Com o deslocamento da cultura visual da TV para a expressão escrita da internet, os índices de leitura no país devem ter dado um salto na última década e meia. Em termos de qualidade, porém, como sabe quem alguma vez entrou numa caixa de comentários de grande portal, o cenário está mais para desastre.
As causas não são difíceis de achar, e não estão apenas nas escolas. Vejam a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, cuja edição de 2015 acaba de ser cancelada. A opção de governos, empresas e entidades que poderiam ajudar foi clara: em nome de uma economia mesquinha (o filme “Qualquer Gato Vira-Lata 2” custou mais que o dobro do que custaria o evento), abre-se mão de um dos poucos modelos vitoriosos que temos na formação de leitores.
Os exemplos poderiam seguir ao infinito: da “pátria educadora” que deixou de comprar livros às goteiras da Biblioteca Nacional, do fascínio por celebridades ignorantes aos “guias de lazer” que dão dicas sobre brechós e passeios com o “pet”, desconhecendo a hipótese de alguém preferir ler num sábado ou domingo, o futuro está contratado no que valorizamos no presente.
Pensei nas consequências desse desprezo à atividade intelectual ao saber que Antonio Prata, colunista da Folha, foi processado por um texto obviamente satírico (http://goo.gl/751HQj). Também ao acompanhar a polêmica em torno de “A Mulher no Trem”, peça do grupo Os Fofos Encenam suspensa depois de protestos pelo uso de “blackface” — o expediente de pintar de negro o rosto dos atores, que foi típico no teatro e cinema americanos e hoje é considerado racista.
Se a qualidade geral da leitura no país fosse outra, e houvesse mais familiaridade com as sutilezas da linguagem culta, seria fácil estranhar o uso que Prata fez de termos ofensivos como “crioléu” –e, em função desse deslocamento de tom, que soa extravagante nas páginas de um jornal dos nossos dias, notar a caricatura.
Já o caso dos Fofos Encenam é mais complexo. Segundo o diretor Fernando Neves, a pintura dos rostos não é “blackface”, e sim parte de uma tradição circense à qual seu trabalho se filia. A militância negra responde que, independentemente das intenções, o uso de um recurso assim em 2015 tem uma simbologia histórica que não pode ser ignorada.
Os demais argumentos do debate foram bem resumidos num artigo de Eliane Brum no “El País” (http://goo.gl/EnPDKg). Mas o que me chamou a atenção foi outro aspecto, a par do confronto entre liberdade de expressão e direitos de um grupo discriminado desde sempre no país: em sua maioria ou totalidade, o ataque foi promovido por quem (como eu) não viu “A Mulher no Trem”.
Ou seja, o julgamento não se baseou no que ocorreu no palco, e sim numa ideia geral e corrente sobre o que é se expressar numa obra artística: a de que o dito num texto –ou mostrado num espetáculo– necessariamente se confunde com a opinião de quem escreve/encena.
Drama e comédia
Em alguma medida, voltamos ao problema da qualidade da leitura. Desconsidera-se a ironia, a descrição crítica ou qualquer recurso que tire uma fala, uma imagem ou situação dramática de seu sentido literal. Exemplo insuspeito: de que modo um programa de TV racista que usa “blackface” –como o que aparece em “Bamboozled” (2000), filme do cineasta negro Spike Lee– poderia ser mostrado sem o uso de… “blackface”?
Eu diria mais: no terreno da arte, mesmo o literalmente ofensivo pode ser válido. Estamos numa esfera simbólica em que o lado ruim da experiência humana vem à tona, e assim é possível conhecê-lo melhor, exorcizá-lo ou reagir como mandar nossa sensibilidade. Ou se tem liberdade para forçar tais limites, ou nos conformamos em repetir o senso comum –que muitas vezes é tão autoritário quanto bem-intencionado.
É certo que isso tudo tem um preço, incluindo ações judiciais e boicotes legítimos de quem se sente ofendido. O artista tem de estar pronto para responder pelo que fez, desde que haja um entendimento mínimo sobre o objeto em debate: seu gênero, abordagem, contexto, as referências com as quais joga, o público a que se destina.
Se uma das premissas é lida de forma errada, atribuindo-se sentido dramático ao que é cômico, real ao que é ficção e assim por diante, o resultado muda de modo grosseiro. O barulho daí surgido é parte da tragédia que vivemos, o hino real de um país que deu as costas para a educação de suas crianças –e, logo, para a cidadania dos seus adultos.
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Michel Laub é escritor, colunista da Folha de S.Paulo