem promovendo outros lançamentos e levando ao debate as idéias expostas no seu trabalho. É sobre elas que ele fala nesta entrevista ao Observatório.

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Como nasceu Democracia de Massas: jornalismo e cidadania? O que o compeliu a produzi-lo?

Victor Gentilli – Foi a necessidade de compreender o jornalismo de uma forma mais clara. A pesquisa em jornalismo, não apenas no Brasil, tradicionalmente apóia-se na filosofia. Mesmo o pensamento de origem americano, baseado na segunda emenda à Constituição, ou apresenta a questão do ponto de vista da liberdade de imprensa ou já no conceito clássico de Quarto Poder. No Brasil, com a emergência do Ciespal, na década de 1960, há uma mudança de foco. O ensino e a pesquisa não olham mais essencialmente para o jornalismo, mas para a comunicação. É evidente que o olhar dos primeiros estudiosos da comunicação já leva o foco para as teorias da comunicação da época. De um lado, numa vertente amplamente majoritária, o pensamento dos funcionalistas Merton e Lazarsfeld [Robert K. Merton, 1910-2003, e Paul F. Lazarsfeld, 1901-1976] e tantos outros; de outro, os críticos de Frankfurt – Adorno [Theodor Adorno, 1903-1969], Benjamin [Walter Benjamin, 1892-1940], Horkheimer [Max Horkheimer, 1895-1973]. Embora correntes teóricas distintas, de um modo geral enfatizam a disjuntiva cultura de massas vs. cultura popular, chegando a conclusões não muito diferentes.

No caso frankfurtiano, a disjuntiva leva ao conceito de Indústria Cultural (dominadora das consciências). São reflexões interessantíssimas, mas que não enfrentam a questão essencial: se a cultura aceita esta disjuntiva, a política a recusa de forma peremptória. Os pensadores conservadores – e o livro tenta apresentar isso de forma bastante clara – são críticos ferrenhos da democracia. É inconcebível pensar numa democracia das elites.

Assim, a compreensão do fenômeno da sociedade de massas no plano cultural alcançava conclusões que não podiam se repetir no plano da política: a idéia de democracia de massas enfrenta dificuldades de toda ordem, mas termina por se consagrar – por oposição, o que existe é o combate ferrenho à democracia por parte dos conservadores. Enfim, a disjuntiva massa vs. Elite, que no plano da cultura apresenta-se sem maiores problemas (a cultura de elite e a cultura de massas não são incompatíveis, ao contrário, são complementares), simplesmente não cabe no debate político.

De tudo isso, o entendimento do jornalismo como processo de produção de informação para a cidadania sugeria e indicava uma interlocução mais forte com a teoria política. Assim, o debate naturalmente migra para um estudo focado na compreensão dos fenômenos do alargamento e da ampliação da cidadania. Até hoje, no Brasil, muitos falam em direito à informação, mas não se debruçaram no debate clássico sobre cidadania. Neste aspecto, a necessidade de compreender a relação jornalismo e cidadania é que me levou à pesquisa que veio a resultar no livro.

No que o jornalismo que se pratica atualmente mais ajuda a cidadania? E no que mais atrapalha?

V. G. – Grosso modo, o jornalismo ajuda, a propaganda e o marketing atrapalham. Na história brasileira, o marketing contaminou igualmente a política e o jornalismo. Trata-se de um fenômeno que se acentua fortemente na década de 1980. O marqueteiro não tem o menor interesse em esclarecer; quer apenas persuadir, convencer, raramente apela à razão. Ao jornalista cabe exatamente esse esclarecimento. Que outra atividade faz o jornalista senão compreender e explicar ao leitor, ao ouvinte, ao telespectador – enfim, ao cidadão – o que se passa no mundo? O jornal diário é a forma de acesso ao mundo de grande parte dos cidadãos. Quando o jornalismo usa o interesse público como sua referência básica para selecionar, organizar e hierarquizar as informações (o que é feito em cada matéria, em cada edição), ele certamente colabora para a cidadania.

Infelizmente, vemos que o marketing termina predominando ainda em boa medida no Brasil. Basta ver que, num processo eleitoral, o horário nobre televisivo apresenta dois ou três minutos de jornalismo e 20 a 30 minutos de propaganda eleitoral. E um jornalismo pouco esclarecedor.

Falar em centralidade da mídia nesses tempos velozes é uma platitude. Mas não deixa de ser um problema a confusão deliberada entre informação e entretenimento, cada vez mais assimilada pelos públicos. Em que medida a aceitação acrítica do entretenimento em lugar da informação, motivada pelo bombardeio diário dos meios, é capaz de impedir esses mesmos públicos de entender a informação com um direito social? É um caminho sem volta?

V. G. – Entendo que não. O livro, neste aspecto, coloca-se na defesa clara da idéia do direito à informação. A reflexão brasileira sobre o tema da cidadania tende a ocultar que este é um tema de matriz eminentemente liberal. Discutir cidadania sem entender claramente o homem como um ser autônomo, livre, portador de direitos, implica omitir um aspecto essencial da questão da cidadania. O pressuposto do cidadão é de um ser emancipado, livre, capaz de julgar, tomar decisões, fazer escolhas. Nas sociedades complexas de hoje, portanto, o jornalismo como serviço público exige do jornalismo o abastecimento das informações necessárias para que o cidadão decida com o máximo de referências possíveis.

Norberto Bobbio [1909-2004] definia democracia como o governo do poder público em público. Ora, são os jornais que dão publicidade (no sentido de oposto a secreto) às atividades públicas (no sentido de oposto às privadas). É ainda Norberto Bobbio quem lembra que uma democracia pode ser mais ou menos democrática. Evidente que uma democracia onde o cidadão é mais e melhor informado é mais democrática do que outra onde a qualidade da informação não é tão boa.

Defender o jornalismo de qualidade, como serviço público, produzindo informação em quantidade e qualidade suficiente para o esclarecimento do cidadão é, antes de tudo, proteger a democracia. E a idéia de esclarecimento aqui é claramente iluminista, racionalista, baseado na premissa de que o mundo e as coisas do mundo são possíveis de ser conhecidas e compreendidas pelo homem (ser humano).

Entendo que os meios eletrônicos, em particular a TV, priorizam demais o entretenimento em relação ao jornalismo. Basta ver que as emissoras apenas cumprem as exigências legais quanto ao tempo dedicado ao jornalismo. Neste aspecto, o jornalismo de TV em alguma medida incorpora a lógica do entretenimento. Mas é preciso observar – e aqueles que estudam este fenômeno relatam – que embora entretenimento, a dramaturgia brasileira agrega fortes elementos culturais. Por outro lado, vemos na programação de TV alguns programas com formatos jornalísticos que fazem apenas sensacionalismo e ‘baixaria’. São condenáveis.

E o que dizer do controle dos meios? A mídia brasileira é democrática?

V. G. – Eis aí outra questão extremamente grave. Mesmo na perspectiva liberal clássica, vamos mal. A liberdade de expressão das famílias que controlam a mídia brasileira não é a mesma do cidadão comum. Nos grandes centros urbanos, de algum modo, o cidadão termina por alcançar um mínimo de informação de qualidade que lhe permite o exercício dos direitos de cidadania. É pouco, muito pouco, ainda. O índice de leitura de jornais é baixo, mas, principalmente, temos poucas alternativas de jornais. Há cidades com um bom jornal, outras com dois. Isso não é propriamente democrático, particularmente quando os nossos jornais evitam assumir suas posições nos editoriais e produzir um noticiário mais isento. Nos locais mais distantes, aí então, a situação é terrível. Vimos o coronelismo eletrônico patrocinado por Antonio Carlos Magalhães, então ministro das Comunicações, ainda no governo José Sarney, o uso abusivo de estações de rádio por políticos, os currais eleitorais ainda preservados.

A universidade tem conseguido acompanhar criticamente a produção noticiosa na sociedade de massas? Onde você localiza o maior mérito da pesquisa acadêmica nesse campo e onde está sua mais grave deficiência?

V. G. – A questão é bastante interessante. A pesquisa em jornalismo no Brasil é praticamente do mesmo padrão daquela dos grandes centros. Mas certamente em quantidade bem mais reduzida. A criação da SBPJor (Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo), há três anos, é o sinal mais evidente. Os três encontros já realizados evidenciaram uma pujança que nós sabíamos existir, mas não tinha reconhecimento, especialmente entre os órgãos de fomento. Neste mês de dezembro, vamos lançar já o segundo número da Brazilian Journalism Research, uma publicação que nasceu vocacionada para o nosso diálogo com o mundo. A publicação é toda em inglês e o Conselho Editorial conta com a presença dos mais importantes pesquisadores do mundo.

Bem, foi exatamente no 3º Encontro da SBPJor que finalmente lançamos a Rede Nacional de Observatórios, reunindo oito grupos de pesquisa (todos cadastrados no CNPq e reconhecidos pelas suas instituições) nas mais diversas regiões do país. Ao todo, temos mais de 80 professores voltados a pesquisas que buscam acompanhar criticamente a produção noticiosa.

Nosso maior problema, no meu entendimento, era e é a referência. Por mais crítico que seja o estudante ou o professor, ele sempre vê na grande imprensa a referência de jornalismo a ser alcançada. Fora do eixo São Paulo-Rio-Brasília, o jornalismo local tende a ser a referência da maioria e a grande imprensa, de uma pequena minoria. Isso é um problema grave, pois em boa medida é estimulado pelo professor. Temos mais de 20 programas de pós-graduação em Comunicação, e neles os professores se qualificam. Destes, apenas a UnB tem uma linha de pesquisa com foco específico no jornalismo. Claro que há pesquisa nos outros, mas ela sofre com a dispersão, com a falta de interlocução. A criação da SBPJor em boa medida atenuou esse problema.

Como avalia a emergência, no Brasil da última década, de organizações da sociedade civil que têm na democratização das comunicações o foco primordial de sua atuação? Há suficiente articulação entre esses movimentos para fazer frente às freqüentes ameaças à pluralidade e diversidade de idéias e opiniões?

V. G. – Evidente que isso é importante. Aliás, é um sinal da vitalidade da sociedade civil e de sua capacidade de identificar os problemas de comunicação. Mas tenho um certo temor com as propostas que emanam desses movimentos. Embora tenhamos evoluído nos últimos anos, prevalece um certo ranço disciplinador e controlador da imprensa, cuja última manifestação foi a proposta do Conselho Federal de Jornalismo. Tremo de pensar que jornalistas propõem disciplinar nossa atividade. Sempre vi e continuo vendo jornalismo como uma atividade intrinsecamente indisciplinada.

Jornalismo é direito à informação. Para que isso se dê, jornais e jornalistas precisam de uma alma indisciplinada.