Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Hackerismo e jornalismo

Os meios de comunicação ajudam a cristalizar um equívoco quando usam o termo “hacker” para designar vândalos cibernéticos e criminosos digitais que violam sistemas, roubam dados, picham sites. Até veículos especializados cometem esse deslize, e isso ficou evidente mais uma vez com a onda de ataques a páginas eletrônicas do governo brasileiro em junho passado: as invasões foram atribuídas a “hackers”.

Teria sido uma derrapada não fosse o fato de que há quase três décadas um livro reposicionava os hackers como protagonistas na história da informática. Em 1984, Steven Levy já os chamava de “heróis da revolução na computação”. Compreender esses personagens significa não apenas evitar jogá-los na vala comum dos marginais, mas entender aspectos importantes da lógica que orientou a busca pela excelência tecnológica e a emergência de uma cultura de colaboração no trabalho e de compartilhamento de arquivos e conhecimentos.

Em Hackear el periodismo: manual de laboratório, o jornalista argentino Pablo Mancini se vale do conceito por trás desses personagens para discutir os limites atuais para o jornalismo numa nova ecologia comunicacional. Gerente de Serviços Digitais do Clarín Global, Mancini está atento aos movimentos do setor para buscar a sustentabilidade de projetos midiáticos e o redesenho das práticas informativas. As ilustrações a que recorre são exemplares, e o livro é recentíssimo – chegou ao público em abril de 2011.

Tremores nas redações

Evocando Levy (1984) e Himanen (2002), Mancini se apressa a aliviar a carga semântica negativa sobre o termo. Com os autores que sistematizaram uma ética hacker, lembra que existem hackers em todas as profissões e não apenas na computação, e o que os define é uma predisposição de buscar a excelência com métodos pouco ortodoxos, inexplorados e inovadores. São personagens que se apoiam em valores como paixão, liberdade, consciência social, verdade e integridade; e se orientam para o livre acesso à informação e ao conhecimento. Portanto, compartilham o que sabem, buscam soluções para sua comunidade, facilitam o acesso e contornam dificuldades. Hackers são naturalmente curiosos e criativos, e perseguem o aperfeiçoamento de práticas, procedimentos e sistemas.

É neste aspecto que Pablo Mancini aproxima hackerismo de jornalismo. Essa indústria está atravessando um período intenso de transformações que ensejam soluções, reconfigurações e reprogramações. Daí que necessita de “profissionais com uma visão estratégica que estejam à altura do mercado: hackers que se apropriem dos desafios e possam desenhar as soluções que os meios e a profissão precisam para se reinventar” (2011: p.16) [tradução nossa, a exemplo das demais a seguir].

Para Mancini, hackear o jornalismo é trabalhar para aperfeiçoá-lo tecnicamente, é conjugar esforços para apontar saídas para sua manutenção como negócio viável, é operar para melhorá-lo como prática socialmente útil.

O autor propõe quatro portas para se entrar no núcleo funcional e hackear o jornalismo: tempo, audiência, valor e organização. Mancini despe-se de pretensões totalizantes, advertindo que não se trata de lei ou teoria, mas de uma proposta de análise e ação. Para ele, esses quatro aspectos são chaves das mudanças nas fábricas de notícias. Podem ser analisados separadamente, mas articulá-los em pares ou em quadratura auxilia uma visão mais ampla das transformações sem precedentes sofridas por essa indústria.

O diagnóstico não parece exagerado, afinal, como descreve o autor o tempo de consumo das informações já não é mais o mesmo; a audiência tem novas práticas junto aos meios; o valor das informações é também agregado de fora das redações; e os fluxos corporativos estão sendo reformulados. Com isso, se todas as coordenadas foram alteradas, o jornalismo também precisa de um novo endereço.

Com uma superoferta de informações, os meios de comunicação acabaram dilatando o período de consumo de seus produtos. Se antes a audiência se encaixava em janelas de tempo – o horário nobre da televisão, as horas da manhã para a leitura dos jornais… -, agora, o público não fica mais confinado nesses intervalos. A audiência não está mais em nenhum lugar porque ela flui, atravessa os meios, é turista dos suportes. Aliás, Mancini critica a obsessão das empresas pelos suportes, o que as estaria arruinando. “Se o conteúdo é transmídia, os meios serão pós-suporte” (op.cit.: p.34). Por isso que “o tempo da audiência está hackeando a incapacidade e a resistência à mudança que reina e governa a maioria das organizações jornalísticas” (op.cit.: p.24). A saída, segundo Mancini, é produzir brevidades, informações em pílulas, sob o mantra do “menos é mais”, de forma a capturar as fluídas audiências.

