Um repórter, porta-voz do exército, resolveu ser escritor e foi à luta. Partiu de um fato verídico temperado com alguma ficção. É a história de uma pequena cidade de camponeses onde estes foram estimulados a doar sangue em troca de um modesto pagamento. A coisa deu tão certo que foi até construído um ‘hemoduto’ para transporte do líquido, mas o uso e reuso de seringas, por motivos de economia, fez com que toda a população ficasse contaminada e exterminada pela Aids.
A primeira edição do livro, de 100 mil exemplares, logo se esgotou, mas o autor perdeu seu emprego de porta-voz e, ao deixar de receber da editora, descobriu que seu romance fora retirado das prateleiras das livrarias.
O autor é o chinês Yan Lianke (50) e outros dois de seus títulos tiveram idêntico destino. O primeiro, uma alegoria contra o regime, conta a história de uma mísera cidade da China na qual os habitantes criaram um imposto próprio para dessa forma angariar fundos e comprar da Rússia os restos mortais embalsamados de Lênin, lançando-se no negócio do turismo vermelho nostálgico.
Sado-masoquismo
Mas a obra que o tornou famoso em toda China – ele é membro da Associação dos Escritores e uma celebridade incômoda, mas tolerada – é Servir o Povo, um romance erótico que circula somente em edições piratas e via internet, depois que a censura proibiu sua venda e até o direito de comentá-lo.
Trata-se uma sátira política, onde se percebe alguma influência de Woody Allen. O protagonista é um soldado constrangido a ‘servir as massas’ de forma especial, satisfazendo os desejos sexuais da jovem esposa do comandante, que se vale do dito de Mao: ‘Todos que fazem parte das linhas revolucionárias têm que tomar conta um do outro e ajudar-se reciprocamente.’
Uma tabuleta onde se lê ‘Servir o Povo’ é colocada na porta de casa, tornando-se um sinal em código através do qual a senhora ordena ao jovem soldado que venha cumprir suas obrigações em sua cama. Os dois tornam-se protagonistas de uma maratona erótica, fechados em casa por dias inteiros, nus e fazendo amor até à exaustão. Quando surge a ameaça de apagar-se a excitação, um jogo proibido acorda os sentidos: a destruição de estatuetas e de retratos de Mao, de cartazes de propaganda, de obras ideológicas que enchem a casa do comandante, desencadeia nos dois impulsos de agressividade que lhes desperta a excitação com uma ponta de sado-masoquismo. O interessante é que Yan foi oficial do Exército de Liberação.
Top secret
A primeira edição, de 30 mil exemplares, esgotou-se poucas horas depois de chegar às livrarias, mas não foi possível imprimir a segunda, pois a Agência Central de Propaganda ordenou a apreensão, acusando romance de ofender Mao Tse-tung, ofender o exército e exceder-se em sexo.
Para seu próximo romance, e não podendo mudar o regime, Yan encontrou uma fórmula de escapar do massacre das tesouras da censura, fazendo duas versões – uma integral, para exportação, e outra, praticando um malabarismo mental, tentará antecipar-se aos censores prevendo suas fobias, paranóias e tabus. Oferecendo-lhe uma versão adoçada, espera fugir à malha fina do controle e chegar ao público chinês, mesmo que seja com um produto menos provocatório.
A trama desse novo livro ainda é top secret. Só se sabe que será uma sátira à vida intelectual sob o controle do Partido Comunista. Só há certeza de que a versão exportada será bem melhor do que aquela que os chineses poderão ler.
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Jornalista