Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O adeus do ateu

Morto na quinta-feira (15/12) à noite, aos 62 anos nos Estados Unidos, de pneumonia, consequência de um câncer no esôfago, o escritor e jornalista britânico Christopher Hitchens já não incomoda seus opositores. Deixou um testamento na última edição da revista Vanity Fair que vai dar argumentos a eles, por promover uma revisão em seus credos. Não que Hitchens, auto-classificado antiteísta – note, antiteísta, não ateísta – tenha se convertido no leito de morte, apesar de acompanhado nos últimos dias por um pastor evangélico, Francis Colllins, que tem cuidado de pacientes terminais mapeando seus genomas.

Hitchens, autor de Deus não É Grande (Ediouro), entre outros livros, passou a vida toda repetindo uma frase de Nietzsche que lhe parecia bastante apropriada para um homem como ele, atacado por todos os lados, pela esquerda e direita. Traduzida livremente, a frase (Was mich nicht umbringt macht mich stärker) toma o seguinte sentido: o que não me mata, me faz mais forte. No leito de morte, ela lhe pareceu ridícula. Hitchens, então, escolheu outra epígrafe, a do poeta Kingsley Amis. Ela, afinal, faz mais sentido para uma vida como a sua. Amis diz no poema que a morte não precisa de ninguém para explicá-la, que ela vem a todos para nos libertar dessa obrigação. E foi com essa epígrafe que ele se despediu dos leitores na Vanity Fair, agregando a ela um verso de “It's Allright, Ma”, de Bob Dylan, para provar que era mesmo um pensador pop.

Hitchens foi um dos mais badalados polemistas na segunda metade do século, seguindo a tradição de George Orwell, sobre o qual, aliás, escreveu o brilhante A Vitória de Orwell (Companhia das Letras), roteiro crítico das ideias do autor da distopia 1984, em que desmonta teses consagradas sobre o seu compromisso ideológico – ele, que condena no livro uma sociedade totalitária. A exemplo de Orwell, Hitchens teve um namorico com a classe trabalhadora inglesa (em 1965) décadas antes de dar seu apoio à Guerra do Iraque e aos neoconservadores americanos, adotando os EUA como segunda pátria. Socialista na juventude, militou contra a Guerra no Vietnã, até proclamar há dez anos que o capitalismo havia se tornado o sistema econômico mais revolucionário e saudar a globalização como “inovadora e internacionalista”.

Formação católica

Em 2001, logo após os ataques de 11 de setembro, Hitchens cunhou a expressão “fascismo com face islâmica” para atacar os fundamentalistas muçulmanos e defender uma política intervencionista no Iraque. Ao mesmo tempo, vociferava contra figuras do mundo católico como Madre Teresa de Calcutá, argumentando que ela era uma espécie de porta-voz do que havia de mais reacionário na Igreja Católica. A fé em Deus ou em qualquer entidade suprema, segundo Hitchens, não passaria de uma crença totalitária que destruiria as liberdades individuais. Deus não criou o homem à sua imagem, evidentemente foi o contrário, dizia. Essa era a certeza moral de Hitchens. Suas objeções à fé religiosa diziam também respeito ao fato de que ela representa de forma equivocada a origem do homem e do cosmos, reprime sexualmente as criaturas e desconsidera outras formas de pensar (inclusive a sua, herdada dos iluministas franceses). Sua crítica à religião foi devastadora e, de certo modo, tirou o foco de outros temas abordados de forma menos passional por Hitchens.

Saudado por Gore Vidal como seu herdeiro intelectual, o polêmico Hitchens não se comoveu com o elogio e atacou o autor americano num artigo para a Vanity Fair, “Vidal Loco”, em que condenou sua adesão às teses conspiratórias do 11 de setembro. Hitchens defendeu a política intervencionista de Bush, embora tenha criticado a ação das tropas americanas e condenado os abusos e torturas em Abu Ghraib. Antes disso houve Kissinger nos EUA, o embrião desse “imbróglio” em que a América se meteria, defende em seu livro O Julgamento de Kissinger (Boitempo Editorial), explosivo libelo contra o secretário de Estado da era Nixon. Esse mesmo Hitchens enviou à ministra Margaret Thatcher um telegrama (em 1982) apoiando a Guerra das Malvinas, por supor que ela combatia a ditadura de Leopoldo Galtieri (1926-2003).

As contradições de Hitchens não o impediram de manter as velhas amizades conquistadas na Inglaterra – Martins Amis, Ian McEwan e Salman Rushdie, entre outros. Sobre o último, Hitchens defendeu o autor de Versos Satânicos da sentença de morte (fatwa) decretada pelos fundamentalistas islâmicos. Rushdie despediu-se dele comovido: “Adeus, meu amigo querido. Uma grande voz cai silente. Um grande coração para.”

Há exatamente um ano, a Editora Nova Fronteira lançou a obra fundamental para entender o pensamento desse que será lembrado no futuro como um ensaísta corajoso e independente como Aldous Huxley. Hitch-22, seu livro de memórias, é de uma franqueza desconcertante. Nele, Hitchens conta sua infância em Portsmouth, cidade portuária do Sul da Inglaterra, sua formação católica, a descoberta das origens judaicas de sua família, as primeiras aventuras homossexuais no internato e o pacto de suicídio da mãe com o amante na Grécia, onde viria a conhecer sua primeira mulher, Eleni Meleagrou, uma cipriota grega com quem teve dois filhos, Alexander e Sofia. Hitchens casou-se ainda uma segunda vez com a escritora californiana Carol Blue, com quem teve uma filha, Antonia. Dependente de álcool e fumante, Hitchens conclui sua autobiografia dizendo que a defesa da ciência e da razão é o grande imperativo de nossa época.

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[Antonio Gonçalves Filho é jornalista]