Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Derrubando mitos da história da MPB

Seguindo a cançãofaz um balanço rigoroso do sistema de produção e consumo de canções no Brasil na década de 1960.

Acaba de ser disponibilizada uma versão digital do livro de Marcos Napolitano originalmente publicado pela Annablume em 2001, e esgotado já há alguns anos. Baseado em sua tese de doutorado, o livro de Napolitano interpreta o processo de formação e transformação da MPB, desde 1959, marco zero de criação da Bossa Nova, a 1969, quando se consolidou como uma instituição da cultura brasileira.

Segundo o autor, a MPB foi o epicentro dos debates estéticos e políticos sobre a música, a sua relação com a indústria cultural e seu papel na formação social do País. O livro evidencia as tensões e paradoxos que costuraram, naquele contexto, a história cultural da música na trama mais ampla dos destinos nacionais. Como pano de fundo do cenário pré-Golpe, havia a linha política “nacional-popular” sob a mão firme do PCB, que apostava numa vasta aliança de classes, que pretendia amalgamar trabalhadores e setores “progressistas” da burguesia, sob um guarda-chuva nacionalista. Ao mesmo tempo, o mercado de bens simbólicos crescia como nunca. E a configuração estética do campo musical se fazia, cruzando transformações políticas e mercantis, pela multiplicação de linhas musicais que, de modo diverso, relacionavam mercado, repertório cultural e posicionamento político.

Dividida em seis capítulos, a obra faz minucioso percurso sobre a construção e a dinâmica do campo musical, passando pelos debates da imprensa, os manifestos e os contra-manifestos e os festivais de música televisionados, e o lançamento dos LPs (Long Playing ou “discos”, como eram chamados os antepassados dos CDs, nos tempos idos…).

Condições de produção

Dois movimentos analíticos fundamentam o trabalho e garantem resultados expressivos na interpretação do processo histórico. No primeiro, Napolitano dá um passo atrás, tomando as definições mais sedimentadas pelos críticos e historiadores da MPB como dados a serem reinterpretadosas dentro da teia dos fatos, a partir da documentação e de uma leitura mais sóbria, distanciada dos embates do período. No centro da querela, o autor busca perceber as relações, várias delas ambíguas e complexas, entre “mercado” e “engajamento político”, tomando-os como termos de um problema, e não como pólos sociais irreconciliáveis. Napolitano reavalia a ruptura entre Bossa Nova e samba tradicional, as rivalidades entre MPB e Jovem Guarda, e, finalmente, as disputas entre música engajada e Tropicalismo, apontando, para cada momento, o que seriam os debates ideológicos, as mudanças na composição estética da canção e as jogadas de mercado à procura de consumidores.

Este procedimento, no conjunto, não é propriamente um achado, visto que é ferramenta básica do ofício do historiador: ao invés de comprar o pacote das interpretações cunhadas no calor da hora (especialmente pela imprensa especializada), ele deve colocá-las-as em suspensão até segunda ordem, enquanto examina um conjunto mais amplo de fontes que podem trazer à luz novos significados. O mérito de Napolitano está, porém, no exercício arguto de desmistificar versões sistematicamente reproduzidas ainda hoje em documentários, programas de televisão, textos de divulgação da história da MPB e, digamos, nas conversas de bar dos meios universitários.

No varejo, basta ver o que Napolitano escreve sobre as mitológicas vaias do 3º Festival da MPB, produzido pela TV Record, em 1967, quando Gilberto Gil cantou Domingo no Parquee Caetano Veloso, Alegria, Alegria – a estratégia dos músicos naquele momento não foi, como se divulga, de chocar, mas de buscar por comunicação, no que foram, inclusive, bem-sucedidos, conseguindo reverter vaias em aplausos. No atacado, pode-se, ainda, acompanhar o modo sistemático como o autor critica – no sentido de relacioná-las aos seus pressupostos sociais e intelectuais – as interpretações de Ruy Castro, José Ramos Tinhorão, Roberto Schwarz, Marcelo Ridenti e outros pesos-pesados dos estudos de música e cultura do País.

O segundo movimento do texto, este de maior vigor, refere-se às análises musical das obras, isto é, dos LPs lançados na década de 1960. A estratégia bem construída faz o balanço entre os resultados estéticos, a atmosfera política e os vários projetos culturais em gestação e disputa, num contexto de sofisticação do mercado cultural brasileiro. Neste caso, o método aponta o dilema de primeira grandeza para a interpretação dos processos culturais e das relações entre obra de arte e mundo social.

