Traduzir, diz quem é do ramo, é uma arte; o bom tradutor pode ser quase um parceiro do autor. O completo domínio de idiomas, aí incluídos os extintos que deram origem a tantas lidas/ouvidas por aí, é exigência básica. Acrescente sensibilidade e muita criatividade e o texto vertido para outra língua estará perto da perfeição.
Para não deixar dúvidas, não custa nada pegar a definição do mais próximo dicionário, no caso o Caldas Aulete. Diz lá que “tradução é a ação ou efeito de traduzir; é a versão de uma língua para outra”. Há registro do neologismo traduciônimo, circulante entre os bibliotecários, mas que se restringe à tradução de um nome em outra língua. E o que dizer de traduzidor, apelido de quem é mal tradutor?
O que não se deve é confundir verbos e conceitos e nem fazer referência ao traducionismo, porque aí a gente esbarra na doutrina de Tertuliano e opõe-se frontalmente ao criacionismo defendido com unhas e mitos pela Igreja. Nessa arena não peleio, pois, se não creio, também não afronto crenças alheias.
Palavras perigosas
Como insinuei, há boas e péssimas traduções; há craques e violentadores de textos originais. Não sou da área, mas sei que Millôr Fernandes, Antônio Candido e tantos mais são do primeiro time. Outros, coitados, confundem tudo, às vezes se apegam a cada palavra e a frase final é uma afronta ao que o autor escreveu. E aí viceja a pendenga, pois boa parte dos tradutores se escraviza às palavras e os mais criativos fazem uma leitura completa e complexa, sem desprezar as figuras de estilo.
Um filólogo citado por Ziraldo Alves (é só conferir no livro O aspite – Há um jeito pra tudo), desafiado pelo caratinguense a traduzir a expressão I enjoy, não vacilou: “Eu usufruo”, garantiu ele. Pode ser, mas fica horrível no entender do primogênito dos Alves Pinto. Dizer “I enjoy New York!”, vá lá, mas “Eu usufruo Belo Horizonte” fica muito esquisito. Ou não?
No mesmo livro, coletânea de crônicas publicadas por Ziraldo no jornal Estado de Minas e selecionadas pelo mano Zélio (qualquer hora junto meus textos publicados aqui e ali e também lanço um livro, para desespero dos leitores), o caratinguense implica com o que ele considera excesso de til e pingos nas nossas palavras. E ele tece loas ao inglês “que escreve Seatle, great, bear, beard, beast e, em cada uma dessas palavras, o ditongo ea tem um som diferente e, nem por isso, fica com toda aquela poluição visual em cima, apenas para o leitor entender a pronúncia certa”.
Há quem condene (inclusive Ziraldo) a opção feita por Guimarães Rosa ao nomear seus escritos não de causos ou histórias, mas sim de estórias. O mineiro dos cartuns acha que o conterrâneo da prosa não quis aceitar o nome de causos por tal definição já pertencer a Carmo Bernardes, escritor e folclorista goiano, ou a Mário Palmério. “O que fez ele? Aproveitou que, em inglês, existem para narrativa as palavras history (quando é ciência ou narrativa mais longa) e story para uma historinha mais maneira, e decidiu tirar o H de história e inventar a nova palavra. Começando com i, ele achou que não ficava bem e, então, escreveu estória”.
Ziraldo, esclareço, derrapou na memória, pois estória não é cria de Guimarães Rosa. O neologismo foi proposto por João Ribeiro em 1919, quando o filho de Cordisburgo, nascido em 1908, só tinha 11 anos. Portanto, inimputável de crime de tal monta. Além do mais, o médico escrevinhador só estreou na literatura em 1929, uma década após o nascer da estória.
As palavras podem ser perigosas. No nosso e em outros idiomas. O mineirinho Carlos Drummond de Andrade já advertia que “Lutar com palavras/é a luta mais vã/entanto lutamos/mal rompe a manhã. /Elas são muitas, eu pouco”.
Caso típico
Peço permissão, para bem exemplificar, o direito de citar frases extraídas da tradução feita por Avelino Correia para o livro Doce quinta-feira, uma quase sequência de A rua das ilusões perdidas, ambos do irônico John Steinbeck, escritor cujo texto é sacana quase sempre e sensível quando possível.
Lá pelo meio da caminhada de tantos desiludidos colocados à margem do modus vivendi americano, pode-se ler: “Joe Elegante (e uma característica de Steinbeck é arranjar nomes estranhos para seus personagens) acordou cedo, pretendendo trabalhar em sua novela uma cena em que o jovem desenterra sua avó para ver se ela era tão bonita como ele lembrava. Joe Elegante viu a luz dourada do Sol batendo no chão do terreno vazio e um diamante de orvalho no coração de cada folha de malva. Saiu descalço para a grama úmida e brincou como um gatinho até que começou a espirrar”.
Quem não tem acesso ao original inglês pode se perguntar: o tradutor foi fiel ou ciscou além do que escreveu o autor? Não conferi, mas pelo pouco que conheço da obra do escritor me arrisco a garantir que, se o tradutor foi feliz, o autor apenas exercitou mais uma vez seu jeito de embelezar as coisas simples.
Tradução é um mistério. Os dois já citados livros de Steinbeck se prestam como exemplo. Sweet thursday aqui foi titulado de Doce quinta-feira, sem nenhuma acrobacia de palavras. Já o anterior, originalmente Cannery Row (apenas o nome de uma rua de Monterey, cidade próxima de San Francisco), por aqui foi vendido como A rua das ilusões perdidas.
Para encerrar essa arenga sobre boas e más traduções, cito exemplo visto e ouvido na dublagem de um faroeste. Há todo momento alguém se referia a um marechal e o tolo que assistia não entendia nada. Afinal, na hierarquia militar dos matadores de índios nunca houve nenhum marechal; lá o topo da carreira dos fardados só vai até general. No filme só se ouvia marechal aqui, marechal acolá, mas finalmente entendi: não havia e nem podia haver nenhum marechal. O erro foi de quem dublou. Ele ouviu a palavra marshall (delegado) e, pelo som, “traduziu” para marechal.
Esse não é um típico caso de analfabetismo bilíngue? Ou a maledicência do articulista está além do tolerável?
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[Hermínio Prates é escritor]