“Uma porcaria pretensamente inteligente.” Foi com todo esse carinho que um professor se referiu ao enunciado elaborado por mim em um exercício de edição. Confesso ter comemorado os 144 caracteres cravados, igualmente distribuídos em duas linhas, como requer a perfeição parnasiana tão frequentemente pregada pelos mestres. No entanto, alunos como eu, estes selvagens, parecem não dar mesmo outra opção aos seus colonizadores: ou me matam, ou me expulsam daqui, porque escravo eu não sei ser.
Pasmem, rostos pálidos do jornalismo: a razão da acusação foi uma metáfora – sim, em pleno olho (breve texto que se segue ao título de uma matéria), que pecado! Cheia de uma ironia que ousei inspirar no ácido estilo machadiano, a figura de linguagem serviu de pretexto para que eu me tornasse réu no tribunal das vaidades docentes. O crime: elaborar um texto enigmático, criptografado, demasiado obscuro, de quase impossível compreensão ao leitor comum, este mito diariamente evocado pelos mestres e doutores, imaginado sempre com os braços abertos e estendidos, segurando um jornal, confortavelmente afundado numa poltrona grande. E o “romântico” era eu…
Por mais que eu discordasse, por mais que quisesse questionar, por mais evidências que tivesse de que esta alegoria de um leitor tão atento e passivo já não existe (e, se existe, deve estar em tristes fins do processo de extinção), fui incapaz de argumentar. Apenas me levantei quando o momento me pareceu propício e insuspeito, saí da sala e fui ao banheiro. Diante do espelho, tentei conter a angústia, sem sucesso. Era duro demais olhar nos olhos de alguém que eu sabia não poder ser, encarar aquelas olheiras de noites mal dormidas por conta de um ritmo de vida desumano, de uma entrega quase completa àqueles exercícios, àqueles professores… De fato, posso não saber nada de edição, mas entendo de uma gente cansada, que não aguenta mais ser subestimada com essa papinha rala de nenê que os jornais nos oferecem dia-a-dia.
Demanda não atendida
No último dia das mães, não pude dar um abraço na minha. Estou a 1.000 km de casa, em um dos melhores cursos de Jornalismo do Brasil, segundo o mais famoso guia destinado a estudantes lançados sem piedade no maquinário da indústria vestibular. Foi difícil conter a vontade de colo porque, na semana anterior, eu experimentara pela primeira vez a violência de um assalto e, não bastasse ver minha liberdade comprometida a cada passo que dou nas ruas, passei a sentir minha criatividade minada pelo discurso messiânico do evangelho jornalístico.
Para tentar compensar a distância de minha mãe, fiz um presente que não se compra às pressas num shopping lotado: uma matéria sobre a vida de Glorinha, sua carreira profissional, seus filhos, o restante da família, as bodas de prata que serão comemoradas em breve… Seis horas foram suficientes para entrevistar, apurar, redigir, diagramar, editar. Era a minha primeira (e espero que não seja a única) colaboração para a fictícia revista Fofura.
Qual a minha surpresa quando, ao divulgar a matéria em uma rede social, observei uma repercussão bastante positiva entre várias pessoas, crentes que aquilo havia sido realmente publicado! Uma mera publicação no meu mural do Facebook… Mesmo entre os meus colegas de turma, que já estão acostumados às minhas brincadeiras (deveriam estar, pelo menos), houve quem caísse na pegadinha. A mãe de uma amiga fez questão de vir até mim e dizer: “Isto, sim, motiva a gente a ler! Um texto inteligente, com humor, muito diferente daquela chatice que está nos jornais todo dia.” Eu pergunto: será que esta mãe não representa um nicho insatisfeito? Quais são as proporções desta demanda não atendida?
Alunos ridicularizados
Quase dois anos aqui e os raríssimos professores que me estimularam a ser criativo são comumente tachados de loucos por nós, estudantes. Já a grande maioria dos mestres não compreende que, enquanto esbraveja por não receber de seus alunos o bom e tão sonhado feijão com arroz, tem muito salmão queimando no forno. É assim também que os jornais tratam o peixe que devem embrulhar amanhã?
Cursos de Jornalismo, como o meu, infelizmente, ora constituem uma deturpada versão moderna da caverna de Platão, em que os alunos, incapazes de sair pelas amarras de um lead institucionalizado e idiotias afins, são obrigados a interpretar o mundo só mesmo através do jogo de sombras que estes seres, iluminados por uma vivência profissional dita invejável, reproduzem nas paredes de pedra das salas de aula. O espetáculo é indissociável de suas angústias e frustrações, nas quais os alunos devem crer. De outro modo, seria impossível mantê-los fiéis e devotos às notas e conceitos que lhes são atribuídos em cada trabalho.
Existe talento demais sendo desperdiçado nessas salas de aula. Professores se esquivam da árdua tarefa de ensinar, concentrando esforços na simulação de um ambiente de mercado em que, quando muito, reproduzem trejeitos toscos de editores boçais. Alunos, por sua vez, são publicamente ridicularizados no mais íntimo de sua poesia, enquanto os mestres se valem de toda e qualquer licença poética para submetê-los ao patético. Quem irá dizer que é natural que um velho carrancudo se refira aos estudantes como burros cujas orelhas, de tão grandes que são, deixam rastros pelo chão?
