Um dos nossos cacoetes culturais, já apontados por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, é o de tratar os problemas com soluções que oscilam entre a pusilanimidade e o extremo. O enquadramento de Monteiro Lobato como racista por causa de trechos de suas obras não fugiu à regra, mas cria uma boa ocasião para refletirmos sobre como encontrar uma saída para esse tipo de situação em que deixar como está não presta e aplicar os rigores da lei empobrece o contexto.
No Brasil, racismo é injúria qualificada, crime inafiançável (Lei Afonso Arinos), ou seja, passível de prisão por flagrante delito e sem direito à fiança. Não o era ao tempo em que Lobato criou suas personagens, mas elas continuam bem vivinhas e aprontando das suas, sobretudo quando são convertidos – ou pervertidos – para o mercado da indústria cultural e, dentro dela (alguma coisa haveria de prestar nessas águas barrentas), os livros de caráter educativo, didático e pedagógico.
Num contexto educativo, não se pode, é claro, admitir obras com tiradas racistas, sob pena de se perpetuar um tipo de socialização de valores enviesados. Cortar os trechos preconceituosos de obras clássicas não serve, porque seria a volta de um tipo de censura que o Brasil conheceu durante o regime militar pós-1964, quando pedaços de colunas do noticiário apareciam em branco, opacos ou com versos de Camões, receitas culinárias, demônios medievais e assim por diante.
Marca de tiro
Indexar parte da obra de Lobato soa absurdo, algo como recriar o Index Librorum Proibitorum de séculos atrás. Imaginemos uma cena no âmbito familiar: um pai retirando da estante aquele volume das Obras Completas de um clássico porque se chegou à conclusão de que, lamentavelmente, aquele prócer da Humanidade foi igualmente pródigo em preconceitos, embora não tendo como saber que estava praticando um crime em relação ao futuro, já que face ao ethos então corrente era o que se respirava. Então, o que fazer?
Uma saída pode ser o acréscimo de cláusulas de advertência, à maneira como já recomenda o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, cujo zelo está a cargo do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar). Outra modalidade de advertir é como o faz o Ministério da Justiça, por meio de seu Manual de Classificação Indicativa (PDF disponível na página do ministério), no que se refere a produtos culturais portadores de conteúdos violentos, eróticos ou indutores ao consumo de drogas, lícitas ou não. No entanto, a classificação indicativa por faixa etária e horário parece adequada quase que estritamente às chamadas diversões públicas.
Cláusulas de advertência são contrapesos publicitários que, por exemplo, se põem impressos na contraface dos maços de cigarros, coisas do tipo: fumar pode levar à impotência. Ou, em nova versão, ‘este livro contém trechos que podem ser interpretados como abusivos’. Aqui, um pormenor: a distinção entre o que é enganoso e o que é abusivo. No que se refere à publicidade, enganoso é o anúncio ou rótulo que promete conteúdo ou efeito improvável. Abusivo é o anúncio de um produto, cuja mensagem se revela preconceituosa, racista ou simplesmente desrespeitosa para com a pessoa humana, seja ela qual for, em sua condição étnica ou etária. Há produtos que são abusivos porque querem atingir exatamente a falta de filtros críticos por parte das crianças. Um exemplo: bebidas alcoólicas foram proibidas de usar associações com seres ou coisas capazes de angariar a simpatia do público infantil: tartaruguinhas, caranguejos e outros em situações ‘animadas’.
Mas que coisa horrível! Que ideia estúpida, essa de virem agora os livros com uma antipática advertência, sabe-se lá em relação a que preconceito? Os capistas, evidentemente, odiarão esse crime lesa estética. Mas, prefiro o risco do ridículo à passividade dos que esperam que alguém pense por eles. Prefiro o vexame de me expor e, quem sabe, apareçam soluções melhores e mais amadurecidas, do que ficar na marca de tiro dos covardes (uma praga, atualmente, das listas de discussão), pessoas que, se valendo da distância ou até de identidade falsa, tratam de detratar de forma desrespeitosa quem lhes saia com opiniões que não as suas.
Valores humanos
E a quem competiria colocar o guiso no gato? A quem cuida de guisos. No caso de Lobato, ou melhor, de livros didáticos, das instituições correlatas; do Conselho Nacional de Educação, já que o Conar e o Código de Defesa do Consumidor melhor tratam das relações de consumo. E, como os dois códigos estabelecem, a compra de um produto pelo que ele anuncia tem valor de contrato entre duas partes. Já no caso de aquisição de uma obra eventualmente preconceituosa (total ou parcialmente) isso não implica automaticamente a pactuação com o preconceito. Fica o cidadão com a liberdade de adquirir ou não a obra supostamente perigosa.
Os cuidados, evidentemente, focarão mais aqueles que a Constituição Federal qualifica como mais desprotegidos – as crianças e os adolescentes. Não se trata, portanto, de proibir, mas de advertir. Um dos prodígios da democracia é que mesmo o mal deve contar com a liberdade, pois mais vale o arbítrio do sujeito diante dele do que a proibição por parte de quem que lhe queira degustar na exclusividade de prová-lo antes para não vetar depois.
Quanto ao racismo, o nazismo se encarregou de demonstrar que se trata de uma patologia social. E muito contagiante. Disseminar o preconceito, especialmente por meio do humor, é uma forma de micropolítica: espalhar inocentemente a discriminação. Naturalizar o desrespeito. Concedamos no entanto a Lobato, por tudo de bom que nos prestou, um crédito de confiança, sem que lhe tenhamos de abdicar do quanto de alegria, inteligência e valores elevados – a nacionalidade entre eles –, deixou-nos de herança. A educação para os valores humanos parece ser a melhor saída, mas de longo prazo. No curto, defendo as advertências. Argumentações em contrário serão bem vindas. Desde que fundamentadas. Já que o preconceito é uma forma de irreflexão estabelecida.
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Jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília