Atenção, jornais que circulavam em Itabira no início dos anos 80 e não exibia o título O Cometa no alto da capa: para Carlos Drummond de Andrade, todos os senhores eram ruins de texto e vendidos à empresa Vale, então estatal. Essa crítica está em carta enviada pelo poeta ao professor e advogado Arp Procópio de Carvalho, em 25 de maio de 1980. “São folhas mal escritas e todas dependentes do controle econômico da Vale, a que não escapam as próprias autoridades municipais”, escreveu o autor de Boitempo.
Trinta e cinco anos depois, quase todos os jornais da cidade natal de Drummond continuam mal escritos, porcamente escritos, bizarramente escritos, tão vergonhosamente escritos que correm o risco de prestar valioso serviço às faculdades de comunicação: serem ótimos exemplos de péssimos jornais. Dá até para imaginar professores com exemplares em riste: “Moçada, veja aqui na minha mão, assim não deve ser escrito um jornal”.
Sobre a dependência econômica, mudou muito nessas três décadas e meia, é bem diferente hoje. Os jornais não mais se vendem à mineradora Vale, que raramente anuncia na imprensa local, mas à prefeitura e à câmara de vereadores. Os anúncios oficiais vêm com tapa-olhos, tapa-boca e tapa-ouvidos.
Na época em que o poeta assinou a carta, estava com apenas cinco números o mensário O Cometa, fundado em novembro de 1979 e que manteve importante relacionamento epistolar com Drummond. Radicado no Rio de Janeiro, o itabirano percebeu logo a importância do novo jornal, mas neste deu duas chineladas certeiras: devia melhorar a linguagem e parar de imitar o Pasquim. Faça diferente ou melhor, ensinam críticos literários.
Mesmo sem deixar de papagaiar o hebdomadário carioca, numa página escrevendo de forma largada, noutra imprimindo textos mais palatáveis, variação causada pela diversidade de colaboradores, O Cometa se tornou drummondiano de sete faces, com a gostosa cumplicidade do poeta, que virou cometiano de longa cauda. Ao jornal, enviou poemas, crônicas, sugestões e cheques para assinatura. Alguns veem nessa relação um retorno do poeta à cidade natal, que visitou raríssimas vezes depois que se mudou.
O Cometa ainda circula, com periodicidade de Halley, de 76 em 76 anos, mas é outro jornal, não mais aquele com o qual Drummond se correspondeu. Editado em Belo Horizonte, perdeu a seiva itabirana, adotou uma nostalgia quase doentia das décadas de 60 e 70 e tornou-se adorador do Partido dos Trabalhadores, numa órbita bem maniqueísta: só o PT é bom partido, só os petistas são corretos; os outros partidos não prestam e as demais pessoas estão todas equivocadas. Um jornal pode defender o que quiser, mas não convém ser casuísta, cego, submisso.
Apesar dos poréns, sempre vale uma conferida no atual O Cometa, pois publica divertidas charges, cartuns e caricaturas e bons textos sobre urbanismo e música, entre outros assuntos, em bem-sucedida diagramação.
A carta que Drummond enviou a Arp Procópio não foi exclusivamente para criticar os jornais itabiranos. Antes de fazê-lo, o poeta menciona fotos em que aparece uma propriedade de um irmão dele, comenta sobre a chateação que lhe rendeu a badalação acerca do cinquentenário de estreia nas letras e se queixa de doença no rosto.
A missiva foi passada a O TREM pelo psicólogo e escritor itabirano Lúcio Vaz Sampaio, que editou O Cometa nos bons tempos do astronoticioso. Segue a íntegra da carta:
A carta de Carlos Drummond de Andrade
Rio, 25 de maio, 1980
Caro Arp,
Pelas fotos, mal reconheço o Retiro dos Angicos, do meu saudoso e silencioso irmão Vivi (era um homem que depositava a língua na Caderneta de Poupança). Em todo caso, vamos lá. A varanda da casa-grande (como se a gente tivesse esse luxo besta dos pernambucanos, de chamar a casa de vivenda “casa-grande”!) há de ser a mesma, com as tristes desconhecidas que lá estão, formando a família Manduca Duarte. O curral coberto é igual a todos os currais cobertos do País das Minas. A terceira foto, confusa vista panorâmica, dá ideia do [ilegível], imaginando-se a escada de acesso à esquerda, solução essa muito própria das fazendas mineiras. Mas o Retiro não era o Tanque – são duas propriedades distintas, ao que me conta a combalida memória. De qualquer modo, meu caro, descobri há muito tempo que “Minas é uma coisa só”. Pelo quê curti as fotos com nostalgia mineira e ora lh’as devolvo com os meus agradecimentos. Esse lh’as está muito fora de moda, eu sei, mas o fantasma do Mestre Emílio me impele a usá-lo.
Olhe, essa badalação de cinquentenário da estreia, para um homem que está beirando os 78, foi meio chata, e tudo que menos podia corresponder ao meu jeito que você bem conhece. Não sirvo para isso; enfim, passou, e cultivo agora uma herpes-zóster que nem a medicina oficial nem as sábias benzedeiras domiciliadas no Rio souberam dominar. É uma dor na face esquerda do rosto, seu compadre, que eu não desejaria aos piores inimigos. Em uma boa linguagem: cobreiro.
Você não me chateou absolutamente com a sua carta rodoviária de 77, que eu respondi a 16 de julho, segundo apontamentos a lápis que pus no alto da mesma. E por que me chatearia, se pensávamos e sentíamos igual, você com a superioridade de ter vivido a estupidez dos inquéritos com ânimo forte, ao passo que eu escrevia no jornal o que me deixavam escrever, e era nada ou pouco?
Também gosto dos garotos do Cometa Itabirano: acho que eles, fazendo força e se disciplinando o mínimo que é necessário para fazer pontualmente um jornal, poderão prestar grande serviço à nossa Itabira. Como você sabe, o que existe por lá são folhas mal escritas e todas dependentes do controle econômico da Vale, a que não escapam as próprias autoridades municipais, mesmo as mais bem-intencionadas. Acho também que o Cometa deve abandonar o vício de imitar o Pasquim, que é fenômeno carioca nunca adaptável a uma formação social ainda muito sentimentada como a da velha Itabira; e escrever para a nova formação, adventícia e incaracterística, no estilo que ela usa [ilegível], mas algaravia, a meu ver para isso não vale a pena fazer um jornal. O Cometa pode e deve dizer verdades que os outros jornalecos não estão em condições de dizer, mas pode fazê-lo em melhor linguagem e mais apurada, com uma seriedade mesclada de bom humor. Está de acordo?
Anotei o seu novo endereço, e que posso desejar ao casal, sob o signo de meu poema, senão que seja feliz, na medida em que a vida o permite e nós mesmos o ousamos? Pois afinal a vida nos é dada para que a gente saiba construí-la ao sabor da nossa imaginação e da nossa força de modelar a realidade.
Para não fazer discurso besta, paro aqui, com o pensamento mais carinhoso para os dois. Seu velho e grato amigo, que o abraça apertado. Carlos
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Marcos Caldeira Mendonça é jornalista e escritor itabirano, editor do jornal O TREM Itabirano.