Professores do passado
Nós, alunos dos cursos de Jornalismo, não precisamos de editores; precisamos de professores. De nada adianta ter à frente de uma sala de aula um profissional com sei lá eu quantos anos de experiência numa publicação respeitável, se ele não souber ensinar, se não for capaz de passar adiante o seu conhecimento. Melhor seria um corpo docente cheio de Zés Ninguéns perante o mercado, desde que dominassem e refletissem sobre o jornalismo que pretendemos exercer. Aqui, cabem os famosos versos de Gil Vicente, imortais na farsa de Inês Pereira: “Mais vale um asno que me carregue do que cavalo que me derrube.”
Alguns professores, que são os primeiros a apontar seus dedos sujos e calejados na cara de uma juventude que mal sabe segurar um livro, não se dão conta, por exemplo, de que estão entre os principais agentes na construção de uma sociedade aliterata, incapaz de compreender a mais fácil das metáforas, tão acostumada que está ao enlatado pré-cozido dos jornais. Desde o seu surgimento, coube à imprensa, mais do que reproduzir uma linguagem ocorrente, definir a variante padrão. Neste momento, o excesso de recato e a falta de personalidade das publicações perpetuam o sujeito médio, a linguagem medíocre, destituída do mínimo senso crítico, em favor do estético.
E que não se desculpem no espectro de difusão dos jornais ou na universalidade da linguagem jornalística, porque isto é mesmo só um toldo sob o qual se escondem e esperam a chuva passar. Oras, se mesmo a tempestade do dilúvio bíblico passou, por que essa crise dos jornais não há de passar também? Não nos esqueçamos, porém, de que a mão de Deus, quando passa, destrói tudo que toca. E aí, professores do passado, vocês já têm lugar na arca de Noé, rumo ao jornal do futuro?
Finado o texto?
Antes de condenar à absoluta ignorância uma juventude que mal sabe o que representou a ditadura militar no Brasil, dentre outros fatos históricos inegavelmente relevantes, é válido lembrar que esta mesma geração lida com computadores, enquanto há quem ainda se afaste das máquinas, com medo que elas mordam. Devemos, sim, correr atrás, mas não se pode exigir que sejamos aquilo que não somos, porque não temos culpa de não estarmos ainda vivos durante o passado dos mestres, da mesma forma que seria absurdo condená-los por já estarem mortos quando estivermos vivendo nosso futuro.
Espanta-me, ainda, o silêncio dos alunos, a tão comum naturalização do absurdo a que somos submetidos de cinquenta em cinquenta minutos, aula após aula. Dentre as imagináveis razões que possam explicar tamanha covardia, quero estar errado em supor que eles tenham esperança de, um dia, ocupar o lugar que hoje é dos que os sufocam. Talvez estas novas focas batam tantas palmas para os palhaços do picadeiro da sala de aula pelo mesmo motivo do sucesso dos livros de autoajuda: é mais fácil sucumbir às respostas prontas e previamente formuladas que nos são oferecidas do que se dispor à dura prática da reflexão, muito mais difícil do que qualquer exercício de edição.
Espero que todas as minhas teses aqui expostas possam ser contestadas e derrubadas. Está lançado o desafio. Nós, alunos, nem sempre temos intenção de desperdiçar o precioso tempo dos professores com a correção de nosso trabalho porco; às vezes, somos simplesmente incapazes de algo melhor, o que não garante a ninguém o direito ao desrespeito. Talvez seja mesmo possível reprovar um aluno em razão de usar dois pontos em título, travessão em lead… Mas curar o câncer dos cursos de Jornalismo exige que se trate o mal escondido por trás do aparente, assim como, para sobreviver, o jornal do futuro precisará de muito mais que um projeto gráfico colorido e com enorme espaço destinado a fotografias. Ou perpetuaremos a imagem, mais valiosa do que mil palavras, tornando finado o texto?
Deuses da docência
Custa-me caro pensar que, um dia, grandes nomes da literatura brasileira, como Machado de Assis e Lima Barreto, tenham estado em redações como as que logo ocuparemos. Fico me questionando se eles também se sentiam tão limitados, sufocados. Por isto, pergunto a estes Machados e Barretos que estão bem ao nosso lado, pertinho de nós, mas estendo o questionamento a todos os Silvas, Santos, Pereiras e demais sobrenomes que povoam um Brasil cuja literatura acolhe tanto o Carpinejar quanto a Surfistinha: e aí, professores? Quanto tempo vocês vão durar? Até quando irão utilizar seus deleitosos métodos de tortura psicológica para conter uma criatividade pulsante? Numa profissão para cujo exercício nem é mais necessário um diploma de graduação, quando é que vocês vão transformar os cursos de Jornalismo num espaço de formação intelectual e reflexiva, muito mais do que meramente técnica e prática? Quando é que vocês vão entender que texto não é 2 + 2, que jornalistas não são máquinas, que estudante também é gente?
Expulsai-me de vosso Eden, pudorados deuses da docência: a serpente me oferece a maçã e eu não sou de fazer desfeita.