O ecologismo entrou de vez na lista dos principais interesses da opinião pública brasileira. Hoje, não existe publicação de grande circulação no Brasil que não dedique algumas páginas ao assunto. Tal fenômeno foi, sem dúvida, impulsionado pela candidatura de Marina Silva à presidência da República, muito embora tenha ficado logo claro que se tratava de uma artimanha de setores da mídia ligados à classe dominante para garantir o segundo turno. Pegos de surpresa pelas pesquisas do primeiro turno, que indicavam a rejeição maciça dos eleitores ao modelo PSDB-DEM de governar, foi realizada uma mobilização impressionante para transferir para Marina Silva os votos dos descontentes com o PT, mas que jamais votariam em Serra. Desavisados, muitos eleitores acreditaram na chamada ‘onda verde’, fogo de palha que garantiu, graças ao estratagema, votação expressiva para Marina Silva, enquanto o PV sofreu com a estagnação da sua bancada.
A articulação que envolveu o PSDB-DEM – a elite econômica brasileira e a mídia controlada por ela (talvez eu tenha incorrido em pleonasmo) – foi quase perfeita. Com a palavra de ordem do ‘desenvolvimento sustentável’, fizeram o eleitor acreditar que Marina Silva era uma opção de esquerda e, chamando votos para um partido da sua base de sustentação, o PV, garantiram o segundo turno. Sejamos claros: o eleitor foi deliberadamente conduzido ao erro. O problema é que eles não conseguiram, no segundo turno, desembaraçar Marina da falsa imagem esquerdista que criaram e garantir para o PSDB a natural transferência dos votos do PV. Juntos, eles angariaram, no primeiro turno, os votos dos desavisados, mas estes continuaram assim no segundo turno, sem perceber que os projetos políticos do PV e do PSDB são os verdadeiros semelhantes e que o ‘desenvolvimento sustentável’ é uma pauta da direita, não da esquerda. No momento da votação final, o esquerdismo e o lulismo pesaram mais que o ecologismo.
Lembremos dos debates do primeiro turno. Sempre que perguntavam a Marina Silva como ela conseguiria conciliar desenvolvimento econômico e preservação ambiental, sua resposta vinha em tom catastroficamente triunfal: ‘É preciso mudar a consciência das pessoas. É preciso alertá-las para o consumo consciente.’ Vejam, o conceito de ‘desenvolvimento sustentável’ proposto por Marina Silva, o PV e o PSDB-DEM diz muito pouco sobre o ‘desenvolvimento’. Ele pretende que a solução para as questões ambientais esteja na qualificação do consumo, deixando intacta a verdadeira causa da destruição ambiental: o sistema de produção.
‘Sem fins lucrativos’?
O que o PV e o PSDB pretendiam, como parte de uma articulação global de diversos partidos de direita e outros setores abastados da famigerada ‘sociedade civil’, era garantir seu direito de continuar poluindo e lucrando com a poluição, simplesmente transferindo para a população a culpa pela destruição e, por consequência, a responsabilidade pela preservação do meio ambiente – conceito que ainda merece uma crítica filosófica atenta. ‘Faça xixi no banho!’, dizia simpaticamente a SOS Mata Atlântica, no mesmo espírito. Não é à toa que o PSDB e o PV são conhecidos como ‘partidos ongueiros‘. Nada mais compete ao Estado. Nenhum poder de regulação sobre a produção. Apenas campanhas educativas para que você faça a sua parte… e a deles.
Ora, considerando, talvez até um pouco precipitadamente, dirão alguns, que a classificação ‘esquerda’ diz respeito a um determinado programa político assentado sobre bases marxistas, esse ecologismo não pode ter direito de cidadania num cenário político comandado por um partido de trabalhadores. Desde Marx, o sistema de produção capitalista é denunciado como principal causador da destruição das forças produtivas – a própria classe trabalhadora – e dos recursos naturais, situação inevitável para um modelo econômico assentado na exploração anárquica, posto que tem o lucro como único propósito. O que Marina Silva, o PV, o PSDB, o DEM e, pasmem, até o setor do PSOL encabeçado por Heloísa Helena (que preferiu apoiar Marina a Plínio Sampaio) defendem, sob a grande marca do ‘desenvolvimento sustentável’, é simplesmente a redução do caráter anárquico da exploração capitalista, o que sequer chega a caracterizar uma postura ‘reformista’. Trata-se, pura e simplesmente, do gerenciamento do uso dos recursos naturais para a continuidade do enriquecimento privado, sem esquecer a deterioração das condições de trabalho através da supressão de antigos direitos e criação de novas leis anti-proletárias.
Não precisamos falar agora sobre os ‘créditos de carbono’, mais nova moeda do mercado especulativo internacional para garantir o direito de poluir dos países desenvolvidos. Para ilustrar esse fenômeno – que chamem de ‘onda verde’ ou ‘desenvolvimento sustentável’, isso pouco importa –, a revista IstoÉ publicou esta semana um artigo (‘Sede industrial’, 24/11, por André Julião) sobre setores da indústria que sofrem com problemas relacionados à falta de água. Os mais ameaçados são os setores de alimentos, bebidas e tabaco e o de siderurgia e mineração, afirmou a revista, apoiada num estudo realizado pela ‘organização sem fins lucrativos CDP [Carbon Disclosure Project] e patrocinado por 137 investidores que detêm US$ 16 trilhões em ativos’. Dizer ‘sem fins lucrativos’ é bastante inusitado, pois o principal objetivo declarado do CDP é garantir que seus financiadores, grandes corporações, investidores e líderes políticos comprometidos com o modelo liberal responsável pela crise econômico-humanitária acentuada nos últimos anos, possam diminuir a velocidade do esgotamento das riquezas naturais para garantir maior longevidade ao sistema de exploração que garante seus lucros. Graças ao CDP, seus principais clientes e patrocinadores poderão desenvolver novas formas de manter artificialmente a sobrevida de um sistema essencialmente predatório.
Por uma vitória da ecologia sobre o ecologismo
A matéria da IstoÉ não deixa de lembrar que incidentes relacionados à destruição dos recursos naturais ‘se transformaram também em oportunidades’. De acordo com a revista, 62% dos empresários entrevistados pelo CDP já veem nesse estado de calamidade que se avizinha uma oportunidade de lucrar ainda mais com sistemas de contenção de catástrofes naturais, desenvolvimento de produtos químicos para tratamento de água e infraestrutura para a sua distribuição. E conclui: ‘É a sede por lucros trazendo benefícios.’ Benefícios?!
Em tempo, não estou defendendo que as pessoas parem de reciclar seu lixo ou evitem o desperdício de água. Mas é preciso deixar claro que a responsabilidade pela destruição do planeta recai sobre a exploração capitalista e que esse tipo de campanha educativa promovida pelas ONGs (cujo poder nocivo deveria ser drasticamente diminuído nos próximos anos, até a sua completa extinção, com o Estado assumindo efetivamente as suas obrigações) é parte da estratégia de manipulação para desviar a atenção do verdadeiro problema ambiental e seus causadores. Terminada a eleição, com a vitória do PT para a presidência da República, os mais otimistas já conseguem respirar um pouco, com esperança de terem ao menos retardado a implementação oficial desse modelo de gestão da destruição do planeta defendido pelo PV e o PSDB. Resta saber se a presidente Dilma dará ouvidos ao seu próprio partido e executará as reformas necessárias no sistema de produção, caminho real para a vitória da ecologia sobre o ecologismo, única saída viável para a preservação do planeta e da humanidade.
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Historiador, Aracaju, SE