A crônica pode ser uma espécie envergonhada, ainda que involuntária, de autorretrato. A ideia se confirma durante a leitura de Bom Dia para Nascer (Companhia das Letras, 440 págs., R$ 49,00), reunião das crônicas que o escritor mineiro Otto Lara Resende (1922-1992) publicou no início da década de 1990 na Folha de S. Paulo, acrescidas de outras 74 inéditas em livro. É possível entrever a figura discreta, mas sempre muito nítida, de Otto em cada uma. Fingindo que fala dos outros, o cronista fala, quase sempre, de si. Ao fim da leitura, ele termina tão inteiro quanto o Otto que surge em outro livro publicado agora pela mesma editora, O Rio É tão longe (424 págs., R$ 49,00), reunião de suas cartas ao amigo inseparável e escritor Fernando Sabino. As crônicas não deixam de ser uma espécie de correspondência consigo mesmo.
Já na primeira delas, que empresta título ao livro, Otto rememora seu nascimento. “Confesso que sou mesmo antigo. Modelo 1922.” Ano da Semana de Arte Moderna, do Centenário da Independência, da fundação do Partido Comunista, do tenentismo, da inauguração do rádio – que ano para nascer! Acrescenta: “Suspeito que só eu e o rádio estamos funcionando neste mundo povoado de jovens.” E destila sua ironia: “Mas juventude tem cura. Eu também já fui jovem. É só esperar.”
Otto guarda, apesar de sua avaliação desfavorável, forte jovialidade. Continua sensível, por exemplo, para dar ouvidos à ambiguidade dos ventos. “Shelley me desculpe, mas vento me dá nos nervos.” Recorda que, ao contrário dele, Manuel Bandeira associou a canção do vento à canção de sua vida. Apesar do medo que não disfarça, diz: “Fúria dos elementos, símbolo da instabilidade, o vento é ao mesmo tempo sopro de vida.” Não é fácil aceitar a ambiguidade do real. Lembra ele que foi o vento que fez descer sobre os apóstolos as línguas de fogo do Espírito Santo. Conclui, acolhendo um pouco o que, ao mesmo tempo, lhe causa repugnância: “O vento inquieta porque sacode a apatia e a estagnação.”
Tudo é coincidência
Nada mais distante das duas do que o inquieto Otto. Um hipersensível, como ele define em uma crônica sobre a alergia. “Uma tempestade alérgica pode liquidar com um amor.” Mas se consola: “Sábia é a natureza ao impor as suas repulsas e as suas afinidades.” Homem sensível, aceita a ideia de que, “sendo uma forma de hipersensibilidade, (…) a asma inclina a pessoa para as letras e as artes”. Encontra no corpo a origem de uma vocação. Como se dissesse: "Não sou responsável pelo que sou". Como se, por timidez e recato, não tivesse coragem de sustentar quem é.
Lamenta, em crônica de setembro de 1992, que o Banco Central retire de circulação notas em que se estampam as figuras dos poetas Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles. Entristece-se pela beleza de Cecília, que assim se esconde, e pelo olhar de Drummond, que naquele dia, na mesma nota, lhe parece ainda mais triste. “Não consigo ler a olho nu os versos que estão inscritos na cédula. Sei que mencionam o secreto semblante da verdade.” Identifica-se: de alguma forma, sente-se também ele – um poeta secreto – banido da República. A verdade é seu destino.
Tenso, se incomoda com eventos como as coincidências. No exato momento em que começa a escrever sobre elas, um quadro desaba de sua estante e arrasta um livro, justamente do escritor húngaro Arthur Koestler, autor de As Razões das Coincidências. Recorda ainda de um amigo, o jornalista Luís Edgar de Andrade, que considerava um mestre na matéria. Rememora: “Outro dia, ele estava lendo a história de um trem que caiu na baía de Newark e, no dia seguinte, deu na loteria o número do último vagão. Nesse exato instante, viu pela televisão uma locomotiva que batia num ônibus no Rio. Anotou seu número: 3384.” Na tarde seguinte, no que Otto julga uma incontestável confirmação, a loteria premiou o número 384. Conclui, enfim, que, no mundo, tudo é coincidência. “A vida é isso: incidências simultâneas que obedecem a uma ordem”, escreve, confirmando seu perfil supersticioso.
Vivacidade estampada
Tem muitos espelhos em que se mirar – entre eles, o amigo e dramaturgo Nelson Rodrigues, autor, em 1962, em estranha celebração da amizade, da peça de teatro Bonitinha, mas Ordinária ou Otto Lara Resende. Só 29 anos depois, teve a coragem de assistir a uma montagem de Bonitinha, dirigida por Eduardo Wotzik, no Teatro Gláucio Gil, no Rio. Chegou anônimo e assustado, comprou um lugar na fila “F” e se preparou para o pior. Antes de as cortinas se abrirem, ainda se consolou com a ideia de que Rodrigues foi sempre um provocador e, portanto, dele tudo devia esperar. Bonitinha, mas Ordinária é a história de um triângulo amoroso que, bem ao estilo de Rodrigues, mistura violência sexual e morbidez. Otto deixou o teatro atordoado. “Saí como se tivesse me pregado um rabo de papel.” Ainda assim, misturada ao horror, a vaidade o fez ir. O que dá prova da ambiguidade de sua alma.
Em outra crônica, reflete sobre seu amor às cartas – em um momento, início dos anos 1990, anterior à internet, mas em que as cartas clássicas já se estavam ameaçadas pela novidade do fax. Mira-se em Mário de Andrade e suas célebres cartas aos amigos – que “constituem uma obra à parte”. E em trocas famosas de correspondência, que se converteram em verdadeiras pelejas intelectuais, como a que uniu (e separou) os pensadores católicos Tristão de Athayde e Jackson de Figueiredo. Igualmente longas e numerosas, suas cartas a Fernando Sabino bastam como prova de que, mais uma vez, Otto pensava em si.
Espelha-se em outro amigo inseparável, o psicanalista Hélio Pellegrino, de quem recorda as meditações a respeito do asno de Buridã – animal imaginário que, segundo o filósofo francês do século 14, faminto, hesita entre duas vasilhas de comida e, incapaz de escolher, morre da própria indecisão. O animal o ajuda a sair um pouco de si, para meditar sobre política. “O asno de Buridã está hoje atualíssimo”, constata, refletindo a respeito do Brasil dos tempos do presidente Fernando Collor.
Mas, logo depois, volta a si e, em contraste com a paralisia do asno, estampa sua vivacidade: “Parado, indeciso até morrer de inanição, é que o país não pode ficar.” Mesmo quando fala dos outros, Otto retorna sempre a si. E foi por isso, por nunca se afastar de sua voz, que se tornou um talentoso escritor.
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[José Castello é jornalista]