A análise das obras que consolidam a Bossa Nova expressa o bom rendimento da interpretação: em álbuns de Carlos Lyra, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré, na aurora dos anos 1960, o diálogo com a “música engajada” se misturava com as inovações estéticas de Jobim e João Gilberto. Em 1963, consolidavam-se caminhos distintos, sob o crivo do nacional-popular, e o divisor de águas parecia ser o aeroporto: os entreguistas versus os nacionalistas; o show no Carnegie Hall; as carreiras no exterior de Tom Jobim, João Gilberto, Sérgio Mendes. Napolitano, porém, retoma autores e obras – Edu Lobo e Vinicius de Morais – que embaralham a polaridade ideológica (difundida como fato pela historiografia).

O golpe militar de 1964 mudou os rumos da prosa e da bossa, especialmente no arranjo entre tradições estéticas, engajamento e sonoridades, mas a discussão entre mercado e afirmação ideológica permaneceu, paralelo à progressiva afirmação da profissionalização dos músicos e produtores, assunto de que Napolitano trata com copiosa documentação.

As divergências do autor com as interpretações de Roberto Schwarz sobre o a relação entre cultura e política, a partir de 1964, é são um ponto fundamental na arquitetura dos argumentos do livro. Segundo a célebre análise de Schwarz (no artigo “Cultura e política – 1964-1969”, em O pai de família e outros ensaios), a arte “engajada” (os exemplos são sobretudo do teatro, com algumas menções à música e ao cinema musicais e cinematográficas) produzida no pós-golpe perdera o pé da experiência social, ao manter a velha conversa sobre a “vitória futura da revolução” num contexto de derrota; da exortação épico-nacionalista fora de hora (Show Opinião, Arena) os movimentos culturais passariam à alegoria tropicalista igualmente deslocada, transformando as tensões históricas do País (moderno/arcaico; urbano/rural; rico/pobre) em matéria-prima para expressões de desacerto -– o desconforto e o absurdo oferecidos como espetáculo, em substituição às perspectivas de superação social figuradas nas obras mais interessantes anteriores ao golpe. A raiz disso estaria no solapamento das condições sociais de produção que davam sentido ao teatro épico, a à la Brecht: a existência de movimentos sociais nos quais dramaturgos e atores, por exemplo, encontravam tema e forma para suas peças.

Sinal inequívoco

Napolitano tenta desmontar o modo como Schwarz apresenta o problema, ao considerar que a ampliação do público e as repercussões das obras, particularmente do Show Opinião, mereciam um veredicto mais generoso. Ele próprio constrói essa nova perspectiva, tratando o assunto por outro ângulo, que toma a afirmação de um mercado consumidor como um processo que rearranja dos termos em jogo. A cultura musical de timbre nacional-popular mostrou vocação para a massificação na esteira da produção da indústria cultural, o que seria adequado ao novo contexto: o posicionamento político passava a ser fazer por meio do mercado. Napolitano, buscando demonstrar como funcionava essa nova maneira de ação dos artistas, recupera os artefatos da produção artística do Show, cujo grande sucesso foi particularmente expressivo para a reconformação do campo cultural da produção esquerdista.

Permanece, porém, como um desconforto para o texto de Napolitano, a visada crítica, de tradição marxista, de Schwarz, que não exigia dos grupos de teatro que colocassem em marcha a revolução, mas sim – ao contrário – avaliava que estes grupos não eram mais capazes de traçar um diagnóstico da cultura ajustado aos dilemas vividos desde a derrota do golpe de 1964. Mudando os termos do problema, Napolitano muda também o objetivo do texto de interpretação histórica: o que ele descreve, Schwarz critica. A análise detalhada da estratégia de ocupação do mercado – ao contrário de contradizer – esmiúça, justamente, o ponto central da crítica de Schwarz à produção artística em questão: o que era parte de um processo de enfrentamento de classe, se torna mercadoria. Já para Napolitano, essa transformação, com todas as suas ambigüidades, configurava o novo palco de atuação política da arte, fora do qual a alternativa era o silêncio.

No conjunto do livro de Napolitano, o método é eficaz, porque aponta as dissonâncias entre o dito (pela crítica e pela historiografia), o projetado (pelas apostas políticas do momento) e a obra. Entre as diversas análises, surpreende o balanço sobre o disco Tropicália ou Panis et Circencis, lançado em agosto de 1968. Desenha-se, na interpretação de cada faixa musical, um problema de fundo: a mítica ruptura do Tropicalismo com os “nacionalistas” da MPB e a suposta facilidade com a qual Caetano e Gil teriam flertado com o mercado fonográfico. Vê-se, em suave contraste, a diferença entre intenção (manifestos e declarações para a imprensa) e gesto (materializado nas canções) – sinal inequívoco do alcance de sua interpretação sobre a cena musical que deu nome e sobrenome ao que chamamos, com certa naturalidade, de Música Popular Brasileira.

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