Aliás, os públicos vêm dotados de outras potencialidades. Em tempos como os nossos, as audiências são agentes também da distribuição dos conteúdos dos meios, algo que antes era prerrogativa exclusiva dos jornalistas e veículos. Os amadores [temidos, criticados e rechaçados por Keen (2009), bem-vindos e enaltecidos por Jenkins (2008)] tomam a Bastilha, geram material, intrometem-se no processo produtivo dos meios de comunicação, clamam por mais espaço de participação/interação. Para Mancini, não se trata de falar de prosumers, de jornalismo cidadão ou seus arredores. Está nascendo um novo animal midiático, capaz de “mudar a cadeia alimentar de uma ecologia até então endogâmica e autorreferencial” (op.cit.: p.41). A audiência tem o controle do tempo agora, é “a medula e o motor da distribuição de conteúdos”, o que causa tremores nas redações. Sistemas de reputação e recomendação online e audiências desdobradas em algoritmos assumem papeis cada vez mais determinantes na equação comunicativa.

Perguntas sem respostas

Se a audiência não é mais um rebanho, compara Mancini, os meios também não podem se comportar como cardumes. Buscar se destacar das muitas opções é essencial para sobreviver. A homogeneidade gera a invisibilidade. A superabundância das informações acaba esvaziando parte do valor das próprias informações, seguindo uma lei econômica. O valor não vem mais apenas dela mesma, mas de outras fontes. Está em outra parte. Outro fator problematizador é que os produtos e serviços jornalísticos não são mais apenas lidos, vistos ou ouvidos. São também utilizados, pontua Mancini, trazendo à tona uma dimensão ainda pouco avaliada no setor: o valor de uso da informação.

Se o tempo, a audiência e o valor já não são mais os mesmos, a empresa jornalística também não pode se manter como está, sentencia o autor. É preciso reorganizar-se, o que não se traduz em reposicionar o mobiliário nas redações. Estão em jogo a eficiência das equipes e o valor do que elas produzem. No debate sobre integração de redações, planejamento versus experimentação, ganham mais força os movimentos para a inovação e o redesenho do jornalismo. “Nunca esteve tão claro que o capital dos meios são sua marca e seus recursos humanos (…) O desafio é extremo: depois de décadas otimizando modelos de negócios, agora temos que pensar os modelos produtivos” (op.cit.: p. 109). Mancini se pergunta se é possível produzir novos produtos em velhas fábricas. A saída não é única, e os caminhos apontados pelo autor vão desde a curadoria de conteúdos ao modus operandi da indústria dos games, da prática do remix – ao estilo dos DJs – à combinação bem equilibrada de habilidades e atitudes individuais e coletivas. Interessa é rearranjar a maneira de trabalhar o jornalismo, atuar para romper com modelos engessantes.

À guisa de conclusão, Mancini cita três iniciativas que estão hackeando o jornalismo: o WikiLeaks – site de vazamentos informacionais de governos e corporações -, o Huffington Post – portal onde a audiência é crucial para a criação do valor da informação – e o Newser – que oferece um redesenho da notícia, tendo a brevidade como valor agregado sobre o conteúdo. O que têm em comum esses exemplos? Têm funcionalidades disruptivas, rompem padrões e ajudam a reprogramar o jornalismo. Seu DNA está contaminado por fluidez, flexibilidade e originalidade, elementos raros na espécie.

Então, Pablo Mancini tem todas as respostas? Claro que não. Aliás, seu Hackear el periodismo pode frustrar o leitor ao final, já que deixa uma grande quantidade de perguntas sem respostas. As lacunas podem ser atribuídas à despretensão, à impotência ou à impossibilidade de resolvê-las agora. Mancini não oferece um necrológio da crise do jornalismo, mas um manual de laboratório. Parece pouco, mas propor que se mexa os braços é um bom começo para não afundar.

Referências bibliográficas

HIMANEN, Pekka. La ética del hacker y el espíritu de la era da la información. Barcelona: Destino, 2002

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008

KEEN, Andrew. O culto ao amador. Rio de Janeiro: Zahar, 2009

LEVY, Steven. Hackers, heroes of the computer revolution. New York: Delta, 1984

MANCINI, Pablo. Hackear el periodismo. Buenos Aires: La Crujía/Futuribles, 2011

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[Rogério Christofoletti é jornalista e professora da Universidade Federal de Santa Catarina]