Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Discutindo a TV religiosa

Reportagem no jornal O Estado de S.Paulo informa que o Ministério Público Federal na cidade de Guaratinguetá pediu à Justiça a anulação das concessões das emissoras de TV Canção Nova e TV Aparecida, sediadas no interior paulista e controladas por organizações ligadas à igreja católica.

O motivo apresentado é técnico – a TV Canção Nova é controlada pela Fundação João Paulo II, grupo ligado à Renovação Carismática, e a TV Aparecida é parte da rede do Santuário de Aparecida – e, nos processos administrativos no Ministério das Comunicações, seus pedidos de concessão têm como justificativa o suposto caráter educativo das emissoras.

Por essa razão, segundo o Ministério Público, deveria ter havido uma licitação para selecionar a organização que apresentasse o melhor projeto educacional.

É mais do que sabido que nenhuma das duas emissoras tem qualquer vínculo com projetos de educação. Elas servem como veículos para pregação religiosa e apoio a políticos ligados aos dois grupos católicos. Portanto, houve fraude no processo administrativo.

Suas programações são ocupadas por transmissões de missas, entrevistas com sacerdotes e próceres do catolicismo ligados a uma e outra das tendências que dominam a igreja, e alguns programas com palestras e debates variados, sempre pontuados por pregação religiosa.

Em meio aos religiosos profissionais, parlamentares e outras autoridades disputam o espaço de influência sobre os fiéis telespectadores.

Não há o menor sinal de diversidade de crenças ou sequer de tolerância com relação a outras confissões.

Motivação política

Mesmo com a declaração do Ministério Público de que se trata de um procedimento normal, uma vez que a concessão foi dada sem licitação, a reportagem do Estadão dá a entender que se trata de uma iniciativa de inspiração política.

As duas emissoras estiveram envolvidas, no ano passado, na polêmica em torno da questão do aborto. A TV Canção Nova chegou a transmitir, durante a campanha eleitoral, um programa ao vivo no qual um padre pedia aos católicos que não votassem na então candidata Dilma Rousseff.

A mera insinuação de que poderia estar havendo interesses políticos envolvidos na iniciativa do Ministério Público Federal desvia a questão do tema central, que se refere à democratização dos meios de comunicação.

A concessão para exploração de canais de televisão é feita pela Presidência da República, após análise do Ministério das Comunicações, e ratificada pelo Congresso.

No caso das duas emissoras católicas, o que está sendo contestado é o processo administrativo, onde costumam ocorrer os vícios que levam a transgressões na lei, como a outorga de canais de rádio e TV a parlamentares.

Televisão para todos

Contribui para desviar o assunto das razões apresentadas pelo Ministério Público o fato de que, recentemente, o conselho deliberativo da TV Canção Nova decidiu suspender a transmissão do programa Justiça e Paz, apresentado pelo presidente do PT de São Paulo, deputado estadual Edinho Silva. A suspensão ocorreu no dia da estreia, quando o dublê de parlamentar e apresentador levou como convidado, para uma entrevista, o secretário-geral da Presidência da República, ministro Gilberto Carvalho.

Segundo o Estadão, o ministro, que é católico e ligado a grupos religiosos, havia intermediado a reaproximação entre a presidente Dilma Rousseff e dirigentes da Canção Nova.

A inclusão dessa informação na notícia sobre a medida do Ministério Público contribui para dar um caráter político à iniciativa da procuradoria.

Segundo a direção da emissora, o afastamento do deputado-apresentador faz parte de um processo de mudanças na grade de programação. Também foram suspensos os programas de outros políticos, como o deputado federal Gabriel Chalita, os deputados estaduais Eros Biondini e Myriam Rios, além do secretário de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, Paulo Barbosa, e da primeira-dama paulista, Maria Lúcia Alckmin.

A ação do Ministério Público Federal abre espaço para uma discussão que a imprensa aparentemente não tem intenção de abrigar: a outorga de concessões de canais de rádio e TV para grupos eminentemente religiosos cuja militância é travestida de ação educativa.

Segundo o procurador Adjame Oliveira, autor das ações contra a TV Canção Nova e TV Aparecida, o processo de outorga sem licitação contraria o princípio da utilização democrática e transparente dos canais de televisão.

A rigor, se grupos católicos podem ter suas emissoras, com o argumento da atividade educacional, nada impede que qualquer cidadão crie uma seita e pleiteie também sua própria televisão.

Afinal, três jornalistas da Folha de S.Paulo já demonstraram em novembro de 2009 (ver aqui) que no Brasil se pode criar uma igreja em cinco dias úteis, com a quantia de R$ 418,42 em taxas e emolumentos.

Muito mais fácil do que abrir uma microempresa.