Os jornais de segunda-feira (12/12) amanheceram com a triste notícia. Em vez da bela, sagaz, profunda, complexa e dulcíssima poesia de Cecília Meireles, nossas folhas traziam uma briga danada sobre os direitos autorais que envolvem disputas familiares.
A vida de escritor não é fácil em lugar nenhum do mundo, mas no Brasil ela traz dissabores adicionais. Sempre lembro que quando ganhei o Prêmio Internacional Casa de las Americas, em júri presidido por José Saramago, dos jornais e revistas que deram a notícia no Brasil, uns a deram em cadernos regionais. Colegas latino-americanos que ganharam o mesmo prêmio desfilaram em carros de bombeiro.
Devemos nos queixar disso? Não. Mas fazer a conversa clara: no Brasil, os políticos de um modo geral reconhecem apenas esforços físicos, quando reconhecem. Culturais? Artísticos? Literários? Ora, ora…
Referência solar
Pobre Cecília Meireles! A Academia Brasileira de Letras deu-lhe postumamente o Prêmio Machado de Assis. Como no Velho Oeste, escritor bom é escritor morto. O governo José Sarney a homenageou na nota de cem cruzados novos e depois na de cem cruzeiros – numa década, a de 1980, em que nosso dinheiro mudava de nome como nós de roupa. A inflação a jato – galopante era pouco, como diziam os sucessivos ministros da Fazenda – desmoralizou ainda Machado de Assis, Pedro Álvares Cabral e outras figuras referenciais de nossa História. As notas sumiram e Cecília Meireles foi deixada em paz na companhia que todo escritor adora, a dos leitores.
E eis que agora somos sacudidos por uma briga familiar por direitos autorais. A disputa judicial resulta de discordâncias dos herdeiros que foram parar nos tribunais. A poeta teve três filhas. Maria Mathilde Meireles, a do meio, pouco antes de morrer, em 2007, cedeu os direitos autorais da obra da mãe ao sobrinho, Ricardo Strang, e não aos próprios filhos, Alexandre Teixeira, Fátima Dias e Fernanda Dias.
As duas meninas, Fátima e Fernanda, contestam no Judiciário a autenticidade da assinatura da mãe no documento de cessão em que se apoia a Editora Global para relançar toda a obra de Cecília Meireles, referência solar da poesia brasileira.
Sem novas edições
O Globoinformou que, enquanto sua mãe era viva, Alexandre, neto de Cecília, cuidava dos direitos autorais. Mas sua tia mais nova, a atriz Maria Fernanda (única filha viva de Cecília), sentindo-se prejudicada, processou o sobrinho. Este perdeu na Justiça a ação e foi condenado a repassar à tia R$ 1,7 milhão em direitos autorais atrasados.
Na “Fala Inicial”de Romanceiro da Inconfidência, cujos versos usei nas epígrafes de todos os capítulos de meu romance Avante, soldados: para trás, a poeta escreveu:
“Não posso mover meus passos/ Por esse atroz labirinto/ De esquecimento e cegueira/ Em que amores e ódios vão.”
Nem nós. Deixemos para advogados e juízes, mas enquanto isso ficaremos privados de novas edições dos livros de Cecília Meireles?
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[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e um dos vice-reitores da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)]